qua jul 24, 2024
quarta-feira, julho 24, 2024

A LIT-QI e seu combate ao reformismo

Quatro décadas apoiando a estratégia da revolução socialista

Albert Camus, filósofo e escritor existencialista francês, dedicou um ensaio ao mito grego de Sísifo. A mitologia conta como Sísifo é castigado pelos deuses que o fazem subir uma grande rocha por um morro, que com esforço consegue chegar até o topo, para logo depois cair rolando de volta; e assim, Sísifo é condenado a esse trabalho inútil e absurdo de subir a grande rocha eternamente sem concluir seu trabalho. Camus, como bom existencialista, ainda que use lucidamente o mito de Sísifo como metáfora do homem moderno, mais especificamente do operário que realiza repetidamente um trabalho alienado sem sentido e sem final, frente à impossibilidade de acabar com o absurdo, propõe que “O próprio esforço para chegar ao topo basta para preencher um coração de homem. É preciso imaginar um Sísifo feliz”[1].

Por: Jorge Martínez

Eduard Bernstein, amigo e discípulo de Engels, acabou negando o marxismo propondo algo semelhante, ao postular que se podia – e devia chegar – ao socialismo, não por meio de uma revolução e pela ditadura do proletariado, mas através da luta por reformas paulatinas que alavancassem a tendência do capitalismo a superar-se a si mesmo, através de um movimento de democratização contínuo. Sintetizou toda sua concepção quando escreveu: “Este objetivo (o objetivo final do socialismo), seja o que for, não significa nada para mim; o movimento é tudo”[2]. Esta, que é a premissa fundamental do reformismo se apresenta como a consciência feliz de Sísifo que propõe Camus. Para o reformismo, o sentido e objetivo da luta no capitalismo é a satisfação da obtenção de reformas, carecendo de toda importância prática, a superação da sociedade capitalista e a chegada ao socialismo.

Que força estranha faz com que os operários, como Sísifo, lutem repetidamente obtendo vitórias para depois perdê-las e ter que começar de novo? León Trotsky tomava consciência desta tragédia no Programa de Transição quando sentenciava que “a crise histórica da humanidade se reduz à direção revolucionária”[3]. Com isso, pretendia mostrar como o imperialismo decadente às portas da Segunda Guerra Mundial, não podia trazer nada de progressivo para a humanidade; e, pelo contrário, demonstrava que as condições objetivas para a revolução e o socialismo não apenas estavam mais que maduras, mas que começavam a apodrecer. Consequentemente, a superação do capitalismo dependia da classe operária poder superar os obstáculos que a separavam da consciência e do programa revolucionário. E, em última instância, o obstáculo decisivo eram as direções majoritárias do movimento operário que conduziam suas lutas para o movimento perpétuo do reformismo.

Por isso, uma das mais importantes tarefas dos revolucionários é romper este círculo vicioso. Romper o feitiço que, como o castigo de Sísifo, condena a classe operária e a toda a humanidade, a suportar o absurdo e decadente sistema capitalista. É conseguir erradicar a influência e o controle da burguesia sobre a consciência da classe operária. Esta influência é expressa diretamente na propaganda e nas ideologias burguesas que naturalizam o capitalismo como a única sociedade possível, ou que é possível transformá-la mediante “boa vontade”, ou as reformas paulatinas.

A LIT-QI e sua origem frente ao reformismo

A LIT-QI surge em meio a várias polêmicas e discussões no interior do trotskismo. A corrente dirigida por Nahuel Moreno foi sendo forjada há quase 80 anos de forma diferenciada das outras correntes trotskistas, baseada na defesa de três questões fundamentais: o programa revolucionário sintetizado no Programa de Transição de Trotsky, uma política de luta e mobilização dirigida à classe operária e a construção de partidos revolucionários independentes das organizações pequeno burguesas, reformistas e centristas no marco de uma internacional centralizada democraticamente. Destas polêmicas se desprendiam políticas diferentes para as diferentes formas do reformismo e a pressão que exerce sobre o trotskismo.

