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40 anos da LIT-QI

Trotskismo e estalinismo, polêmicas de ontem e hoje

novembro 16, 2022

A guerra da Ucrânia dividiu as organizações de esquerda pelo mundo, poucas foram as organizações que se posicionaram em defesa da resistência ucraniana. Algumas se posicionaram contra a guerra, o que na prática é defender a capitulação ucraniana à Putin, e outras defenderam abertamente a invasão russa à Ucrânia. Esse posicionamento escandaloso, como faz o PC em Portugal e em outros países, está assente nas bases ideológicas da corrente burocrática estalinista que, se parecia colocada na lata do lixo da história com a queda do Muro e a explosão da maior parte dos PCs pelo mundo, agora se faz presente em diversas correntes que se apresentam como revolucionárias. Por isso, entender a origem e as bases da corrente estalinista é parte da construção de um programa para atuar hoje.

Po:r Joana Salay, de Portugal

Estalinismo e trotskismo, correntes opostas no movimento operário

A história dos movimentos revolucionários é construída através de polêmicas. Perante os novos fatos da realidade é espectável que surjam diferenças sobre como interpretar e atuar. Assim foi feita a história das internacionais comunistas, que foram se construindo a partir da experiência das lutas da classe operária internacional.

Com a degeneração da URSS e da III Internacional, surgiram duas importantes correntes dentro do movimento operário que apresentavam visões e programas opostos para o Estado soviético: trotskismo e estalinismo. A IV internacional, fundada por Trotsky em 1938, é a expressão política desse processo.

Ao longo do século XX o estalinismo foi a principal corrente contrarrevolucionária que intervinha por dentro dos processos revolucionários para os conter e assim garantir o acordo de coexistência pacífica com o imperialismo. E sua influência teórico-metodológica permanece em boa parte da esquerda atual.

A LIT se construiu no combate ao processo de adaptação à democracia de burguesa de parte do movimento trotskista, mas também no combate sistemático ao estalinismo e suas ideias. É por isso que na comemoração dos 40 anos da nossa organização internacional queremos retomar parte dessas polêmicas que servem não apenas de aprendizado histórico, mas também de lições para a atuação do movimento revolucionário.

As bases do estalinismo

A burocracia soviética que deu origem à corrente estalinista não surgiu como continuidade do programa da revolução de 1917, mas sim da sua degeneração. A guerra civil na Rússia, fruto da contrarrevolução burguesa, foi responsável pela morte de parte da vanguarda operária que fez a revolução. Por outro lado, o não avanço da revolução operária em países como a Alemanha, levou a um forte isolamento do Estado soviético. A burocracia é consequência das limitações que esse processo impôs à URSS, como uma nova casta social dentro da Rússia, começa a disputar os rumos do Estado operário para a garantia dos seus próprios benefícios. É por isso um sector contrarrevolucionário.

Em 1924, Bukharin e Stalin elaboram a teoria do socialismo num só país, defendendo a possibilidade de se chegar ao socialismo na esfera nacional. Esta elaboração era oposta não só a de Trotsky, mas também a de Marx e Engels, que consideravam impossível superar o capitalismo só na esfera nacional e foi base para vários elementos da degeneração estalinista. À frente do Estado soviético a burocracia criou diversas teorias justificativas de forma a defender os seus privilégios. Essas teorias não ficavam restritas apenas à URSS, mas através da III Internacional, também degenerada, era transplantada pelos PCs pelo mundo.

Ao serviço da contrarrevolução, a burocracia impôs um regime repressivo no interior do Estado soviético e das organizações políticas bolcheviques. Os conhecidos processos de Moscou é a expressão da perseguição sanguinária que Stalin teve de fazer contra os seus opositores e principalmente contra os principais dirigentes da revolução de 1917.

Para retirar os direitos das mulheres no Estado Operário, a burocracia criou um culto à família que foi depois aplicado por todos os PCs. O PC italiano, por exemplo, em meados da década de 1940 era parte de um projeto de defesa da família como fundamento da nova república, empenhado em evitar “questões morais divisivas”. Eram contra a legalização do divórcio[1], afirmando que o país não tinha maturidade para “legislações tão avançadas”. O mesmo processo ocorreu com os direitos conquistados pelos outros setores oprimidos como os LGBTIs ou as nacionalidades oprimidas.

Em 1935, no sétimo congresso da IC, se oficializa a política da frente popular como estratégia. A política que surge como uma resposta ao crescimento do fascismo na Europa, consiste na defesa da unidade política das organizações operárias e revolucionárias com setores supostamente progressivos da burguesia. E é aplicada permanentemente pelos PCs, levando o estalinismo para a colaboração com a burguesia e ao desarmamento do movimento operário para enfrentar a própria ascensão fascista.

Assim Trotsky sintetiza esta teoria: “A conclusão que [os dirigentes stalinistas] tiraram de tudo isso é que é necessária a sólida unidade de todas as forças ‘democráticas’ e ‘progressistas’, de todos os ‘amigos da paz’ (essa expressão existe) para a defesa da União Soviética, por um lado, e da democracia ocidental, por outro (…) O eixo de todas as discussões no congresso foi a última experiência na França sob a forma da chamada ‘Frente Popular’, que era um bloco de três partidos: Comunista, Socialista e Radical[2].

