qui set 19, 2024
quinta-feira, setembro 19, 2024

Publicado o livro "Mulheres Trabalhadoras e Marxismo"

A editora Marxismo Vivo acaba de lançar o livro Mulheres trabalhadores e marxismo, escrito por Carmen Carrasco e Mercedes Petit, que recolhe as principais elaborações da corrente morenista sobre a opressão feminina e uma concepção de classe da luta pela emancipação da mulher.

 

Apresentamos o prefácio do livro, escrito por Cecília Toledo, membro do Conselho Editorial da revista Marxismo Vivo e autora do livro “Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide”, publicado pela Editora Sundermann, e que brevemente será, também, lançado em espanhol.

 

PREFÁCIO

 

Começo este prefácio com uma pergunta: por que lançar este livro, contendo as concepções de nossa corrente morenista sobre a luta pela emancipação das mulheres, é tão fundamental neste momento? Este livro foi escrito por Carmen Carrasco e Mercedes Petit depois de longas conversas com Nahuel Moreno, o mais importante dirigente trotskista da Argentina e fundador do MAS e da LIT. Bem que eu gostaria de ter participado dessas conversas, que são transcritas neste livro com muita clareza e precisão. Nessa época nós estávamos buscando compreender melhor o caráter de classe da luta em defesa de todos os setores oprimidos, em especial a luta contra a opressão das mulheres, que já então eram praticamente a metade da população economicamente ativa em toda a América Latina. O centro de nossas preocupações – a construção do partido revolucionário, nacional e internacional, e o esforço por mobilizar a classe trabalhadora – não encontraria solução se não tivéssemos uma política clara para convencer as mulheres trabalhadoras a entrarem na luta de classes. E isso não era nada fácil. Precisávamos, antes, entender o caráter da opressão, nos convencer a nós mesmos de que as mulheres não são iguais aos homens, que elas sofrem uma exploração como trabalhadoras que é distinta, porque vem potencializada pela discriminação enquanto mulheres, enquanto “sexo frágil” ou “segundo sexo”, como dizia Simone de Bauvoir.  Precisávamos também nos conscientizar de que dentro de nossas fileiras não bastava ser trotskista e revolucionário. Era preciso também não ser machista.

 

Moreno, como principal dirigente de nossa corrente, foi quem melhor conseguiu sintetizar todo esse complexo conjunto de preocupações e tarefas, e fazer uma análise marxista do problema. Graças ao trabalho de redação feito por Carmen e Mercedes, agora temos este livro fundamental em mãos. Infelizmente ele ficou muito tempo engavetado. Moreno morreu em 1987 e somente hoje, 22 anos depois, o livro é lançado. Nesses anos todos nós não deixamos de militar pela questão das mulheres, mas foi mais difícil, porque não tínhamos a teoria revolucionária tão claramente exposta como está nestas páginas. As concepções do trotskismo sobre a luta das mulheres não eram amplamente conhecidas, e com isso cremos que muitas mulheres lutadoras acabaram caindo no conto do vigário das feministas reformistas, sem terem uma política alternativa que lhes servisse de contraponto. Mas agora, o que importa é que o livro foi publicado e cai em terreno fértil, porque mais do que nunca as mulheres hoje têm um papel central na produção industrial, na produção agrícola, nos setores secundários e terciários da economia latino-americana e mundial. Em contrapartida, centenas delas estão a serviço do capital, ocupando postos de comando nos Estados burgueses: presidentas, deputadas, diretoras de organismos das Nações Unidas. Muitas são negras, vindas de famílias pobres. A burguesia sabe utilizar-se da opressão para manter subjugados os próprios oprimidos. Ao mesmo tempo, do lado de cá da fronteira de classe, centenas de outras mulheres, vestindo calças ou saias, macacões de operárias, chapelões de agricultoras, aventais de empregadas domésticas ou enfermeiras, estão ocupando seu lugar na produção e mostrando sua essencialidade para qualquer movimento mais brusco que faça a classe trabalhadora. Mesmo que ainda continuem atentas ao forno e ao fogão para que a comida não queime, as mulheres já não podem ser esquecidas no fundo de um quarto escuro. Contraditoriamente, o mesmo capitalismo que as relegou ao porão da casa em seus primórdios, agora teve de arrastá-las para o chão da fábrica, para serem exploradas tanto quanto os homens. Também de forma contraditória, as mulheres fizeram grandes avanços, graças à sua disposição de manter os postos duramente conquistados, mas continuam ganhando menos que os homens, continuam arrastando o fardo do preconceito, continuam vítimas do abuso sexual, continuam sendo o saco de pancadas da sociedade, continuam cumprindo o triste papel de escravas do lar.

