search
Argentina

Polêmica com o PTS-FT| Duas políticas frente à revolução chilena e aos processos latino-americanos

maio 30, 2022

O PTS (Partido dos Trabalhadores Socialistas, principal organização da corrente internacional FT-Fração Trotskista da IV Internacional) da Argentina publicou um artigo no qual responde às críticas que realizamos sobre a atuação dos parlamentares da FIT-U (Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade) que essa organização integra[1]. Como em nossos artigos reivindicamos a atuação da constituinte María Rivera (representante do MIT, seção chilena da LIT-QI), a resposta foca em atacá-la e, nesse cenário, atacar a política da LIT-QI no Chile e na Argentina. Pela gravidade dos conceitos políticos que esse artigo expressa, é necessário continuar a polêmica.

Por: Alejandro Iturbe, Camila Ruiz (MIT Chile), Iván Rabochi (PSTU-A)

Queremos evitar que se desenvolva apenas como um “fogo cruzado” de citação de fatos. Também rejeitamos o método de deformar os fatos e falsificá-los.  Ao contrário, acreditamos que devemos debater a partir de uma reflexão geral das políticas desenvolvidas pelo MIT, por um lado, e pelo PTR (organização chilena da FT), por outro, e um balanço dessas políticas.

O que é uma revolução?

Aqui já surge um primeiro debate: há um processo revolucionário no Chile iniciado em outubro de 2019? Para nós, sim. Para essa definição, tomamos o critério usado por León Trotsky no Prólogo de seu livro História da Revolução Russa:

O traço característico mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Em tempos normais, o Estado […] está acima da Nação; a história corre a cargo dos especialistas deste ofício[…]. Porém, nos momentos decisivos, quando a ordem estabelecida se torna insuportável para as massas, estas rompem as barreiras que as separam da arena política, derrubam seus representantes tradicionais e, com sua intervenção, criam um ponto de partida para um novo regime. Deixemos os moralistas julgar se isto é bom ou mal. Para nós basta tomar os fatos tal como nos apresenta  o processo histórico. A história das revoluções é, para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos (negritos nossos)[2].

Com base nestas considerações de Trotsky, é evidente que em outubro de 2019 iniciou-se um processo revolucionário no Chile. Podemos e devemos analisar suas debilidades objetivas e subjetivas (como a ausência de organismos de duplo poder, a extrema debilidade de uma alternativa de direção revolucionária ou as ilusões na democracia burguesa das massas) porque a burguesia e seus agentes no movimento as usam para colocar armadilhas que tentam desviar e frear este processo revolucionário.  Mas somente a partir desta compreensão geral é que uma organização revolucionária pode se orientar, tanto no rumo profundo dos acontecimentos como em cada um dos momentos específicos, para evitar que seja desviado, e avance. O que inclui, como uma questão essencial, o combate a essas armadilhas. É o tentam fazer o MIT e a LIT-QI.

Para a FT, ao contrário, o que ocorreu no Chile há mais de dois anos e meio é apenas “a rebelião popular de outubro de 2019”. É a partir desta consideração conceitual (a nosso ver, equivocada e diferente da que vimos no texto de Trotsky) que a FT avalia todos os fatos e sua própria política tática e estratégica frente a eles.

Esta profunda diferença entre a LIT-QI e a FT não é nova nem aparece agora com o Chile: tem mais de uma década e se expressou com muita nitidez na caracterização, na política e nas conclusões sobre os processos revolucionários no mundo árabe, iniciados em janeiro de 2011, que levou à derrubada do ditador tunisiano Zine El Abidine Ben Ali e seu regime, e depois se estendeu para outros países da região[3].

Antes de outubro de 2019

O processo que eclodiu em outubro de 2019, no Chile, não saiu do nada: significou um salto sobre expressões de luta que se manifestaram em anos anteriores (como as rebeliões estudantis ou os protestos contra a fraude da previdência privada), que foi detonado por um fato aparentemente menor (o aumento do preço do transporte público). Havia uma grande raiva acumulada contra a herança da ditadura de Augusto Pinochet e o regime político constitucional pactuado quando o ditador saiu do poder. A expressão disso foi a consigna: “Não são 30 pesos, são 30 anos”.

