Publicamos este artigo da Revista Crisis de 9 de setembro. «Crisis» é uma revista digital que nasceu com o objetivo de apresentar uma nova referência de esquerda no Equador. Com esta publicação estabelecemos uma colaboração entre os dois meios de comunicação, através do intercâmbio de artigos.
Daniel Noboa, oligarca bananeiro e presidente, passou quase 10 meses em campanha e agora ocupa dois cargos simultâneos: é candidato e presidente ao mesmo tempo. 10 meses de um aprofundamento abismal das lógicas do Narcoestado, enquanto a violência explosiva que prevalece no Equador é disfarçada com TikToks. A crise autoinduzida no sector energético é gerida, não com investimento e manutenção, mas com a contratação de uma barcaça inoperante que custará 114 milhões de dólares durante 18 meses, e com apagões intencionais para justificar a privatização. Dez meses depois, o governo de Noboa tem sido caracterizado pela sociedade do espetáculo, pelo Estado policial, pela militarização do território e pela crise humanitária nas prisões com uma desumanização evidente da população carcerária.
Noboa demonstra uma capacidade desastrosa e intencional de governar no social e estratégico, ao mesmo tempo que impõe uma lógica franca de privatização do público através do desfinanciamento crônico. A Banana Republic nasceu como um projeto de submissão e empreendedorismo privado da família mais rica do país, em detrimento do bem-estar e da vida da classe trabalhadora. Efetivamente, o Estado no capitalismo funciona como um conselho de assuntos internos e de negócios da burguesia.
Diante da gestão desastrosa em matéria trabalhista – e replicando a lógica da cortina de fumaça, tão característica do boneco de papelão – Noboa e seus capangas acionaram sua maquinaria de propaganda junto às corporações de comunicação para implementar a lógica neoliberal de divinização do empresariado. Isto à custa da imposição de uma flexibilização trabalhista progressiva, no que diz respeito a salários, jornada de trabalho e benefícios legais. A empresa privada não gera empregos desde a posse de Noboa, a ponto de agravar a crise migratória relacionada à precariedade absoluta que vive o Equador. Até agora, este ano, a burguesia causou a migração forçada de mais de 200 mil pessoas, a onda migratória mais massiva em seis anos.
Outro elemento dos 10 meses de consagração da República Bananeira são as prisões. A situação dos centros de privação de liberdade mergulhou num abismo de infinitas infâmias e de francas violações dos direitos humanos. Corresponsabilidade das 3 instituições repressivas envolvidas no seu controle: SNAI, Forças Armadas e Polícia Nacional. Como bom proprietário de terras, Daniel Noboa tem milhares de capatazes contratados para exercer extrema violência contra as PPLs (Pessoas Privadas de Liberdade, ndt.), que por sua vez enfrentam uma desumanização absoluta apoiada pelo próprio governo central e celebrada por uma enorme parcela da sociedade civil. As humilhações contra as PPL vão desde espancamentos sistemáticos, redução drástica de porções de alimentos e proibição de visitas, até abuso sexual, tortura, desaparecimento forçado e assassinato por agentes responsáveis pela aplicação da ordem.
A declaração do Conflito Armado Interno (CAI) em 9 de janeiro deu ao governo Noboa um guarda-chuva institucional, bem como o apoio da opinião pública para executar três ações fundamentais para a transformação das funções do aparelho repressivo do Estado. Em primeiro lugar, foi possível justificar uma militarização do espaço público a nível nacional, com especial ênfase nos sectores periurbanos e nas zonas rurais empobrecidos. Em segundo lugar, a estratégia de vigilância e controle da Polícia Nacional passou de uma relativa passividade para uma agressão direta como mecanismo de coerção. Exemplo disso são os grupos de 6 policiais que rodeiam os “suspeitos” nos espaços públicos das cidades, que neutralizam e assediam as pessoas com maior agressividade, organização e impunidade. E em terceiro lugar, a militarização das prisões e centros de detenção do país, com carta branca para qualquer tipo de abuso.
As consequências são desastrosas para o povo e para a classe trabalhadora equatoriana em vários aspectos: as condições de vida materiais e simbólicas tornaram-se precárias. Para além da precarização imposta pelo livre mercado, os corpos empobrecidos e racializados do país – principalmente homens – são agora sujeitos à violência estatal com muito mais facilidade do que há um ano. Dois jovens em Ventanas-Los Ríos foram desaparecidos pelas Forças Armadas no dia 26 de agosto, caso em que foi comprovada a tortura, e não há resposta para seus familiares. Entre o racismo institucionalizado, a desumanização das PPL e a perseguição e criminalização da organização e dos sectores populares, o estado policial está cobrando, aceleradamente, vidas nos setores populares. Por outro lado, mas como parte da mesma maquinaria perversa, a lógica e o bom senso da burguesia conseguem ser assimilados favoravelmente pela sociedade civil. A geração do consenso tem sido bem sucedida no país, que não só conseguiu justificar esta transição para um estado de maior controlo estatal, mas também distorceu o conceito de crime organizado na opinião pública.
