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sexta-feira, abril 19, 2024

A crise institucional. Do governo Conte-um ao governo Conte-dois

Os jornalistas italianos definiram-na como “a crise governamental mais louca do mundo”. E, de fato, o que aconteceu na Itália durante as férias de verão na Europa, no mês de agosto, que é o mais quente do ano, em que as escolas e as principais fábricas fecham para as férias tem características surreais, que só podem ser explicadas fazendo referência às características particulares do atual contexto econômico, social e político europeu.

Por: Fabiana Stefanoni (publicado em Correio Internacional – Novembro de 2019)
Os fatos podem ser assim resumidos: em plenas férias de verão, quando o Parlamento italiano se preparava para fechar as portas para as férias habituais de agosto, o ministro do Interior Matteo Salvinio ministro do Interior mais racista da história da Itália republicana (o caso da capitã Carola, conhecido em todo o mundo, é emblemático) decidiu eliminar a confiança em seu governo, o governo Conte-um. Tudo isso foi decidido e anunciado por Salvini entre um coquetel e outro em um local próximo à praia de um famoso resort turístico italiano…
Antes da crise
O governo Conte-um era um governo recente, constituído em junho de 2018: após alguns meses de negociações (as eleições políticas haviam ocorrido no início de março), dois dos partidos que obtiveram amplo consenso, a Liga de Salvini (17,4%) e o Movimento Cinco Estrelas (M5S, conhecido como “partido de [Beppe] Grillo”, 32,7%), concordaram em um governo comum, nomeando um certo Giuseppe Conte como primeiro ministro, até então advogado e professor universitário desconhecido pela maioria.
Os dois partidos em questão são dois partidos de base pequeno-burguesa, caracterizados por uma retórica populista e chauvinista, que cresceram eleitoralmente em função da crise econômica e social que atravessa toda a Europa. Amplos setores da pequena-burguesia empobrecida e furiosa, juntamente com as massas desempregadas (na Itália, o desemprego, especialmente na região sul do país, atinge porcentagens muito altas), na ausência de um partido à frente da classe operária, em condições de catalisar e orientar em um sentido revolucionário o descontentamento generalizado, depositaram sua confiança nesses dois partidos, vistos como “antissistema”.
O M5S (o atual líder, Luigi Di Maio, também novo na política, até alguns anos atrás vendia amendoins nos estádios durante partidas de futebol) ganhou amplo apoio, principalmente no sul, prometendo uma “renda de cidadania”, isto é, um subsídio permanente para as massas desempregadas (promessa que não cumpriu ao chegar ao governo). Enquanto isso, a Liga de Salvini ganhou votos ao promover a xenofobia, prometendo “trabalho e casa para os italianos”, menos impostos para pequenas empresas e favorecendo os piores impulsos dos estratos pequeno-burgueses, em particular a aversão aos imigrantes, identificados como “aqueles que roubam o trabalho dos italianos”.
O crescimento eleitoral desses partidos está inserido em um contexto político europeu que, nos últimos anos, como evidenciado pelas eleições europeias (aquelas que elegem os membros do Parlamento Europeu; as últimas foram em maio de 2019), viu a afirmação eleitoral de partidos da extrema direita ou, de modo geral, de uma direita xenofóbica e racista: a Frente Nacional de Marine Le Pen na França, o partido de Orbán na Hungria, o Ukip de Farage na Grã-Bretanha e, é claro, a Liga de Salvini na Itália. Além desses partidos, que representam uma direita populista “clássica”, surgiram novos partidos na Europa, sempre com uma base pequeno-burguesa (mas com fortes raízes também entre os desempregados), que pregavam a possibilidade de uma “revolução” sem alterar o sistema, simplesmente expulsando a “casta” de políticos corruptos: o M5S é um deles [1].
A grande burguesia e seus partidos
A grande burguesia italiana, que se orgulha de ter entre suas fileiras alguns dos milionários mais ricos do mundo (basta pensar apenas na família Agnelli, a principal acionista da Fiat, agora FCA, ou nos gigantes dos hidrocarbonetos como os Eni), não viu com bons olhos a afirmação eleitoral desses dois partidos: ela preferiria poder contar, na gestão das políticas de seu governo, com os seus partidos, que considera mais controláveis e mais diretamente ligados aos seus interesses, em particular o Partido Democrático (PD).