Tal como Trotsky disse, não se pode prever o dia e a hora em que vai eclodir o início da revolução. Entretanto, é possível analisar as contradições e os processos que vão nessa direção e tentar impulsioná-los. Foi o que o MIT fez, na medida de suas possibilidades. Antes de outubro de 2019, o centro de sua atividade era o desenvolvimento de campanhas de agitação e propaganda em torno das consignas que buscavam responder às demandas e necessidades dos trabalhadores e das massas e da necessidade de uma revolução no país (o que nós trotskistas chamamos de um programa de transição). Em torno dessa atividade tentava-se provocar um reagrupamento dos ativistas operários, populares e juvenis[4].

O PTR também desenvolvia agitação e propaganda sobre a necessidade de uma revolução. Mas o fazia em torno do eixo de atividade para obter sua legalização e originar a formação de uma frente eleitoral de esquerda (a partir do modelo da FIT-U argentina), na perspectiva das eleições presidenciais e legislativas convocadas para novembro de 2021.

Novamente, para evitar falsas polêmicas, expressamos abertamente que nem a LIT-QI nem suas seções padecem de cretinismo antieleitoral e antiparlamentar. Consideramos totalmente correto que uma organização revolucionária busque sua legalização para intervir nas eleições burguesas e, se for o caso, ter parlamentares. O que dizemos é que, como dizia Lênin, essa atividade só deve ser “um ponto de apoio secundário” para o estímulo e a participação na luta de classes e nunca o eixo central da atividade de uma organização revolucionária.

Durante os meses mais intensos do processo

Deixemos de lado, por um momento, o debate sobre se o que explodiu em outubro de 2019 foi o início de um processo revolucionário ou só uma rebelião. A verdade é que se manteve com firmeza e intensidade durante quatro meses, até que sofreu o impacto da pandemia do coronavírus.

Nesses quatro meses, o MIT jogou todas suas forças para intervir, incentivar e tentar ajudar a orientar politicamente e organizar. Durante as manifestações, sua coluna se localizava sempre no centro da Plaza Dignidad, em Santiago, e María Rivera, sua principal figura pública, apresentava suas propostas com um megafone. Inclusive uma foto da praça, onde se destaca a bandeira do MIT, foi espalhada no mundo, por diversas mídias.

Ao mesmo tempo, tentava organizar, impulsionar e coordenar as incipientes Assembleias Populares que surgiam nos bairros de Santiago e outras cidades do país (embriões de organismos do processo), agrupar a Primeira Linha (os jovens que davam corpo ao enfrentamento com a repressão) e ligá-la às Assembleias. Por fim, estimular a entrada organizada da classe operária no processo através dos militantes que o MIT tinha nas empresas de mineração, metalúrgicas, portuárias, etc. Depois veremos, separadamente, a atividade de María Rivera como defensora dos presos políticos que essa luta ia produzindo.

O PTR também interveio neste processo, especialmente na região de Antofagasta (norte do país). Embora mantivesse o eixo em obter sua legalização eleitoral e a tarefa principal de seus militantes em Santiago fosse conseguir filiações para isso. A orientação com centro nos processos eleitorais continuou. Em agosto de 2021, o PTR realizou seu IV Congresso no qual “se reafirmou a política de organizar uma Frente de Esquerda anticapitalista, assim como fortalecer a aposta de diversas candidaturas de trabalhadores e trabalhadoras, com um programa socialista e revolucionário, para as eleições a serem realizadas em novembro”[5].

Lendo o artigo como um todo, o raciocínio é o seguinte: houve uma grande rebelião mas seus efeitos já passaram, por isso, “continuamos na mesma”: nosso eixo são as eleições presidenciais e parlamentares de novembro de 2021. Como dissemos, temos um debate sobre a caracterização do significado de outubro de 2019 (foi o início de um processo revolucionário ou apenas uma forte rebelião?). Mas inclusive se a caracterização do PTR/FT fosse correta (apenas uma forte rebelião), sua política frente às eleições para a Convenção Constitucional seria, da mesma forma, equivocada. Uma questão que retomaremos mais adiante.