 

Desde que o conteúdo deste livro foi elaborado, em 1979, até hoje, a situação das mulheres mudou bastante. Mas mesmo assim a sensação que se tem é que o livro foi escrito ontem. E isso se deve, em grande parte, à própria política que aqui se combate, a política que então era defendida por Mary-Alice Waters e o SWP[1]. Uma política que até hoje é defendida por inúmeros grupos feministas e partidos políticos no mundo inteiro. Então, não apenas o tema é atual, mas também os erros são atuais.

 

O que Moreno combate neste livro, junto com Carmen e Mercedes, é uma política equivocada para as mulheres, e a vantagem do tempo que se passou desde então está no fato de justamente confirmar esse equívoco. Nada como a prova da história. Basta perguntar como está a situação das mulheres hoje, e aqui estamos nos referindo às mulheres trabalhadoras e pobres, para entender o que queremos dizer. A política defendida naquela época por Mary-Alice Waters e o SWP e que, com outras palavras, é a mesma que vem sendo defendida hoje pela Marcha Mundial de Mulheres e outros grupos feministas, é tão contrária às necessidades e interesses políticos e organizativos da mulher trabalhadora, tão contrária às necessidades da luta revolucionária pelo socialismo e tão contrária à luta contra a opressão das mulheres, que foi adotada inclusive pela própria ONU, pelo Banco Mundial e por todos os governos burgueses que se dizem preocupados com a situação das mulheres.

 

É então uma política perfeitamente ajustada às necessidades da democracia burguesa. A burguesia, que em sua época de ascenso como classe, que procurava consolidar seu sistema econômico, seu regime político e seus valores ideológicos, não conseguiu resolver o problema da opressão e da desigualdade das mulheres, agora encontra uma política feita na medida para “resolver” o problema sem que para isso tenha de mudar em nada seu sistema de exploração. É uma maquiagem de política feminista. Muda-se alguma coisa para não se mudar nada. No caso aqui, muda-se o discurso, o campo simbólico e outros termos do tipo, tão em voga nestes tempos pós-modernos, e a mulher trabalhadora e pobre continua cada vez mais explorada e oprimida. E as estatísticas são cada vez mais sombrias: a cada 4 minutos uma mulher é espancada em sua própria casa, 70% dos pobres no mundo são mulheres, e assim por diante.

 

Em suma, a política do SWP, confirmando os prognósticos de Moreno, foi aplicada e não deu certo. Pelo menos para as mulheres. A política frente-populista, de irmandade das mulheres, mostrou toda a sua falácia, desnudou a sua traição de classe, o seu caráter de armadilha que agarrou as mulheres trabalhadoras pelo pé e as manteve atadas às políticas da burguesia. Diante do fracasso dessa política, diante do agravamento brutal da opressão, as mulheres trabalhadoras e pobres arregaçaram as mangas e voltaram à luta. E o feminismo reformista viu-se diante da necessidade de encontrar uma nova fórmula para detê-las. Nos anos 80 começam a usar o termo “gênero” para referir-se à opressão das mulheres, como se fosse uma grande invenção, a fórmula mágica para todos os males. Pena que Moreno não viveu esse tempo, gostaria de saber a sua opinião sobre isso. Mas no frigir dos ovos, muda-se o discurso para que o conteúdo continue igual. E o conteúdo é que o “gênero” é uma elaboração programática completa acerca da condição feminina no capitalismo, elaboração esta bem sofisticada e acadêmica, destinada a engambelar as mulheres que não são acadêmicas, as que nem estudo decente tiveram, para fazer com que se convençam de que sua condição precária na sociedade é triste sim, mas passageira; é desigual sim, mas nada que não possa ser resolvido com uma boa política de gênero encaminhada ao Estado, aos Ministérios das Mulheres, e posta nas mãos das primeiras damas, nossas embaixadoras junto à ONU, à Unesco, ao FMI, enfim, a algum desses organismos do imperialismo que graças a um milagre qualquer mudaram o seu caráter e o seu papel e agora defendem as mulheres.

