sex abr 26, 2024
sexta-feira, abril 26, 2024

Sobre a publicação das caricatururas do profeta Maomé

Sobre a publicação das caricatururas do profeta Maomé

Declaração do Ruptura/FER

A publicação em jornais europeus de cartoons satirizando a figura do profeta Maomé, em particular o que apresentava o profeta com um turbante em forma de bomba, provocou manifestações de protesto em todo o mundo islâmico. Milhares de muçulmanos concentraram-se em frente a embaixadas da Dinamarca, país onde as caricaturas foram divulgadas pela primeira vez, ou de outros países europeus, como a França, e inclusive até de instituições norte-americanas, para manifestar a sua indignação pela difusão daquelas imagens. Muitas embaixadas e representações diplomáticas foram apedrejadas e/ou incendiadas durante os protestos. Diante da revolta, os governantes europeus e a quase generalidade dos partidos, inclusive os de esquerda, condenaram a violência dos manifestantes, atribuindo-a a manipulações dos seus governos, e defenderam a publicação dos cartoons em nome da liberdade de expressão. Esta foi, em essência, a posição defendida pelo Bloco de Esquerda, através da declaração do deputado Fernando Rosas na Assembleia da República, divulgada no site oficial do Partido.

Discordamos totalmente dessa posição pelas razões que passamos a enumerar:

1. Em primeiro lugar, não podemos deixar de contextualizar a publicação dos cartoons: ela se dá num momento de guerra, ou melhor, de agressão militar do imperialismo norte-americano, mas também europeu, contra países islâmicos. Não podemos nos esquecer que há milhares de soldados norte-americanos e europeus no Iraque e no Afeganistão. Não podemos nos esquecer que a ONU e a União Europeia apoiaram o embargo económico-militar que facilitou a ocupação do Iraque e, agora, lideram a provocação que abre caminho a uma nova agressão militar, desta vez no Irão. Não se pode falar dos cartoons sem mencionar os 60 anos de brutal ocupação militar da Palestina por Israel, sob a bênção do autodenominado “mundo ocidental”. É a serviço desta agressão imperialista que os cartoons foram publicados. “A Europa e os Estados Unidos se empenham numa guerra contra o Iraque e precisam convencer os seus cidadãos de que essa guerra é justa, que foi empreendida contra sujeitos agressivos, coléricos e cruéis. Isto aconteceu em todas as guerras. Durante a Segunda Guerra Mundial, alemães e japoneses apareciam em caricaturas, no cinema, na imprensa e na radiodifusão, como horríveis monstros do ódio e da maldade. Criava-se, assim, uma imagem negativa que predominava sobre qualquer raciocínio. É o que se está a fazer agora: é preciso montar uma cadeia de reflexos condicionados que permitam uma retaguarda de opinião favorável à guerra”, escreve no sítio Rebelión o jornalista e escritor cubano Lisandro Otero. “Onde há guerra há propaganda de guerra. O retrato sujo e asqueroso dos austríacos nas imagens da propaganda italiana na guerra de 15-18; ou dos americanos negróides e selvagens da propaganda alemã na Segunda Guerra Mundial, e também dos judeus carrancudos de nariz adunco da iconografia nazista e fascista. Serve para enobrecer uma parte, desumanizando a outra, para criar e tornar senso comum a categoria de ‘inimigo’, que o é, precisamente, por ser desumano, e pelo qual não se pode sentir nenhuma piedade humana. É necessária uma forte dose de banalização para que uma grande quantidade de pessoas acabe interiorizando a categoria ‘inimigo'”, analisa Vauro, cartunista do jornal italiano Il Manifesto. E prossegue: “O desenho de um Maomé feio e barbudo com uma bomba pronta para explodir no lugar do turbante é nada mais nada menos que a representação gráfica desta banalidade, de um lugar comum habilmente construído e induzido no imaginário colectivo de uma opinião pública que se quer convencer da justeza da guerra para que, assim, não se oponha a ela. Enfim, é propaganda bélica consciente ou ‘inconscientemente’ produzida e usada por estar, como estamos, em guerra. Não tem nada a ver com a liberdade de expressão, nem muito menos com a sátira. Banalidade, lugares comuns e sátira são termos inconciliáveis. A propaganda de guerra é negra, tétrica, mortífera; a sátira é brincadeira, e também escândalo, mas porque se mofa da sacralidade do poder; não porque comungue com os seus delírios militares e homicídios”.