Na década de 70, na crítica ao fenômeno do eurocomunismo e à postura capituladora que Ernest Mandel e o Secretariado Unificado da IV Internacional desenvolveram, está subjacente uma crítica a posturas que capitulam ao reformismo estalinista e à socialdemocracia europeia, que ao renunciar ao núcleo do programa marxista, à ditadura do proletariado, transitam no caminho do abandono da estratégia revolucionária, para mudá-la pela exaltação das formas da democracia burguesa.

Paralelamente a estas discussões se desenvolvida uma forte polêmica em torno a um assunto fundamental da luta de classes: o auge do guerrilheirismo na América Latina entre 1960 e 1979. Grande parte da esquerda de então, se deixou seduzir pela imagem do guerrilheiro em armas contra a tirania, e inclusive parte do trotskismo (outra vez Mandel) capitulou a estas vanguardas não operárias. A partir de nossa corrente foi desenvolvida uma crítica à estratégia guerrilheirista por impor uma tática, válida em certas circunstâncias, como estratégia permanente que substituía o papel revolucionário da classe operária e das massas por um partido-exército.

Mas a crítica não se reduziu aos métodos guerrilheiros, mas direcionou também a seus programas. A grande maioria das organizações guerrilheiras tinham um programa democrático e pequeno burguês que não rompia com o capitalismo, configurando uma espécie de “reformismo armado” que, embora enfrentasse os regimes burgueses a tiros, na prática nunca rompiam com o capitalismo. Durante a década dos oitenta, a grande maioria destas organizações acabaram negociando sua incorporação aos regimes de cada país, inclusive integrando regimes bonapartistas e governos capitalistas, especialmente na América Central.

A luta contra a política de frentes populares do estalinismo também se deu por meio de um confronto com as estratégias reformistas que os agenciavam. Frente ao governo de Allende no Chile, e às variantes de frentes nacionalistas ou inclusive ditos anti-imperialistas, nossa corrente manteve uma crítica permanente e uma política de unidade de ação e de defesa de conquistas quando fosse necessário, sem capitular ao seu programa, chegar ao apoio político nem desistir da tarefa de construir partidos revolucionários independentes.

A chegada de François Mitterrand e o retorno da Frente Popular à França[4], trouxe consigo um grande debate, sobre qual deveria ser a postura do trotskismo perante esse governo, suas medidas “progressivas” e eventuais ataques de frações burguesas de direita. A Organização Comunista Internacional de Pierre Lambert acabou assumindo uma política de apoio ao governo, rompendo assim com a independência de classe frente a um governo burguês, e cedendo às pressões reformistas da frente popular.

Em 1982 é fundada a LIT depois desses debates e tentativas infrutíferas de reconstruir a IV Internacional unificando-se com a CORCI de Lambert. A nova organização internacional surge com a convicção na necessidade de reconstruir a IV Internacional baseada no programa revolucionário, a mobilização permanente das massas para a tomada de poder e a construção do partido revolucionário nos diferentes países e a nível internacional. O combate permanente ao reformismo, tanto à socialdemocracia e ao estalinismo como ao centrismo e ao revisionismo no interior do trotskismo, também foram tarefas cotidianas da política da LIT.

O vendaval oportunista, uma prova decisiva

A década de 80 culmina com fatos históricos que sacudiram o mundo. A queda do Muro de Berlim foi o símbolo de um processo de restauração do capitalismo nos Estados operários burocráticos, mal conhecidos como o “socialismo real”. A restauração capitalista conduzida pela burocracia estalinista em cumplicidade com o imperialismo, enfrentou processos de revolução política nos quais a classe operária desses países se levantou contra a burocracia, mas foi sucessivamente derrotada.

Com a restauração do capitalismo na URSS e nos demais Estados operários, o imperialismo impôs importantes derrotas ao movimento operário mundial. Foi a vitória da política que chamamos de Reação Democrática do imperialismo, com a qual se privilegiava os mecanismos da democracia burguesa para desviar e derrotar processos revolucionários. A onda de privatizações e retrocesso de importantes conquistas e a imposição das políticas neoliberais foi acompanhada de uma ofensiva ideológica contra o socialismo e o marxismo.