O PD é um partido que deriva da evolução do antigo Partido Comunista Italiano (stalinista), que, após o colapso da União Soviética, rapidamente se transformou de um partido operário (de colaboração de classes) em um partido totalmente burguês. A história particular do PD lhe garante, ainda hoje, os laços com a burocracia dos grandes aparatos sindicais italianos, em particular o Cgil (cerca de seis milhões de filiados entre trabalhadores e aposentados), uma burocracia que compartilha com o PD uma origem comum nas fileiras do antigo Partido Comunista.
Recentemente, imediatamente após a crise do governo, o componente ultra-liberal do PD (liderado pelo ex-primeiro-ministro Matteo Renzi) deixou o partido, dando origem a uma nova formação política, chamada “Itália Viva”.
Tanto o PD quanto o Itália Viva (definidos como partidos de centro-esquerda) desfrutam dos favores de grande parte dos capitalistas italianos. Os outros setores (minoritários) da burguesia referenciam-se em outros partidos, em particular no Força Itália, o partido de Berlusconi: são os grupos direta ou indiretamente ligados às próprias empresas de Berlusconi, que é um rico capitalista mas que, quando no passado esteve no governo [2], “jogou para si mesmo”, defendendo prioritariamente os interesses de seu grupo capitalista em detrimento de outros. Hoje o partido Berlusconi está em crise (também devido à idade avançada do caudilho) e Renzi, com o “Itália Viva”, provavelmente aspira a obter apoio entre os setores que, até recentemente, tinham como referência o “Cavaliere” (na Itália os jornalistas chamam Berlusconi dessa maneira).
A grande burguesia e os partidos populistas
Quando a Liga e o M5S venceram as eleições, em 2018, e conseguiram estabelecer seu governo, a grande burguesia italiana, como dissemos, não estava entusiasmada: seus partidos de referência, nos quais ela de fato confiava, estavam fora do governo e deveriam se adaptar a dois partidos que ela não controlava. É bom ressaltar que esses dois partidos populistas (Liga e M5S) nunca tiveram nenhuma intenção de romper com a burguesia italiana (para eles o capitalismo é sagrado), muito menos com a europeia: na campanha eleitoral, capitalizaram a hostilidade das massas empobrecidas contra as políticas de austeridade da Troika (FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu) dizendo que iriam romper com a UE. Mas em seguida, já no governo, abandonaram essas consignas e se disciplinaram (diferindo apenas na retórica) às demandas do capital financeiro europeu.
Imediatamente, assim que o governo da Liga-M5S foi constituído, a grande burguesia italiana, graças ao forte controle dos principais jornais e canais de televisão, iniciou uma campanha contra o próprio governo, apontando em particular a xenofobia de Salvini e seus vínculos com grupos fascistas (Casapound). A xenofobia e os laços de Salvini com os grupos fascistas são fatos reais e graves, contra os quais milhares de jovens e trabalhadores, durante o período do governo Conte-um, foram às praças, organizando e participando de combativas manifestações de protesto. Estávamos ao seu lado, em total acordo com a indignação que aquelas praças expressavam. Mas a suposição de que a grande burguesia italiana e seus partidos de repente se tornaram paladinos do antirracismo e do antifascismo tem algo de tristemente ridícula: quando estava no governo, o PD apoiou leis xenofóbicas (como o caso do ex-ministro do PD Minniti, que firmou acordos com a Líbia para impedir o desembarque de imigrantes na costa italiana), e nas regiões e cidades que administra, deu espaço a grupos fascistas, permitindo que eles se enraizassem nos bairros mais pobres.
A verdade é que a burguesia italiana, neste momento de crise econômica e com a perspectiva de uma nova recessão, não pode se contentar com “cavalos” indisciplinados e mal adestrados como Salvini e Di Maio. Ela precisa de algum “cavalo” confiável para o governo, ao qual recorrer em caso de necessidade. Os governos dirigidos pelo PD (em particular os liderados por Renzi) foram os que, na Itália, deram os presentes mais preciosos ao grande capital em seu confronto com a classe trabalhadora para recuperar a taxa de lucro (presentes dados em comum acordo com as grandes burocracias sindicais): desmantelamento das leis que impediam demissões sem motivo justificado (cancelamento do artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores), expulsão de delegados sindicais combativos das fábricas e limitações do direito de greve nos setores público e privado (Lei 146 e “Acordo da Vergonha”), aumento drástico da idade mínima para a aposentadoria com redução do valor das pensões (Lei Fornero), etc.