A Convenção Constitucional

Vamos agora a uma questão muito importante neste debate: a convocatória à Convenção Constitucional [Assembleia Constituinte] depois da vitória do “Aprovo” (que a Convenção Constitucional fosse convocada) no plebiscito realizado em outubro de 2020, que começou a se reunir no ano seguinte e continua até hoje. Esta convocatória foi “uma vitória parcial” (ou deformada), como sustentam o MIT e a LIT-QI, ou é apenas “uma armadilha” da burguesia, como afirmam o PTR e a FT?

Para responder a esta pergunta, devemos partir do fato de que uma maioria do povo chileno odiava o governo de Sebastián Piñera e o via como uma expressão do regime político constitucional e econômico herdado da transição pactuada para sair da ditadura. Um regime que nenhum dos governos posteriores, da direita ou da Concertação, havia mudado. Por isso, essa maioria do povo chileno aspirava derrubar Piñera e mudar a Constituição. Um sentimento que eclodiu em outubro de 2019 e que se expressou no “são 30 anos”.

O governo Piñera (e os setores burgueses que representava), com certeza, não queriam ir embora e nem queriam uma nova constituição. A força do processo iniciado em outubro de 2019 impôs a realização do plebiscito de 2020. Frente a ele, defenderam o rechaço à convocatória da Convenção mas foram amplamente derrotados: inclusive em plena pandemia, 78% dos participantes votaram pela realização da Assembleia Constituinte.

Com justiça, as massas chilenas sentiram que tinham obtido um primeiro triunfo da luta iniciada em outubro de 2019. Uma vitória parcial (ou deformada) porque poderia se discutir e redigir uma nova constituição mas o governo de Piñera continuava. Assim caracterizaram o MIT e a LIT-QI. Por seu lado, com total sectarismo para esse justo sentimento das massas, o PTR e a FT diziam que as massas “tinham caída em uma armadilha” da burguesia.

Analisemos um pouco este ponto. É verdade que outros setores burgueses, diante da certeza de que não poderiam impedir sua convocatória, começaram a trabalhar para transformá-la em uma armadilha para desviar o processo revolucionário iniciado em outubro de 2019 para este mecanismo da democracia burguesa, apoiando-se nas ilusões das massas chilenas.

Por exemplo, a Concertação chamou para votar pelo “Aprovo”. Depois de sua convocatória e da eleição dos constituintes, estabeleceu um acordo tácito com os setores representados pelo governo de Piñera para evitar que fosse uma “convenção soberana”, ou seja, que assumisse como a única instituição de governo e pudesse redigir uma nova constituição do zero. Como parte disso, pactuaram os regulamentos antidemocráticos do que poderia ser mudado ou não da velha constituição. Com uma verborragia que tentava ser diferenciada, o PC (Partido Comunista) acompanhava essa política.

Por isso, ao mesmo tempo em que caracterizávamos uma “vitória parcial” denunciávamos a “armadilha”. Em dezembro de 2020, o MIT afirmava: “Ganhamos uma batalha, mas não a guerra. Os inimigos do povo (os grandes empresários e seus partidos políticos) estão se reorganizando. Com o Processo Constituinte querem ganhar tempo. Agora estão discutindo a melhor forma de enganar o povo ao passo que reprimem os que continuam lutando”[6].

Uma política da burguesia que acabou bem sucedida: a Convenção acabou por ser esterilizada e, nesse sentido, transformada em um beco sem saída para as reivindicações e aspirações das massas. Nenhum revolucionário poderia esperar outro final de uma instituição da democracia burguesa. Mas isso não elimina o fato de que sua convocatória  tenha sido uma vitória parcial da luta e que o eixo do debate político do país e das massas girou em torno da convenção. Era uma obrigação dos revolucionários tomá-la como um centro para intervir neste processo e assim acompanhar e gerar a necessária experiência das massas com ela, e disputar sua consciência.

A Lista do Povo

Uma das críticas mais duras que o artigo do PTS faz é sobre a participação do MIT e de María Rivera na Lista do Povo, nas eleições para a Convenção, ao invés de ser através do PTR que tinha conseguido sua legalidade, e apresentou essa proposta ao MIT. Para o PTS/PTR, a Lista do Povo era “uma lista reformista populista” e não um “reagrupamento de ativistas com uma política independente após 30 anos do velho regime de transição, muito menos algum fenômeno de vanguarda operária”. A conclusão é que “o MIT conquistou seu constituinte de forma oportunista” e não através de “uma intervenção política independente”.