Entre a esquerda, estes fatos significaram também uma grande crise. Para muitos, a queda dos Estados operários significou o desvanecimento da perspectiva da revolução e do socialismo, o fracasso foi atribuído ao marxismo e ao bolchevismo, fracasso que, na realidade, só correspondia ao estalinismo, à negação de ambos.

Os retrocessos da classe operária mundial aprofundaram a debilidade de uma perspectiva revolucionária socialista, processo que foi ao encontro de um crescente ceticismo e adaptação ao domínio imperialista e da permanência do capitalismo. O terreno abonado pelo reformismo foi fértil para que se debilitasse a perspectiva do socialismo na esquerda e no movimento operário.

O marxismo foi substituído por ideologias ligadas ao pós-modernismo, a estratégia revolucionária contra o sistema capitalista foi substituída pela fragmentação de movimentos que lutavam por transformações “possíveis”. A social democracia nos governos aplicou as políticas neoliberais, o estalinismo se socialdemocratizou, as organizações centristas se cristalizaram no reformismo, e muitas das organizações revolucionárias ocuparam o campo do centrismo para rapidamente transitar entusiasmados em direção ao reformismo.

Todo este fenômeno significou uma dura prova para os revolucionários. Significou um verdadeiro vendaval oportunista que, como um vendaval, avançou contra as débeis direções revolucionárias consequentes, trazendo consigo sua destruição ou, no melhor dos casos, causando grandes estragos.

A LIT não ficou imune a este processo. A queda dos Estados operários causou muitos debates em seu interior, no qual muitos escolheram o caminho de negar o marxismo e o trotskismo (rompendo com a LIT) ao mesmo tempo em que a pressão pela adaptação à democracia burguesa adquiriu maior força. Esse abandono do marxismo arrastou vários setores da LIT, por diferentes vias, ao reformismo, sobretudo a partir de revisões teóricas, que se expressaram na capitulação na política e nas táticas. Isso colocou a LIT à beira de sua desagregação e dissolução em meados da década de 90. Entretanto, a LIT persistiu.

O retorno dos levantes

Apesar do retrocesso e da situação defensiva da classe operária e das massas no mundo, a rebelião contra os efeitos negativos da ofensiva neoliberal não demorou a explodir. Na América do Sul, rebeliões de massas explodiram em vários países contra seus governos e a aplicação de ferozes planos antioperários.

Governos caíram na Argentina, Equador e Bolívia, enquanto que no mundo uma nova vanguarda se levantava contra os efeitos da globalização imperialista. As cúpulas dos mais ricos em Seattle, Genebra, Davos se converteram em verdadeiros campos de batalha em que o capitalismo foi novamente questionado, propondo-se a alternativa de “outro mundo é possível”. Porém, frente à ausência de verdadeiras direções revolucionárias que encaminhassem esses novos levantes para uma alternativa anticapitalista, esses processos foram canalizados para saídas reformistas, enchendo o chamado movimento antiglobalização de conteúdo reformista.

Os levantes na América Latina foram canalizados para uma primeira onda de “governos alternativos” que sob diferentes formas (governos de frente popular, governos nacionalistas burgueses) tiveram em comum a aplicação das políticas neoliberais nas quais seus predecessores fracassaram, graças à matização destas, mediadas com o assistencialismo e a cooptação das burocracias sindicais e a grande maioria da esquerda reformista.

A LIT teve o mérito de não sucumbir a este fenômeno, mantendo vivo o programa revolucionário, a independência de classe e a estratégia da revolução socialista. Enquanto outras correntes provenientes do trotskismo foram deslisando para o reformismo.

Surgiram os chamados partidos anticapitalistas, nos quais estas correntes trotskistas se fundiam com os reformistas. As fronteiras e distâncias entre eles se esfumaram, convertendo-se em sua estratégia principal, dissolver seus partidos em movimentos mais amplos como o NPA na França e o PSOL no Brasil. Além disso, passaram a fazer parte de governos de Frente Popular e nacionalistas burgueses.

