sex maio 24, 2024
sexta-feira, maio 24, 2024

A guerra do Iraque: onde Bush quebrou a cara

Em 20 de março de 2003, uma coalizão militar liderada pelo exército estadunidense invadiu o Iraque. Em pouco tempo, derrubou o regime político iraquiano do presidente Saddam Hussein com os argumentos de que este “apoiava o ‘terrorismo’ a nível internacional e possuía ‘armas de destruição em massa’ para esse fim’. Em sua substituição, foi instalado um governo apoiado nas forças invasoras que passaram a ser “forças de ocupação”. Parecia ter sido uma vitória fácil. Entretanto, as forças de ocupação começaram a enfrentar uma crescente resistência dos militares e do povo iraquiano, uma guerra de libertação nacional cujo percurso lhes foi cada vez mais desfavorável, até transformar-se, primeiro, em um atoleiro e, depois, em uma derrota. Finalmente, a situação concluiu, de fato, em uma divisão do país em três partes, controladas pelos xiitas (ligados ao Irã), pelos sunitas, e pelos curdos.

Por: Alejandro Iturbe

A invasão do Iraque foi o segundo episódio da “Guerra contra o Terror e o Eixo do Mal” lançada pelo governo de George W. Bush aproveitando o clima político existente nos EUA após o atentado às Torres Gêmeas de Nova York, em setembro de 2001[1]. O primeiro foi a invasão do Afeganistão e a derrubada do regime do Talibã (acusado de ter apoiado os autores do atentado). Para entender as razões profundas desta Guerra iniciada por Bush e o imperialismo estadunidense, devemos analisar a combinação dos dois objetivos que a impulsionaram.

Bush Jr. era a figura visível do Projeto do Novo Século Americano (PNAC por sua sigla em inglês), um núcleo de dirigentes do Partido Republicano. Este setor da burguesia imperialista considerava que o início do século XXI estava definido pela disputa do domínio dos recursos naturais no mundo (essencialmente o petróleo), e que se os EUA não garantissem sua hegemonia neste campo, retrocederia como potência mundial.

Nas décadas anteriores, o imperialismo estadunidense havia perdido seu controle quase absoluto das reservas, da produção e da comercialização do petróleo no mundo devido à formação de companhias estatais monopolistas em países chave como Venezuela, Irã (depois da revolução de 1979) e Iraque [2]. Neste sentido, as invasões, ocupações e guerras do Afeganistão e Iraque têm evidentemente “cheiro de petróleo” (como a fracassada tentativa de golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002).

A “síndrome do Vietnã” e a “reação democrática”

Para compreender o segundo objetivo de Bush, é necessário retroceder um pouco até a dura derrota do imperialismo estadunidense na Guerra do Vietnã, em 1975 (a primeira em sua história). Desde a Guerra da Coreia (1950-1953) até a do Vietnã, a burguesia imperialista estadunidense considerava ter o direito de intervir em todo o mundo (através de golpes de Estado, invasões e guerras), com a desculpa da “luta contra o comunismo” ou onde via seus interesses ameaçados. No Vietnã, esta política “quebrou a cara”.

Começou o que os analistas políticos do próprio imperialismo denominaram de “síndrome do Vietnã”: a dificuldade dos EUA para intervir militarmente no mundo (como o fazia permanentemente no passado) pelo temor de que essa intervenção derivasse em uma longa e custosa guerra, e em uma derrota que piorasse o quadro anterior, como no Vietnã.

A política do “big stick” (grande porrete) foi substituída por outra adaptada a esta realidade, que chamamos de “reação democrática”, elaborada por Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança do ex presidente Jimmy Carter, na segunda metade da década de 1970. Ele era muito consciente das condições desfavoráveis no mundo e de que, por isso, o aspecto militar devia passar para um segundo plano e colocar-se ao serviço de outras táticas centrais: pactos, negociações diplomáticas, eleições burguesas, que permitissem frear e desviar os processos revolucionários e avançar nos objetivos mais estratégicos[3].

Usando a imagem daquele animal de carga que pode avançar através de pancadas ou de uma cenoura pendurada à sua frente, o uso do “porrete” era limitado e colocado a serviço da “cenoura”. Para isso contava com a colaboração do aparato estalinista e sua política (a “coexistência pacífica”), e das direções traidoras.

Bush dá uma guinada, mas é derrotado

O governo de Bush Jr. e o setor que representava, consideravam que a política do governo de Bill Clinton debilitava ainda mais o imperialismo estadunidense e então, dão uma guinada para liquidar de um só golpe a “síndrome do Vietnã” e suas consequências: acaba com a política defensiva da “reação democrática” e começa uma ofensiva em várias frentes, retomando o “porrete” como elemento central. Ou seja, voltava aos “velhos bons tempos” anteriores àquela derrota.