 

Com outras palavras, é a mesma interpretação que fazia Mary-Alice Waters e o SWP, que Moreno combate neste livro. Nos anos 70 não se usava o termo “gênero”, mas isso não impediu que as feministas, sobretudo as norte-americanas, fizessem toda uma elaboração igualmente sofisticada, igualmente detalhada em milhões de documentos e livros e revistas e folhetos e programas e escritos de todo tipo para convencer as mulheres da classe trabalhadora a se unirem às mulheres burguesas e construir um grande movimento policlassista contra a opressão. O argumento, perfeitamente justo, de que a opressão atinge as mulheres burguesas e trabalhadoras, ricas e pobres, intelectuais e analfabetas, operárias e camponesas, deve nos levar a fazer lutas conjuntas por nossos direitos suprimidos. O maior exemplo histórico foi a luta sufragista, quanto no início do século XX mulheres ricas e pobres saíram às ruas pelo direito de voto. Mas essas lutas são passageiras. A verdadeira transformação na situação das mulheres depende de uma transformação radical da sociedade, e para isso as mulheres trabalhadoras devem travar sua luta no seio de sua classe, de forma independente das mulheres burguesas e sem depositar nelas a mínima confiança.

 

A situação da mulher tem de ser vista historicamente. E a história nos mostra que a opressão, apesar de ser cultural, está assentada em um sistema econômico de exploração, de desigualdade, que necessita subjugar e discriminar para seguir existindo. Como dizem as autoras deste livro, junto com Moreno, a política básica do capitalismo, imposta por suas necessidades econômicas, é extrair o máximo de lucro possível, explorando os trabalhadores, sejam homens ou mulheres, crianças e inclusive povos inteiros. Esse afã pelo lucro é o selo que marca a ferro e fogo todas as suas atividades e instituições, e se para isso for preciso, o capitalismo não hesita em revolucionar a família, em tirar a mulher do quarto escuro ou voltar a encerrá-la ali, desde que seus lucros estejam garantidos. Essa é a única lei realmente cumprida na sociedade capitalista. Por isso as políticas de gênero morrem no nascedouro, a bandeira da irmandade das mulheres vai para as calendas gregas e o empoderamento das mulheres, expressão tão cara às feministas de hoje, não significa outra coisa que dar poder a determinadas mulheres escolhidas a dedo para que continuem oprimindo os infelizes oprimidos que não tiveram a mesma sorte.

 

A pergunta do início deste prefácio, de porque lançar este livro neste momento, tem uma resposta simples: porque ainda temos muito a entender sobre o problema da opressão das mulheres, sobre seu caráter de classe, sobre a melhor forma de organizar as mulheres sem dividir a classe trabalhadora. Os erros que Mary-Alice e o SWP cometeram nos anos 70 devem nos servir nessa aprendizagem, para que não voltemos a cometê-los e possamos convencer a muitas mulheres de nossa classe de que não existem fórmulas mágicas ou caminhos fáceis para vencer a opressão.

Cecília Toledo



[1] SWP (Socialist Workers Party), Partido Socialista dos Trabalhadores, dos Estados Unidos, que fazia parte do Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional.

 

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