A grande burguesia italiana sabe que, se pegar o telefone e ligar para os líderes do PD (e agora também para os de Itália Viva, de Renzi), eles responderão imediatamente. Mas com Salvini a coisa é diferente: ele e seu partido, para crescer eleitoralmente e governar —e assim participar do “presépio burguês”— tinham e precisavam do apoio da pequena burguesia e dos desempregados. E, para obter esse apoio, precisavam incentivar o ódio xenofóbico, convocar “protestos nas praças” e dar alguns doces para a sua base, disparando de vez em quando alguns pequenos golpes contra os representantes do grande capital. Não tendo muito apoio econômico da grande burguesia local, Salvini não hesitou em fazer acordos secretos com capitalistas estrangeiros, como fez com os magnatas russos, a quem prometeu acordos privilegiados sobre o petróleo em troca de rublos equivalentes a 65 milhões de euros (uma espécie de “Russiagate” italiano).
Salvini precisava se apoiar nas praças (também para enfrentar as muitas disputas) e é por isso que ele tenta conquistar setores da polícia com uma propaganda de características “anti-institucionais”, exaltando as operações das forças policiais, mesmo quando elas agem contrariamente às leis do Estado (como no caso do assassinato de carabineiros por Stefano Cucchi). Sempre que precisa garantir apoio nas ruas e nas praças, Salvini mantém estreitos acordos com os bandos fascistas, o que compromete a “boa cara” da burguesia italiana, que prefere jogar outras cartas: sempre que possível, tenta impor à classe trabalhadora misérias e privações, fingindo manter um “rosto humano” (o PD, como lembramos acima, não deixa de fazer acordos com fascistas, mas o faz de maneira mais educada e silenciosa: concede a eles espaços nas cidades ou regiões que administra… sempre que não fale sobre eles).
Em resumo: Salvini não estava indo bem com a grande burguesia, não porque ele tivesse políticas contrárias aos seus interesses econômicos ou contra a Troika europeia, muito menos porque ele era xenófobo e racista: Salvini não questionou nem o capitalismo nem a UE, e “simplesmente” exacerbou a xenofobia já implementada pelos governos anteriores liderados pelo PD. Salvini não se dá bem com a burguesia italiana porque não é confiável no momento em que a grande burguesia se sente em crise. É mais ou menos como acontece na vida, com doenças que nos afetam em uma certa idade: se a dor de cabeça é bem suportada aos vinte anos, quando se é forte e com energia, na velhice pode se tornar um problema quase incapacitante. Salvini era uma dor de cabeça que o capital italiano não podia suportar em um momento de crise econômica, social e institucional da burguesia de todo o continente (pensamos apenas nas tensões pelo Brexit).
De Conte-um para Conte-dois
A Liga de Salvini, por ocasião das últimas eleições europeias de maio de 2019, graças ao fato de terem estado pouco tempo no governo e, portanto, não terem tido tempo de decepcionar as expectativas de seu eleitorado popular, capitalizou uma porcentagem muito alta, 34,33%, tornando-se de longe o maior partido da Itália. Fortalecido com esse resultado, Salvini decidiu se arriscar: vendo que as pesquisas eleitorais davam a vitória a um governo de direita sob sua liderança em caso de eleições, decidiu retirar confiança no governo Conte. Mas, como dizem na Itália, “ha fatto i conti senza l’oste” [“chegou a um acordo sem o anfitrião”]: neste caso, o anfitrião é a grande burguesia italiana.
Salvini contava com o fato de que o atual secretário do PD (Zingaretti) estava interessado em ir às eleições para mudar a composição de seu grupo parlamentar, que atualmente tem uma maioria que apoia Renzi (que está se preparando há algum tempo para fundar um novo partido). O que Salvini não entendeu é que, na Itália, se a burguesia chama, os líderes do PD respondem: e é por isso que, sob a pressão dos principais grupos industriais e financeiros, foi alcançado um acordo palaciano para evitar as eleições. O PD e Renzi fizeram uma aliança com o M5S, com o apoio também da esquerda reformista (Esquerda Italiana), que ganhou um subsecretário. Não é só isso: até a esquerda reformista que se autodenomina comunista (Refundação Comunista) apoiou de fora o nascimento do novo executivo. Paradoxalmente, embora os ministros e os partidos que apoiam o governo tenham mudado, o chefe do governo é o mesmo: Giuseppe Conte. Trump e Merkel também foram a campo para oferecer seu endorsment [apoio] a esta operação e impulsionar o nascimento do governo Conte-dois. Governo que, após algumas semanas de negociações em meados do verão, nasceu finalmente no início de setembro.