Embora as invasões do Afeganistão e Iraque fossem o fato central dessa ofensiva imperialista, houve outros: a tentativa de golpe contra Hugo Chávez, na Venezuela, em 2002, e a invasão israelense no sul do Líbano, em 2006.

Mas, o projeto de Bush começou a enfrentar cada vez mais problemas e sofrer derrotas. A primeira delas foi com o fracasso do golpe contra Hugo Chávez: dois dias depois de tê-lo derrubado e detido e instalado o empresário Pedro Carmona, quando o aparato do chavismo já havia se rendido, houve um massivo contragolpe popular que a partir dos bairros mais pobres de Caracas acuaram o governo de Carmona até que este renunciou, e isso obrigou a trazer Chavez de volta e a reinstalá-lo como presidente[4].

No Iraque, depois da invasão, da derrubada de Saddam Hussein e da ocupação do país nunca conseguiram impor uma pax americana e foram se sucedendo governos curtos e instáveis. O ponto de partida foi que, pela sua inferioridade militar, os altos comandos e a estrutura militar do regime de Saddam (majoritariamente sunitas) optaram por não enfrentar frontalmente as forças invasoras e, sim, “passaram para a clandestinidade” para combatê-las com métodos de guerrilha e terrorismo urbano, com bastante êxito. Assim se iniciou uma guerra de resistência e libertação nacional contra o ocupante.

Por outro lado, nos EUA, embora a oposição à guerra não gerasse mobilizações massivas como contra a do Vietnã, houve sim um forte boicote ao recrutamento de novos soldados (pelo sistema de contratos). Crescentemente, as forças armadas estadunidenses tiveram que apelar para contratar imigrantes (especialmente latinos) com a promessa de que logo receberiam o “green card”.

Já em 2004, esses problemas eram muito evidentes e assim foram avaliados pela LIT-QI em vários artigos[5]. Nos anos seguintes, esse percurso negativo para o imperialismo não fez mais do que se acentuar[6]. Com o objetivo de reverter, ou pelo menos atenuar, essa situação desfavorável, o bloco imperialista realizou várias movimentações. A primeira foi ampliar a coalizão invasora a outros países europeus, como a Espanha. A segunda foi realizar um pacto com a burguesia curda de Basur (Curdistão iraquiano), à qual outorgou o domínio de uma região autônoma (de fato um Estado independente com suas autoridades e forças militares) [7].  

O terceiro foi realizar um impensável acordo com o regime dos aiatolás xiitas iranianos (em teoria, o inimigo estratégico do Eixo do Mal e da Guerra Contra o Terror) para instalar um “governo central iraquiano” em Bagdá. Esse acordo originou numerosas análises da imprensa imperialista que se referiam à “capacidade estratégica” de Bush com muita acidez.

Uma nova guinada

Porém todas essas movimentações do imperialismo não conseguiram reverter a dinâmica desfavorável da guerra em seu conjunto, que se encaminhava para uma derrota. Uma situação que se combinou com a explosão de uma crise econômica bancária internacional, com epicentro nos EUA.

A principal potência imperialista vivia uma forte crise política. Nesse marco, os setores mais lúcidos da burguesia imperialista estadunidense impulsionaram uma nova guinada para retomar uma nova aplicação da política de reação democrática e a Barack Obama como a melhor figura para implementar essa mudança, a partir de 2008. Obama começou a retirar as tropas estadunidenses do Iraque e, finalmente, a coalizão se retirou oficialmente em dezembro de 2011.

O contexto dessa retirada inclui o curso também desfavorável da ocupação do Afeganistão frente à resistência nacional liderada pelo Talibã. Esta ocupação estava em “um atoleiro” no qual era ruim meter-se, mas também era muito ruim sair. Um conflito que, além disso, tinha se estendido ao vizinho Paquistão[8]. Uma guerra que também terminaria com a retirada dos EUA, embora com efeito delay (atrasado)em 2021[9].

O impacto da derrota

Do nosso ponto de vista, o imperialismo estadunidense sofreu no Iraque (também no Afeganistão) uma duríssima derrota, similar, em diversos aspectos, à que havia sofrido no Vietnã. Uma derrota que, nesse caso, as potências europeias aliadas também sofreram. Tal como analisamos, o objetivo político-militar de Bush era liquidar a “síndrome do Vietnã” e voltar ao “grande porrete” como centro da política externa imperialista.

