Estreou em 29 de agosto no cinema Gaumont, na cidade de Buenos Aires, o documentário “Tiempo largo y jodido. ¿Qué querés que te diga?”, realizado pelo cineasta Hugo Lescano com base em duas longas entrevistas realizadas pelo jornalista Carlos Rodríguez em 2019 e 2021 com o militante e dirigente revolucionário peruano-argentino Ricardo Napurí, O documentário foi realizado com o apoio financeiro e técnico do INCAA (Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais da Argentina) [1]. O INCAA é uma instituição oficial. Os governos peronistas/kirchneristas lhe deram grande incentivo e agora está sendo atacado (quase desmantelado) pelo governo de Javier Milei.
Por: Alejandro Iturbe
Aos 99 anos, Napurí permanece plenamente lúcido e capaz de se referir com clareza aos acontecimentos históricos em que participou ou testemunhou, como eles influenciaram seu pensamento político e sobre figuras proeminentes desses acontecimentos com quem teve contato pessoal no Peru, na Argentina e em outros países latino-americanos. Entre elas estão o peruano Luis de la Puente Uceda, o argentino Silvio Frondizi, Che Guevara e Fidel Castro, o chileno Salvador Allende e o venezuelano Hugo Chávez.
Dessa forma, ele conta, de modo muito divertido, seus mais de setenta anos de ação política, iniciada em 1948, quando ele era um jovem tenente da aviação militar no Peru e se recusou a bombardear um navio cheio de civis que participavam de uma revolta contra o governo peruano. Ele foi punido e forçado a se exilar na Argentina. A entrevista começa com essa lembrança e continua até os dias atuais. Dentro dessa estrutura, ele reivindica a revolução cubana como o grande processo revolucionário da segunda metade do século XX e também Fidel Castro, Che Guevara e o movimento que eles lideraram.
Embora não utilize esses termos no documentário, Napurí se apresenta como um “trotskista crítico” no campo da “revolução permanente” formulada por Trotsky. Ou seja, na sua avaliação de processos e dirigentes, ele não é guiado pelo “dogmatismo”, mas por fatos e ações concretas.
Nesse sentido, o documentário transmite a ideia de que o processo essencial do século atual foi o chavismo venezuelano e sua proposta para o socialismo do século XXI. Napurí refere-se à reunião em que Chávez se autodenominou “trotskista”, em oposição a Putin, a quem caracterizou como “stalinista”, ressaltando que essa era a diferença entre eles. O documentário mostra imagens de sua visita à Venezuela para ver e apoiar Chávez, e sua participação no programa de televisão “Aló presidente”. É com essa visão que ele faz uma breve análise do que estava acontecendo no país na época das entrevistas.
Napurí é um dos muitos dirigentes e organizações provenientes do trotskismo que seguiram esse caminho de apoio ao chavismo (e até mesmo de integração a esse movimento). Em vários escritos, debatemos essas caracterizações e posições que consideramos profundamente equivocadas [2]. Muito mais equivocado é continuar a defender o chavismo nesse documentário que está sendo lançado em um momento em que o regime político, agora encabeçado por Nicolás Maduro, está mostrando sua face mais feia: uma ditadura capitalista a serviço da “burguesia bolivariana” contra os trabalhadores e o povo venezuelano [3].
Até o momento, estamos no campo da evolução do pensamento político de Napurí, das conclusões que ele tirou dos fatos da realidade e das propostas que decorrem disso. Mesmo que não as compartilhemos, podemos entender esse processo.
No entanto, a questão central é que o documentário tem grandes omissões sobre o trotskismo internacional, latino-americano, peruano e especialmente argentino, que marcou muitos anos de sua vida militante (e dos dirigentes que o influenciaram).
Napurí começa reivindicando o argentino Silvio Frondizi como aquele que o conquistou para o trotskismo e o formou nessa concepção no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, quando Napurí entrou ao grupo Praxis, liderado pelo próprio Frondizi. E com justiça, se reivindica seu discípulo.
Aí aparece a primeira omissão. Em 1964, o Praxis se dividiu em dois setores. Um deles, liderado por Silvio Frondizi, se aproxima da proposta castro-guevarista de formar uma organização guerrilheira na Argentina, impulsionada por Roberto Santucho. Ele manteve essa proposta até ser assassinado em 1974 pela Triple A (fato que é mostrado no documentário).
O outro setor, liderado por Jorge Altamira, fundou a organização Política Obrera, afirmando ser “trotskista ortodoxa”. Pouco tempo depois, esse setor se uniu ao CORCI (Comitê de Organização pela Reconstrução da Quarta Internacional), uma organização internacional dirigida pelo trotskista francês Pierre Lambert (corrente conhecida como lambertismo).
Napurí aderiu a essa posição e, como militante do lambertismo, retornou ao Peru e participou da fundação do Partido Operário Marxista-Revolucionário (POM-R) em 1970. Como dirigente deste partido, posteriormente entrou na FOCEP (Frente Operária, Camponesa e Estudantil Peruana), em 1977 foi eleito senador. É interessante observar que, desde a década de 1950, já existia uma organização trotskista no Peru (o POR), impulsionada a partir da Argentina por Nahuel Moreno. Após a entrada do grande líder camponês Hugo Blanco, passaria a se chamar FIR.
A experiência de Napurí como militante e dirigente do lambertismo é completamente omitida no documentário. Também é completamente omitida sua ruptura com o lambertismo e sua participação como fundador da LIT, em 1982, juntamente com a Fração Bolchevique (uma organização internacional dirigida por Nahuel Moreno) [4].
A partir desse momento, ele sempre defendeu publicamente que, no Peru, “seu partido” era o PST (seção peruana da LIT). O mais importante é que, pouco tempo depois, ele se estabeleceu definitivamente na Argentina e foi eleito membro do CEI (Comitê Executivo Internacional), a máxima direção da LIT. Inclusive, é um dos oradores do evento público realizado após a morte de Nahuel Moreno (janeiro de 1987), de quem se despede com muito carinho e respeito, considerando-o uma referência. Continuou como dirigente da LIT por mais alguns anos. O documentário nem sequer faz referência a esse período de militância de Napurí, quando a LIT-QI se tornou a organização trotskista mais forte do mundo e o MAS o maior partido de esquerda da Argentina.
Foi nesses anos que tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente e de conversar várias vezes com ele e, como editor da página internacional do Solidaridad Socialista (jornal semanal do MAS), o consultava sobre meus artigos para que, como membro do CEI da LIT, ele pudesse me dar suas opiniões e fazer as suas observações. Napurí era muito respeitoso e gentil ao lidar com os quadros mais jovens do morenismo. Nesse sentido, tenho boas lembranças dele como dirigente e como ser humano.
Posteriormente, no contexto da crise vivida pela LIT-QI na década de 1990 e de sua divisão, Napurí (como outros dirigentes) se distanciou da LIT-QI e do morenismo e iniciou uma deriva que culminou com seus pontos de vista e posições atuais. Não é o objetivo deste artigo debater com essas posições.
Mas não podemos deixar de criticar esse documentário por omitir essas experiências políticas que marcaram muitos anos da vida militante de Napurí. Talvez isso tenha sido resultado de uma “tesoura” usada pelo diretor, que cortou essas partes das entrevistas. Em um livro publicado há alguns anos com sua biografia, Napurí chega a conclusões políticas semelhantes às apresentadas no documentário, mas inclui capítulos dedicados a essas experiências que o documentário omite [5].
De qualquer forma, Napurí endossou o resultado final: antes do documentário, uma mensagem gravada por ele foi reproduzida na sala do Gaumont, na qual ele lamentava não poder comparecer devido à sua idade, mas não fez nenhuma crítica ou referência a estas omissões.
Aqui vale comentar outro documentário realizado com financiamento do INCAA sobre Nahuel Moreno e o movimento que ele fundou. Estamos nos referindo ao “Trotskismo Bárbaro”, do diretor Marcel Gonnet, estreado em 2015, também no Gaumont [6]. O diretor reuniu entrevistas com diversos dirigentes que militaram em vários momentos na corrente e nas organizações dirigidas por Moreno na Argentina e no Peru, mas que em algum momento se distanciaram, romperam com ele e o criticaram duramente. Nesse documentário, Moreno, que, além da LIT, fundou e dirigiu organizações trotskistas em muitos países, é apresentado como um burocrata autoritário que fechou todo debate interno e “liquidou” aqueles que o criticavam. Uma verdadeira falsificação de como ele de fato agiu como dirigente.
Nesse documentário, Napurí não faz nenhuma crítica a Moreno, à LIT-QI e ao morenismo. Mas (ao contrário do que explica no seu livro) não diz uma palavra sobre sua integração, em 1982, à LIT-QI, seu papel de dirigente por mais de uma década e a grande influência que Moreno exerceu sobre ele naquela época. Em outras palavras, Moreno, a LIT-QI e o morenismo são completamente ignorados, como se não tivessem existido na vida de Napurí ou na vida política do trotskismo no século XX.
Respeitamos a sua figura porque mantém, com quase 100 anos e mais de 70 anos de atividade política, seu chamado à luta revolucionária das massas e à militância pela revolução socialista. Ele tem todo o direito de ter mudado seus pontos de vista e posições sobre como alcançar essa revolução e até mesmo de reivindicar Hugo Chávez como uma expressão dessa luta (mesmo que consideremos que ele esteja errado nessa posição).
O que lamentamos é que ele tenha emprestado sua figura e sua voz para endossar um documentário no qual, intencionalmente, o papel de Moreno e da LIT-QI na história política do trotskismo latino-americano e, em particular, do trotskismo argentino é completamente “apagado”.
[1] “Muchas generaciones han luchado por un mundo mejor” | ANCCOM (uba.ar)
[2] Los debates sobre Venezuela – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)
[3] https://litci.org/es/los-debates-sobre-venezuela/
[4] https://litci.org/es/nahuel-moreno-una-sola-corriente-trotskista-ortodoxa/
[5] Pensar América Latina. Crónicas autobiográficas de un militante revolucionario. Presentación Revista Herramienta
[6] https://play.cine.ar/INCAA/produccion/7775
Tradução: Rosangela Botelho