Kamala Harris é oficialmente a candidata democrata à presidência dos Estados Unidos. Nos próximos dois meses, uma enxurrada de argumentos será usada para convencer os eleitores a apoiá-la. O típico “mal menor” será acompanhado pela ameaça do programa de direita “Project 2025” da Heritage Foundation. O Partido Democrata alegará que tudo o que se interpõe entre a democracia e Trump governando como o Mussolini estadunidense, é Kamala Harris e os Democratas. Muitos sucumbem a tais argumentos porque acreditam que não têm escolha.
Por: Brian Crawford – Workers Voice (EUA)
Mas qualquer ilusão em relação ao Partido Democrata desaparece quando se examina a história. Em 2020, dezenas de milhões de pessoas se manifestaram durante um verão inteiro depois de assistirem ao vídeo de George Floyd sendo assassinado pela polícia de Minneapolis. A morte de Floyd foi o catalisador para um movimento centrado principalmente na brutalidade policial e na justiça criminal, mas também, nas suas raízes, uma tentativa de abordar as condições materiais dos afro-americanos. A morte de Floyd é mais uma em uma história contínua de encontros mortais de pessoas negras com as autoridades. Breonna Taylor, Michael Brown e Eric Garner são três na multidão; suas histórias se refletem ao longo da história americana.
O ímpeto daquele verão não foi sustentado. Ele foi consumido pelo eleitoralismo e pelas ilusões de uma virada progressista dos Democratas. A decepção não demorou a chegar. Muitos dentro do movimento apoiaram Biden. No entanto, foi um voto defensivo, lançado com o espectro de mais quatro anos de Trump como alternativa.
Em sua essência, Biden é um democrata conservador que precisava apelar à base progressista do partido para sua última chance à presidência. Tanto o presidente como o atual vice-presidente estão empenhados em investir na crescente militarização das forças da ordem.
Para Harris, o primeiro degrau na hierarquia política foi como promotora distrital de São Francisco, derrotando o mais progressista Terrence Hallinan, movendo-se ligeiramente para a direita de seu oponente. Depois de assumir o cargo, Harris anunciou que não iria aplicar a pena de morte. Isto era consistente com a sua imagem de “promotora progressista”, mas apresentava pouco risco político. Até o chefe do sindicato da polícia percebeu que o clima político em São Francisco não apoiaria a pena de morte.
“Promotor/a progressista” é uma contradição nos termos. As prerrogativas do Estado são a principal preocupação de um promotor/a, por mais “progressista” que possa parecer. Harris foi tão agressiva quanto qualquer outro na defesa do sistema e na colocação de mais pessoas em cadeias e prisões superlotadas. Como promotora-geral da Califórnia, lutou contra uma ordem da Suprema Corte dos EUA para resolver a superlotação nas prisões do estado, libertando alguns presos não violentos e de baixo risco. A certa altura, o sistema estava lotado até 200% da capacidade.
As posições duras de Harris e Biden em relação à justiça criminal são emblemáticas do Partido Democrata dos últimos 40 anos. Os democratas moveram-se estrategicamente para a direita após as derrotas para Ronald Reagan na década de 1980. Como resultado, a classe trabalhadora, e especialmente os negros, tornaram-se apêndices do partido, apenas para serem reconhecidos durante a época de campanha. O novo eleitorado alvo passou a ser os suburbanos brancos que fugiram das cidades à medida que a população afro-americana aumentava.
A prevenção do crime e penas mais longas faziam parte de uma tendência legislativa reacionária. Bill Clinton, o “Novo Democrata”, pregou a lei e a ordem para atrair a este novo eleitorado, e a “responsabilidade pessoal” substituiu o “New Deal”, a “Grande Sociedade” e a “Guerra à Pobreza” de Franklin Roosevelt e Lyndon Johnson”. Clinton prometeu mais 100 mil policiais e aumentou o número de crimes capitais. Seu agora infame projeto de lei sobre crimes foi apoiado pelo senador Joe Biden.
Durante a década de 1990, o Congresso autorizou o Departamento de Defesa a enviar material militar excedente às forças de segurança locais. No âmbito do programa 1033, os departamentos de polícia de todo o país têm acesso às mesmas armas utilizadas pelas forças dos EUA em zonas de combate. O movimento de libertação negra exigiu o fim do programa 1033, mas o fluxo de armas continua sob Biden enquanto os orçamentos da polícia continuam aumentando.
Além disso, cidades de todo o país estão desenvolvendo “centros de formação em segurança pública” (“Cop Cities”), cujo objetivo é o controle social e a participação na guerra urbana. Esses centros de treinamento são construídos em bairros historicamente desfavorecidos, desinvestidos e abandonados à decadência, ou perto deles. Estas instalações e as suas forças estão preparadas para quando as comunidades se rebelarem contra as suas condições.
A plataforma do Partido Democrata de 2020 incluía referências à brutalidade policial, à reforma da justiça criminal e ao financiamento comunitário. Também pedia o fim do encarceramento em massa e o fim da pena de morte. Agora já se passaram quatro anos e os Democratas já não se sentem obrigados a atender a estas exigências. Eles querem recuperar o manto do partido da lei e da ordem. A Plataforma 2024 enfatiza na polícia
Os democratas e o candidato do seu partido dizem-no nitidamente: “Precisamos de financiar a polícia, e não de desfinanciar a polícia”. Não há referências à brutalidade policial e ao fim do encarceramento em massa. Os Estados Unidos têm quase dois milhões e meio de pessoas na prisão, muitas das quais definham no corredor da morte. Embora a Constituição proíba punições cruéis e incomuns, e a prática seja considerada desumana e inconsistente com uma sociedade civilizada, os Estados Unidos não aboliram a pena capital. A ausência da questão da pena de morte na plataforma do Partido Democrata pela primeira vez em 20 anos indica que esta não é uma prioridade neste ano eleitoral.
Se o Partido Democrata é o “partido do povo”, então o povo está em crise. Os anos bissextos trazem-nos eleições presidenciais e, cada vez, os democratas pedem ao eleitorado que dê um salto de fé dar um voto para eles e receber pouco em troca. Os Democratas esperam que o medo do Partido Republicano seja uma razão convincente para ignorar os seus enganos e traições.
Em 1964, o Partido Democrático pela Liberdade do Mississippi tentou fazer parte da delegação daquele estado à convenção do Partido Democrata. Em vez de acomodar membros negros do MFDP, os democratas procuraram um compromisso com a delegação segregacionista do Mississippi e ofereceram duas vagas gerais. Os ativistas do MFDP, incluindo Fannie Lou Hamer, abandonaram a convenção e o partido. Para que a luta de libertação negra seja bem sucedida, deve repetir este exemplo histórico. Seria um primeiro passo para a independência política.