Ao ser derrotado, o resultado foi o oposto: ao invés de superar a “síndrome do Vietnã”, a atualizou e potencializou com o que os analistas imperialistas chamaram de “síndrome do Iraque”, cuja influência permaneceu na realidade mundial. É impossível compreender o ocorrido no mundo árabe desde 2011 (a “primavera árabe”) sem considerar que em sua gênese esteve, como um componente essencial, a derrota imperialista no Iraque.

É verdade que estas derrotas não parecem, à primeira vista, tão evidentes como a do Vietnã. Por exemplo, não deram origem a um Estado operário, como no Vietnã, mas ao triunfo de uma organização reacionária com traços fascistas, como o Talibã, no Afeganistão, ou a um Iraque fraturado, de fato, em três países, controlados pelos xiitas, curdos e sunitas. Inclusive, de um desses “estilhaços” (o setor sunita) sairia um dos gérmens do ISIS (Estado Islâmico), que queria redesenhar o mapa da região, adicionando ainda mais confusão à complexa e instável situação regional[10].

Mas nem por isso são derrotas de menor envergadura. A própria burguesia imperialista e sua imprensa não se enganaram: por isso, elaboraram o conceito de “síndrome do Iraque” (em analogia com a do Vietnã) para caracterizar a situação resultante. Sobre isso, em uma entrevista de 2014, Zbigniew Brzezinski voltou a mostrar sua lucidez imperialista: “Vivemos um período de instabilidade sem precedentes. Há enormes faixas do território mundial dominadas pela agitação, revoluções, raiva e perda de controle do Estado…É um despertar político global baseado em uma tomada de consciência sobre as injustiças, as desigualdades e a exploração…Os Estados Unidos ainda são dominantes, mas já não são capazes de exercer poder hegemônico…A fragilidade americana fica evidente em sua incapacidade de dar estabilidade à política dinâmica e imprevisível do Oriente Médio…”[11].

É verdade que, desde então, “muita água passou por baixo da ponte”: a primavera árabe teve um percurso muito desigual e contraditório, uma grande pandemia foi desatada, os enfrentamentos entre EUA e China se acentuaram, e houve a invasão e a guerra da Rússia contra a Ucrânia. São todos fatores que configuram a atual situação mundial. Entretanto, a nosso ver, sem avaliar a permanência do impacto destas derrotas imperialistas (a “síndrome do Iraque”) é impossível compreender a atual situação mundial em seu conjunto.

Queremos terminar com uma breve reconsideração: apesar de sua esmagadora superioridade militar, o imperialismo estadunidense sofreu duríssimas derrotas no Vietnã, Iraque e Afeganistão. O exército estadunidense é muito eficiente quando se trata de uma intervenção militar rápida e de apoio a um golpe militar. Porém quando essa intervenção se transforma em uma guerra de ocupação, as coisas se complicam muito. Ou seja, quando deve enfrentar, simultaneamente, uma resistência nacional dura e decidida e uma forte oposição em seu próprio país, acaba se quebrando e pode ser derrotado. É uma lição importantíssima que a história mundial recente nos deixa.


[1] https://litci.org/pt/2018/09/19/sobre-o-atentado-as-torres-gemeas/

[2] Sobre este assunto, recomendamos ler o dossiê “O fim do petróleo” na revista Marxismo Vivo No12, dezembro 2005.

[3] Sobre este e outros assuntos deste artigo, recomendamos ler https://litci.org/es/la-reaccion-democratica-del-sindrome-de-vietnam-al-sindrome-de-irak/

[4] https://litci.org/pt/2019/01/19/do-caracazo-a-crise-atual/

[5] Ver, por exemplo, “Iraque, o calvário dos ianques” na revista Marxismo Vivo No 9, julho de 2004.

[6] Ver, por exemplo o artigo “Iraque: Uma guerra de libertação nacional em ascenso” na revista Marxismo Vivo No 11, junho de 2005.

[7] Sobre esta questão de Basur, recomendamos ler https://litci.org/es/masivo-plebiscito-la-independencia-basur-kurdistan-iraqui/

[8] Sobre este assunto, recomendamos ler o artigo https://litci.org/pt/2010/10/21/afeganistao-os-generais-e-obama-em-seu-labirinto/

[9] Ver a declaração https://litci.org/pt/2021/08/17/afeganistao-a-consumacao-da-derrota-do-imperialismo/

[10] https://litci.org/pt/2015/06/24/um-ano-de-califado-no-iraque-e-na-siria/

[11] Revista Época, edição 863, 15 de dezembro de 2014.

Tradução: Lílian Enck

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares