Na reunião interministerial que marcou os 100 dias do governo, Lula deu destaque à defesa do chamado novo marco fiscal apresentado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. O texto final deve ser entregue nos próximos dias ao Congresso Nacional, mas suas linhas gerais foram reveladas no final de março e, desde então, estão no centro do debate econômico do país.
Por: Diego Cruz
Na reunião com os ministros, Lula fez questão de defender Haddad das críticas sofridas de vários lados. De uma parte, representantes do mercado cobraram o detalhamento de medidas mais duras na contenção dos gastos. Por outro lado, setores de esquerda criticaram o que seria um arrocho excessivo no orçamento, ainda que com “melhorias”.
Tais posições podem levar a crer que o conjunto de regras criadas para substituir o teto de gastos seria uma espécie de “bem bolado”, com alguns pressupostos exigidos pelo mercado, e outros pontos para atender os setores mais “progressistas”. Aliás, esse foi o tom de parte majoritária da esquerda: o novo arcabouço fiscal seria um “avanço” em relação ao teto de gastos, mas com alguns pontos “preocupantes”. Seria mesmo assim?
Mercado aplaude
Primeiro, é interessante notar a reação do mercado tão logo os princípios do tal arcabouço foram divulgados. A bolsa subiu, o dólar baixou e os elogios vieram da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), que o classificou como “passo importante e meritório”, e até do ex-presidente Michel Temer, que não sem razão chamou a medida de uma “adaptação” do teto aprovado em seu governo.
Essa comemoração não veio por acaso. A Emenda Constitucional 95, o famigerado teto de gastos aprovado em 2017, impunha o congelamento dos gastos públicos, apenas com a correção da inflação. Os pontos do arcabouço seguem, por outros caminhos, a mesma lógica, como veremos a seguir. Não foi por outra razão que o texto foi submetido, e acordado, com o presidente do Banco Central, o bolsonarista Campos Neto, o qual Lula e toda a direção do PT atacam publicamente por conta dos juros, mas consultam nos bastidores.
Prioridades
É, nesse sentido, mais uma adaptação, como bem definiu Temer, do que uma ruptura, pois reafirma como prioridade absoluta o pagamento da dívida aos banqueiros, através da busca do superávit primário (receitas menos despesas, descontando os juros da dívida) em detrimento dos investimentos públicos.
ENTENDA
`Novo` arcabouço fiscal
Crescimento das despesas só pode subir até 70% do aumento das receitas.
Independentemente da arrecadação, o crescimento das despesas deve variar entre 0,6% e 2,5% do ano anterior. Ou seja, se o país viver um boom econômico e uma explosão na arrecadação, os gastos só aumentam 2,5%.
Caso a meta de superávit primário não seja cumprida, no ano seguinte há uma “penalização”, e invés de gastar 70% do aumento das receitas, o governo pode gastar apenas 50% do aumento das receitas. Caso se repita, no ano seguinte essa variação desce para 30%.
Nova versão
Um teto repaginado
O objetivo prioritário do arcabouço fiscal de Haddad foi uma das primeiras coisas a serem divulgadas: zerar o déficit público em 2024, ter superávit equivalente a 0,5% do PIB em 2025 e de 1% em 2026. Isso não é outra coisa que não garantir o pagamento dos juros aos banqueiros.
O custo disso seria o de jogar os gastos públicos a um patamar abaixo do que se viu nos dois governos do PT, e até mesmo dos anos de FHC, marcados pelo neoliberalismo. Para se ter uma ideia, os gastos públicos, no melhor dos mundos, seriam limitados a menos da metade da média do que se aumentou nos dois primeiros governos Lula (5,2%), e que, na época, já eram insuficientes. É uma pá de cal em qualquer expectativa de aumento real em serviços públicos, programas sociais como o Bolsa Família, aumento de salário mínimo e aposentadorias, tudo para garantir superávit primário e o pagamento da dívida aos banqueiros.
O governo alardeia que voltam os pisos mínimos constitucionais para saúde (15% do Orçamento) e educação (18%). No entanto, além de engessar isso e inviabilizar um investimento significativo, e que realmente represente uma mudança efetiva, o que vai acontecer, na prática, é que esses gastos vão pressionar os demais setores para que se fique dentro do novo teto, seguindo a mesmíssima lógica do teto de Temer e da Lei de Responsabilidade Fiscal. Para piorar, nem mesmo esses pisos estão assegurados.
Já a promessa de Haddad, de elevar a arrecadação numa proporção e velocidade maiores que o crescimento do PIB, sem uma reforma tributária que desonere os trabalhadores, que são quem o sustenta, com essa estrutura regressiva de impostos, todo o Orçamento não vai se concretizar, ou até vai, mas mais uma vez onerando ainda mais a classe trabalhadora e os setores médios.
Nada de progressivo
Marco fiscal não tem avanço nenhum
Alguns argumentam: ao menos, na pior das hipóteses de uma crise econômica e uma recessão, com a consequente queda de receita, a nova regra garantiria um aumento mínimo de gasto real, mesmo que só de 0,6%, não é? O que não é dito é que esse “aumento” não acompanha nem mesmo o crescimento médio da população, de 0,7% segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, per capita (por pessoa), podemos ter uma redução nos gastos públicos nos próximos anos.
Nos discursos que apontam o caráter “menos pior” do tal arcabouço em relação ao teto está um suposto elemento “anticíclico” das medidas. Esse é o nome que os keynesianos dão para o aumento dos gastos como panaceia para se combater uma crise econômica. Porém, é ridículo chamar de “anticíclico” um aumento de 2,5%, num exercício meramente hipotético de um período de bonança, partindo de um patamar já rebaixado e com o atual nível de degradação econômico e social.
Aliás, esse é um dos erros mesmo dos setores críticos, que comparam o nível de gasto possibilitado pelo novo arcabouço com o de anos anteriores. Não é só que vai diminuir, mas vai diminuir após anos de crise econômica, depois de uma pandemia que reduziu a pó 10% da renda média dos brasileiros (chegando a mais de 20% no caso dos mais pobres), numa esteira de desemprego, informalidade e precarização avassaladores, com o aumento da pobreza, da miséria e o ressurgimento do fantasma da fome. E ainda com os sinais de uma nova crise se armando num horizonte não tão distante.
O novo arcabouço fiscal, assim, mantém e perpetua uma política econômica que visa a transferência de riquezas produzidas pelos trabalhadores e o conjunto da população a banqueiros e bilionários. É uma sequência da política de espoliação e pilhagem, eliminando até mesmo a possibilidade de mecanismos de contenção e amortecimento do impacto social, mesmo extremamente insuficientes, como foram outrora o Bolsa Família ou o Auxílio Emergencial arrancado durante a pandemia.
Paulo “Haddad” ou Fernando “Guedes”?
Desvinculações na mira de Haddad
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Haddad mostrou que o novo arcabouço fiscal é apenas o primeiro passo para um redesenho da política fiscal e econômica do governo Lula. Na verdade, um passo para trás.
Com o novo marco aprovado, e a reforma tributária encaminhada (que mantém o caráter regressivo dos impostos no Brasil, com os pobres pagando e os super-ricos isentos), Haddad quer apresentar uma nova regra a Lula para os gastos vinculados ao Orçamento. Ou seja, seria desatrelar a saúde dos 15% obrigatórios que ela voltaria a ter com o “fim” do teto, e a educação dos 18%. Lembrando que “desvincular” era uma das declaradas obsessões de Paulo Guedes no governo Bolsonaro.
Mas não só saúde e educação seriam desvinculados, como também os reajustes do salário mínimo, consequentemente as aposentadorias, e os salários dos servidores. “Está na hora de a gente ter uma regra mais sustentável”, afirmou o ministro. Haddad aventa a possibilidade de mudar a vinculação por outra regra a fim de supostamente “proteger” os investimentos nessas áreas. Porém, observando o caráter do arcabouço fiscal, da reforma tributária e demais medidas da política econômica do governo, fica bastante difícil acreditar que essa proposta vem realmente para garantir mais recursos aos serviços públicos e aos trabalhadores.