2. Mas é em nome da liberdade de expressão e de imprensa que os governos da Dinamarca e dos demais países da União Europeia dizem que não podem intervir na publicação dos cartoons. Esta é, inclusive, a opinião manifestada pelo deputado do Bloco de Esquerda, ao dizer que o Estado dinamarquês “não pode ser responsabilizado pelos direitos de imprensa do seu país”. Não é verdade. Todos sabemos que a liberdade de imprensa não existe, e a Dinamarca não é uma excepção a esta regra. Não é a opinião dos jornalistas, nem a dos trabalhadores em geral, nem a dos partidos políticos de esquerda que predomina nos principais órgãos de comunicação, mas a dos seus proprietários, empresários zelosos dos seus interesses, geralmente donos de grandes corporações. É o caso do Público, em Portugal, propriedade do grupo Sonae, ou da SIC e do Expresso, ambos da Impresa. A liberdade de imprensa em Portugal, e em todos os demais países, é, essencialmente, a liberdade de expressão dos seus donos, os capitalistas. São eles que determinam o que deve ou não ser veiculado. Mas mesmo a liberdade desses senhores tem limites, limites esses que, algumas vezes, constituem uma conquista da luta dos trabalhadores e da esquerda, como a legislação anti-racista e anti-xenófoba adoptada por vários países, inclusive a Dinamarca. Em diversos países europeus é proibido, por exemplo, negar o holocausto judeu e, até, pôr em dúvida a cifra de mortos e os métodos de extermínio empregados. Na Dinamarca, o código penal castiga com multa ou prisão quem fizer declarações racistas ou xenófobas. Isto é, o governo dinamarquês poderia, sim, ter impedido, ou pelo menos dificultado e demonstrado a sua contrariedade com a divulgação dos cartoons. Isso porque os cartoons em questão são racistas e xenófobos ao associar uma religião, a muçulmana, e uma cultura, a do Islão, simbolizadas pelo profeta Maomé, ao terrorismo. Uma associação extremamente útil aos governos da União Europeia, como o da Dinamarca, que apoiam a ocupação militar de países muçulmanos. O BE, de acordo com a declaração do deputado Fernando Rosas, também considera a publicação dos cartoons “uma inútil provocação xenófoba, promovida por um jornal conhecido pelas suas posições de extrema-direita”, mas mesmo assim defende a sua liberdade de expressão.

3. Mas se a declaração do BE defende a liberdade de expressão de um jornal de extrema-direita da Dinamarca, não o faz em relação às manifestações de protesto dos povos islâmicos. Pelo contrário, condena-as por serem violentas. “Quem discorde e se sente ofendido deve exprimi-lo através do livre direito de resposta, através do direito à manifestação pacífica, através do recurso aos tribunais se entender que existe matéria crime, mas sempre através da liberdade”. Porque, segundo o deputado, “essa é a intransponível fronteira em democracia”. Acontece que o povo a quem o deputado sugere candidamente que vá aos tribunais reclamar contra os cartoons, ao invés de agir como “fanáticos” a incendiar embaixadas, está sendo atacado pelos exércitos dos Estados Unidos e da União Europeia, não possuem tribunais democráticos para onde se dirigir e enfrentam governos ditatoriais ou exércitos de ocupação. Não há democracia e liberdade no Afeganistão e no Iraque ocupados; não há democracia e liberdade na Palestina ocupada por Israel. As humilhantes imagens de Abu Ghraib e de Guantánamo não deixam margem para qualquer dúvida. Consideramos a publicação dos cartoons uma provocação dirigida contra as nações muçulmanas levada a cabo por uma imprensa reaccionária, xenófoba e defensora dos interesses económico-militares das suas próprias burguesias imperialista. A reacção das populações muçulmanas na Arábia Saudita, Paquistão, Indonésia, Líbia, Líbano, Afeganistão, Síria, Irão, entre outros países onde se deram levantamentos populares, é absolutamente legítima e deve contar com o nosso total apoio. É uma reacção violenta, sim, mas incomparavelmente menos violenta do que a agressão de que os seus autores são vítimas. É a reacção de ódio contra as bombas que matam o seu povo, contra as torturas que martirizam os seus filhos, contra uma propaganda de guerra que os quer diabolizar e exibir como terroristas. Ao contrário daqueles que se solidarizam com a Dinamarca e com a União Europeia, pelo facto de terem tido as suas representações atacadas ou ameaçadas, devemos dizer claramente que não o fazemos. A nossa solidariedade é de classe e está do outro lado da barricada, junto aos povos islâmicos, junto à resistência iraquiana e palestiniana, em sua luta contra os exércitos de ocupação e a sua propaganda de guerra.

Ruptura/FER, 15 de Fevereiro de 2006

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