Durante o desastre do governo dos banqueiros durante o período Guillermo Lasso, a opinião pública foi brevemente capaz de abordar uma concepção histórica -adequada- da origem e do funcionamento sistemático do crime organizado. Com os casos do Grande Padrinho e do Leão de Tróia, a opinião pública conseguiu conectar momentaneamente a burguesia com a maquinaria da economia ilícita. A crise institucional que o Estado equatoriano sofreu durante a revelação dos vínculos entre o crime organizado e a facção da burguesia do presidente banqueiro, conseguiu diluir – mas não extinguir – a montagem discursiva que tanto Moreno quanto Lasso estabeleceram a respeito dos vínculos do Organização Popular -CONAIE especificamente-, e o crime organizado, que conseguiu deslegitimar a explosão de 2019 e o levante de 2022, para boa parte da sociedade.
No entanto, no momento em que a morte cruzada foi declarada e as eleições antecipadas foram convocadas, a máquina de propaganda da burguesia fez um trabalho excepcional: assim, Daniel Noboa Asín, um representante da burguesia agroexportadora, com ligações verificáveis ao tráfico de cocaína, torna-se presidente. O presidente bananeiro desferiu um golpe emocional no povo e na classe trabalhadora pouco mais de um mês depois de tomar posse, com os acontecimentos de 8 e 9 de janeiro, e a comoção fabricada que legitimou a declaração do CAI, ao mesmo tempo que colocava peças-chave ligadas a empresas privadas ou crime organizado nas altas esferas estatais, como é o caso de María Mogollón como Vice-Ministra de Hidrocarbonetos, ou Inés Manzano Díaz como a nova Ministra do Meio Ambiente, irmã do ex-Ministro da Agricultura de Guillermo Lasso, Bernardo Manzano, envolvido em investigações relacionadas com o Caso Leão de Troya. Além de ter uma estreita amizade com a família Noboa, Inés Manzano é casada com José Nebot Saadi, irmão de Jaime Nebot. Tudo fica em família.
Com a espetacularização da realidade e a precariedade gradual que assola o povo e a classe trabalhadora, Noboa não só conseguiu dissipar a visão dos vínculos da burguesia no centro do poder político com o crime organizado, mas também concentrou a opinião pública na necessidade de um mecanismo renovado de controle e repressão contra a sociedade civil. Segundo a jornalista investigativa Karol Noroña, 76 pessoas foram executadas pelas Forças Armadas e pela Polícia Nacional de 8 de janeiro a 2 de setembro de 2024. Esses números são provavelmente bastante conservadores, pois há assassinatos extrajudiciais contra defensores da água e dos territórios que podem estar vinculados à cooperação entre empresa privada, o crime organizado e o Estado. Em linha com isto, uma reforma do manual da Lei que regula o Uso Legítimo da Força foi imposta por Noboa em 25 de agosto. Desde esse momento, 12 pessoas foram executadas pela Polícia Nacional numa semana, demonstrando que a política do gatilho fácil foi progressivamente institucionalizada no país.
Por sua vez, Laura Richardson, Comandante do Comando Sul do Exército dos EUA, aproveitou o desenvolvimento da cúpula da submissão de SOUTHCOM no Chile, para assinar um adendo ao acordo militar ilegítimo e inconstitucional entre o Equador e os EUA, assinado por trás dos bastidores durante os últimos dias do banqueiro Guillermo Lasso, em novembro de 2023. Os EUA estão monitorando e controlando cuidadosamente os desenvolvimentos políticos no Equador. Após a assinatura do adendo, o governo ianque anunciou que “prevê uma redução da criminalidade no Equador em 2025”, como uma espécie de presságio.
O Equador é o país mais violento de toda a América Latina: os assassinatos aumentaram 600% desde 2019. A institucionalização do Narcoestado, como aprofundamento da lógica do livre mercado, é a principal responsável pela precariedade material e simbólica da classe trabalhadora e da insegurança e o estado de violência em que vivemos. Os EUA mantêm interesses em recursos estratégicos no Equador, que incluem a proteção das suas rotas de fornecimento de cocaína – sendo o país que mais consome no mundo – enquanto tentam manter o seu “quintal” no seu colapso iminente como potência hegemônica global.
Em suma, a República Bananeira é definida como uma cortina de fumaça desajeitadamente fabricada, uma campanha política permanente, um governo que pratica a mais vergonhosa submissão ao imperialismo ianque e às suas extensões de crédito. iniciativas multilaterais como o FMI e o BM, a imposição do estado policial. Esta será a linha de estado que marcará a administração de qualquer candidato, até mesmo do progressismo – vejamos Boric no Chile como exemplo. Definitivamente, o alívio para as nossas tristezas como povo e classe trabalhadora não se encontra na política eleitoral, muito pelo contrário. Cabe a nós construir o Poder Popular Plurinacional, organizando cada bairro, local de trabalho e centro de estudos. Outra sociedade não só é possível, mas urgente e necessária.