A teoria das frentes populares foi aplicada de distintas formas pelo mundo, mas a sua essência foi sempre a mesma: buscar o campo burguês progressivo[3].  

O surgimento de novos Estados Operários

Apesar da política contrarrevolucionária do estalinismo, aconteceram no pós-guerra diversos processos revolucionários que acabaram por expropriar a burguesia e criar novos Estados Operários, como foi o processo Cubano e Chinês, Estados que já nascem sem que a classe operária exercesse o poder. Nas décadas de 1960 e 1970 essas burocracias adotaram a estratégia da guerrilha que ganhou a adesão de milhares de ativistas, levando inclusive à ruptura do PC Chinês com o Kremlin. No entanto, essa ruptura não era política, pois continuaram a defender a unidade com setores progressistas das burguesias nacionais.

É inclusive Mao Tse Tung quem vai dar um corpo teórico à teoria da Frente Popular, com a teoria das contradições.

 “Quando o imperialismo desata uma guerra de agressão contra um país [semicolonial], as diferentes classes deste, com exceção de um pequeno número de traidores, podem se unir em uma guerra nacional contra o imperialismo. Então, a contradição entre o imperialismo e o país em questão passa a ser a contradição principal, enquanto todas as contradições entre as diferentes classes no país ficam relegadas temporariamente a uma posição secundária e subordinada (…) Desse modo, se num processo há várias contradições, necessariamente uma delas é a principal, a que desempenha o papel dirigente e decisivo, enquanto as demais ocupam uma posição secundária e subordinada. Portanto, ao estudar qualquer processo complexo em que existam duas ou mais contradições, devemos nos esforçar ao máximo para descobrir a contradição principal.”[4]

Em essência, maoismo e estalinismo acabam por servir ao mesmo projeto estratégico de conciliação de classes, oposto ao princípio revolucionário de independência de classe como condição para a revolução proletária.

A restauração capitalista e a explosão do Leste

O chamado período de “desestalinização” iniciado a partir do XX Congresso do PCUS, no qual Nikita Kruschev apresentou seu famoso informe secreto que denunciou os crimes de Stalin, não significou uma ruptura com a essência do estalinismo: a coexistência pacífica com o imperialismo, o abandono da revolução mundial, a negação da democracia operária, a política internacional de colaboração de classes por meio das frentes populares e, a partir de tudo isso, as sistemáticas traições a todas as revoluções que ameaçassem seus interesses e seus acordos com a burguesia e o imperialismo.

Por não ter havido uma ruptura de conteúdo com o programa estalinista, é que destas correntes oriundas do estalinismo, não surgiu qualquer oposição ao processo de restauração capitalista que foi ocorrendo na URSS, independentemente das críticas que alguns possam ter feito à falta de democracia interna. Após se tornar secretário-geral do partido comunista da União Soviética em 1985, Gorbachov e a burocracia do PCUS iniciaram a Perestroika e a Glasnot, introduzindo mudanças na economia e nas relações internacionais e aprofundando a restauração capitalista. A previsão de Trotsky se confirmou e a burocracia, convertida no agente da burguesia mundial no Estado Operário, destruiu as formas de propriedade socializadas e restaurou o capitalismo.  E o estalinismo com anos de degeneração e colaboração de classes foi se adaptando e se transformando diretamente num programa burguês, sem nunca deixarem de ser estalinistas.

Queda do muro de Berlim, 1989

Por isso, a queda do Muro em 1989 levou à desmoralização dos partidos comunistas pelo mundo. Ficou escancarado que a restauração capitalista havia ocorrido pelas mãos da própria burocracia, sem qualquer invasão imperialista, como havia vaticinado Trotsky já em 1938: “O prolongamento de seu domínio (da burocracia) abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista.”[5]

O trotskismo se formou como corrente política revolucionária afirmando que para impedir a restauração capitalista na URSS seria necessária uma revolução política que retirasse a burocracia do poder e colocasse de volta o Estado operário nas mãos na classe operária. Não tendo ocorrido a revolução política, a burocracia acabou por restaurar o capitalismo.

Estalinismo hoje

Apesar de as teorias estalinistas terem se demonstrado contrarrevolucionárias e ineficazes para a luta da classe trabalhadora, começam a (re)aparecer novos grupos que de forma aberta ou escamoteada defendem a essência do estalinismo.

Domenico Losurdo, historiador italiano, é usado como referência para a maior parte destes grupos. Losurdo se diz não estalinista, mas a sua elaboração tem com centro justificar os absurdos cometidos pelo estalinismo. Utiliza as repressões imperialistas como forma de justificar a repressão estalinista. É evidente que o imperialismo usa, usou e usará da repressão para defender seus interesses. Do mesmo método se utilizou a burocracia estalinista, da repressão à vanguarda proletária no mundo para defender os interesses da burocracia e não da revolução. Um raciocínio semelhante faz Francisco Martins Rodrigues, português que rompe com o PCP a partir da critica à teoria da frente popular, mas continua a justificar os métodos e traições estalinistas como um mal necessário.