A coisa (não) muda
Agora, o governo Conte-dois está se preparando para lançar uma manobra financeira que, mais uma vez, fará cair o custo da crise nas costas das massas trabalhadoras e pobres. Não se observa nenhuma mudança de rota significativa, nem sequer no terreno da xenofobia: depois de haver patrocinado campanhas contra o massacre de imigrantes no Mar Mediterrâneo, o PD agora está se preparando para renovar os tristemente célebres “acordos da morte” [3] com a Líbia. Não apenas isso: não procura sequer abolir os dois Decretos de Segurança (“Decretos Salvini”) do governo anterior, aqueles que punem com anos de prisão e com multas altíssimas tanto aqueles que ajudam pessoas que estão se afogando no mar, como aqueles que bloqueiam uma rua com um piquete de greve, ou aqueles que ocupam casas vazias. Estão previstos alguns pequenos retoques a essas leis, mas o desenho geral permanece inalterado.
Está claro: a grande burguesia quer que o novo governo coloque em campo aquilo que serve para preservar seus lucros, todo o resto —até as leis xenofóbicas e liberticidas do governo anterior— não é mais uma prioridade e talvez, portanto, possa se tornar útil (veja-se a possibilidade de reprimir greves com mais facilidade usando as próprias regras dos decretos de Salvini).
Mas há outro “anfitrião” com o qual é preciso se colocar de acordo: a luta de classes. Nas últimas semanas, na Itália, houve manifestações oceânicas de jovens em defesa do clima: em 27 de setembro, pelo menos um milhão de estudantes foram às ruas contra o aquecimento global e a poluição que devastam o planeta. Também graças à convocação da Frente de Luta pela Não Austeridade, no mesmo dia alguns setores de trabalhadores entraram em greve: desde operários de fábricas importantes  (Pirelli, FCA, Ilva) a trabalhadores dos transportes (ferroviários) e outros, como professores das escolas primárias e secundárias. O governo disse “concordar com o protesto”, mas quando se tratou de legislar, redigiu um “Decreto sobre o Clima” que não apenas não sanciona as indústrias poluidoras, mas também fornece, pelo contrário, incentivos substanciais à indústria automotiva… Ou seja, uma das mais poluidoras!
Mas os jovens estudantes não são os únicos que se mobilizam na Itália. Na onda de uma situação europeia que está se tornando explosiva —protestos multitudinários na Catalunha, protestos em massa contra a guerra da Turquia contra os curdos, tensões muito fortes na Grã-Bretanha sobre o Brexit, etc.— a temperatura da luta começa a tornar-se escaldante também na Itália. O grande capital é eficaz para fazer os trabalhadores pagarem pela crise e se prepara para novas realocações e demissões. Mas a classe trabalhadora não estará à margem, nem se curvará ao “diktat” de uma burocracia sindical cada vez mais corrupta e cúmplice. O que testemunhamos em 27 de setembro —centenas de milhares de jovens nas ruas— em breve poderá se repetir com a classe trabalhadora como protagonista. O Partido de Alternativa Comunista (PdAC), seção da LIT – Quarta Internacional na Itália, fará tudo para que isso aconteça. (20/10/2019)
 
[1] Também o Podemos no Estado espanhol e o Syriza na Grécia são a expressão do mesmo fenômeno. O M5S agora parece colocado mais “à direita” em relação aos outros dois: isso provavelmente tem a ver com o fato de que na Itália, na última década, as mobilizações de trabalhadores, de jovens, de mulheres foram menos massivas do que aquelas que atravessaram as Penínsulas ibérica e grega.
[2] Berlusconi foi o chefe do governo por quatro vezes entre 1994 e 2011, mantendo essa posição por 12 anos.
[3] Em 2017 (governo Gentiloni, líder do PD), o então ministro do Interior, Marco Minniti, assinou um acordo com a Líbia que prevê contribuições financeiras para a Líbia rastrear a costa e aprisionar todas as pessoas desempregadas que tentam fugir para a Europa. Como várias investigações jornalísticas mostraram e como denunciado pelas ONGs, os capturados são trancados em campos de concentração, onde são submetidos a maus-tratos e tortura.

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