A LIT, à medida em que ia se recuperando e crescendo, foi sentindo, de forma cada vez mais forte, a pressão da democracia burguesa e do reformismo. As elaborações em torno ao “vendaval oportunista” e a atualização programática que aprofundou no legado da III Internacional sobre o parlamentarismo e o necessário combate ao reformismo, ao mesmo tempo que foi estudando a fundo os processos e as pressões sobre os revolucionários no século XXI, implicaram novas rupturas de setores que já haviam se adaptado; setores que acabaram rompendo com a LIT em 2016 para seguirem livres o curso de integração a projetos reformistas, especialmente no Brasil e Portugal.

Atualmente, depois do fracasso e degeneração de vários destes projetos de governos de colaboração de classes, em muitos países, a direita burguesa recuperou o governo, para aplicar novamente mais ataques contra a classe operária, o campesinato, os indígenas e a juventude. Ao mesmo tempo em que novas crises econômicas desfizeram a ilusão de um capitalismo todo poderoso, a ordem de dominação imperialista no mundo, imposto com a restauração do capitalismo nos Estados operários, se desmorona.

Como antes, as massas lutam contra as políticas de ajuste e de ataque às suas condições de vida. A luta contra as opressões e contra a precarização e criminalização da juventude adquirem novo ar. Processos revolucionários e pré-revolucionários voltam a surgir na América Latina, como no Chile e na Colômbia. A ameaça do colapso ambiental e a crise climática causada pelo capitalismo é uma realidade cada vez mais próxima.

Estas novas lutas também propõem o constante retorno do reformismo, seja com suas velhas concepções clássicas, ou sob novas formas neorreformistas, que já não reivindicam o socialismo, mas uma pretensa democracia radical dentro do capitalismo. A tarefa dos revolucionários/as é combater não apenas a burguesia, mas também seus agentes. É desmascarar o reformismo como agentes da burguesia e do imperialismo, mostrar à classe operária e às massas exploradas o papel desses setores.

Hoje voltam a surgir governos de colaboração de classes. Boric no Chile, Petro na Colômbia, Lula no Brasil; mas desta vez não têm as margens econômicas que tiveram a seu favor no passado, para outorgar reformas e concessões às massas para sufocar e desviar as lutas. Esta nova situação se apresenta como um novo desafio para a LIT, pois novamente as pressões do reformismo se fortalecem, e a necessidade de enfrentá-las com políticas e um programa correto se tornam uma necessidade cada vez mais premente.

A LIT teve o mérito histórico de manter-se – não sem erros sectários e desvios oportunistas – no marco do marxismo, o legado de Nahuel Moreno e nossa corrente e a classe operária. É nesses elementos, onde se encontrará novamente as ferramentas para continuar a luta contra os obstáculos para que a classe operária derrote o capitalismo imperialista.

Não há deuses que impeçam que a roda da história chegue ao topo, e que, ao superar o capitalismo, a classe operária possa, por fim, empreender o caminho do socialismo. É a tarefa que a LIT se dedicou há 40 anos e na qual continua com convicção, abnegação e entusiasmo revolucionário.


[1]     Camus, Albert, O Mito de Sísifo.

[2]     E Bernstein, ‘The theory of collapse and colonial policy’ Neue Zeit January 19 1898, in JM Tudor, op.cit. pp168–69. Citado em: Mulholland, «Quando Bernstein assaltou a “ortodoxia” marxista». Disponível em: https://ctxt.es/es/20161012/Politica/8882/socialismo-marxismo-Bernstein-revolucion-rosa-luxemburgo-psd-socialdemocracia.htm

[3]     Trotski, Programa de Transição.

[4]     A França já havia vivido uma experiência de governo de Frente Popular com León Blum em 1936. O fenômeno a política para as frentes populares é desenvolvida amplamente por Trotsky em seu trabalho Onde vai a França?

tradução: Lilian Enck

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