O balanço histórico do stalinismo é a restauração do capitalismo nos ex Estados operários

Acreditamos que não é possível um programa revolucionário sem ter uma apreciação crítica perante a atuação e elaboração estalinista. E assim voltamos ao início deste texto, as posições de alguns grupos da esquerda sobre a guerra da Ucrânia, por exemplo, não é mera obra do acaso. A defesa de Putin e da invasão russa à Ucrânia está assente na teoria dos campos progressivos onde, aparentemente, Putin enfrenta os interesses do imperialismo e a Ucrânia seria representante dos EUA e da OTAN. Essa posição simplesmente ignora que há uma invasão militar à uma nação historicamente oprimida e acaba por capitular à burguesia Russa, que muito tem a lucrar com a invasão da Ucrânia. Não existe um campo burguês progressivo e à classe trabalhadora do mundo todo interessa defender a resistência ucraniana que se enfrenta diretamente com os vários campos burgueses envolvidos.

Vemos a mesma justificativa teórica aparecer agora com a ascensão da extrema direita. Sustentam que frente à ameaça fascista, as organizações proletárias deveriam aderir à uma frente ampla que defenda a democracia contra o fascismo. Ainda que seja correto construir uma unidade de ação contra as forças golpistas, a adesão política à frente ampla leva a derrota estratégica da classe trabalhadora. Como fizeram, por exemplo, o PCB e a UP no Brasil, se somando à campanha do PT de forma acrítica, ajudando a criar mais ilusões na frente ampla com a burguesia.

E, ao serviço dos campos burgueses progressivos, se necessário o estalinismo pode não só apoiar acriticamente a frente popular como também aderir aos governos burgueses, como fez o PCP que esteve 6 anos a sustentar um Governo do PS que manteve todos os requisitos de austeridade da União Europeia.

No Chile, o PC participou do governo neoliberal de Bachelet, e agora, mesmo depois da revolução, propõe um programa por dentro do regime e da institucionalidade burguesa. A sua atuação na Assembleia Constituinte foi de mediador e não de representante dos interesses dos trabalhadores. “Ameaçou rodear de mobilizações a Convençao Constitucional e nunca cumpriu. Dentro da convenção, votavam a favor de algumas propostas mais “radicais” para não perder o contacto com os setores independentes e não se queimarem com a população. No entanto, o verdadeiro papel do PC era funcionar como uma ligação entre os setores mais radicais e o PS e Frente Ampla. Quando as posições mais radicais eram derrotadas, o PC ajudava a conduzir as negociações entre independentes e partidos. E enquanto tinham um discurso radical na convenção, faziam exatamente o contrário no governo. Enquanto votavam a favor da nacionalização do cobre, sua porta voz no Governo, Camila Vallejo, dizia na televisão que não haveria nacionalização, tranquilizando os grandes empresários.”[6]

De conteúdo, os setores estalinistas, novos e antigos, mantêm o método de abandono do critério de classe para analisar os processos políticos e defendem um suposto campo progressivo a qualquer custo.

A continuidade do trotskismo como oposição às traições estalinistas

A Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional foi e é parte ativa no combate às políticas contrarrevolucionárias do estalinismo. Combatemos ativamente o guerrilheirismo que, com a vitória da revolução cubana, foi apresentado para a vanguarda latino-americana como tática permanente para todos os países, e acabou por levar à derrota a vanguarda de toda uma geração incluindo parte importante do trotskismo. Combatemos também as chamadas frentes populares e suas variantes. Tendo como exemplo o processo Francês de 1981 quando o PCF aderiu ao Governo de Miterrand, combatemos não só o PC, mas também setores trotskistas que tinham uma política de capitulação em relação ao governo, como a corrente lambertista. Construímos a nossa corrente combatendo os métodos do estalinismo, de mentiras, calúnias, repressão e falta de democracia operária. E muitas vezes em oposição aos partidos estalinistas, fomos vanguarda e parte ativa da luta dos setores oprimidos.

Passados 40 anos da nossa fundação, estamos convencidos que a realidade nos brinda com novos desafios que exige dos revolucionários uma atualização programática. No entanto, responder aos novos desafios, passa também por resgatar e aprender com as lições do passado. E frente a estes novos fenómenos não vale a pena reeditar políticas que se mostraram equivocadas, mas sim, buscar construir junto da classe trabalhadora um programa que responda aos problemas da atualidade e parta dos princípios fundamentais do movimento revolucionário: a independência de classe e a defesa da ditadura do proletariado.


[1] https://storicamente.org/italian_divorce

[2]O congresso de liquidação da Comintern, em Escritos, T. VII, vol. 1, pp. 133 e 135-6

[3] Nahuel Moreno, A teoria dos “campos burgueses progressivos”, 1982.

[4] Mao, Obras Escolhidas, T. I

[5] Leon Trotsky – Programa de Transição: A agonia mortal do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional

[6] https://www.vozdelostrabajadores.cl/a-3-anos-del-18-de-octubre-donde-estamos-como-seguimos

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