Como muitas vezes ocorre nos debates com o PTS, é necessário esclarecer o contexto e os fatos da formação da Lista do Povo e porque essa foi a tática eleitoral que o MIT a colocou em prática. As mobilizações iniciadas em outubro de 2019 (qualquer que seja a definição dada ao processo) tiveram um caráter de luta popular: em geral, a classe operária não participou de forma organizada embora muitos trabalhadores participaram. É uma particularidade que tem ocorrido em numerosas lutas deste século, em vários países. Muitos jovens operários “se cuidavam” em suas empresas para não perder o emprego e, fora delas, se organizavam para lutar na Primeira Linha. Com certeza, para os revolucionários é melhor uma participação central da classe operária como tal e tentamos impulsionar. Entretanto, como Trotsky dizia: “Para nós basta tomar os fatos tal como nos são oferecidos pelo processo histórico”.

No contexto destas características do processo de outubro de 2019, na Plaza Dignidad e em outros lugares, apareciam ativistas, alguns dos quais ganharam popularidade e influência. Foi o caso da pitoresca Tia Pikachu, que depois decidiu candidatar-se à constituinte, integrou-se na Lista do Povo, e acabou sendo eleita pelo seu distrito. Mas também houve muitos outros ativistas dessa luta, menos pitorescos, que também decidiram se candidatar e queriam fazê-lo como “independentes”.

Para o MIT e a LIT-QI, era o fenômeno mais progressivo frente à eleição de constituintes porque, com suas virtudes e defeitos, expressava o processo de lutas iniciado em outubro de 2019. A tática de formar a Lista do Povo esteve destinada a promover a expressão política eleitoral desse fenômeno e, nesse marco, tentar ganhar esses ativistas (e sua base eleitoral) para um programa revolucionário.

. A Lista do Povo não tinha esse programa e só havia acordos sobre alguns aspectos básicos: a reivindicação da luta iniciada em outubro de 2019, o repúdio ao regime existente e ao governo de Piñera, e a necessidade de uma nova constituição votada por uma Convenção soberana. Sobre muitas outras questões de fundo não havia acordo entre seus candidatos.

Ao mesmo tempo, o sistema de eleição dos constituintes (só eram votados em seus respectivos distritos) fazia com que cada um desenvolvesse sua própria campanha e suas propostas sobre estas questões. Foi o que María Rivera fez no Distrito 8 de Santiago: durante sua campanha eleitoral apresentou um “programa de transição” que, no marco de propostas de luta que respondiam às reivindicações e necessidades dos trabalhadores e do povo chileno, começava por Fora Piñera e todos eles! E terminava com a consigna Trabalhadores/as ao poder pela via da revolução! [7]

Partindo  de todas estas considerações, reivindicamos como totalmente correto ter impulsionado a tática de formar a Lista do Povo para as eleições para a Convenção. Acreditamos que seus resultados eleitorais confirmam o acerto desta tática já que, tal como reconhece o artigo do PTS, “A Lista do Povo conquistou 27 constituintes com cerca de 1 milhão de votos na Convenção” (entre os quais esteve María Rivera). Ou seja, foi uma ferramenta eleitoral útil para agrupar e politizar uma parcela da vanguarda surgida em outubro de 2019 e assim disputar uma faixa do eleitorado não apenas com a burguesia mas também com a esquerda aliada à burguesia e/ou burocrática  (o PS integra a Concertação junto com a Democracia Cristã, e o PC aliou-se com a Frente Ampla na lista Chile Digno).

 Por sua vez, o PTR obteve 87.000 votos a nível nacional e não elegeu nenhum constituinte. Novamente, para evitar falsas polêmicas: é comum que, em muitos casos, as organizações revolucionárias obtenham poucos votos nas eleições burguesas. Mas nestas eleições havia um fenômeno muito progressivo que expressava as lutas de 2019 e suas reivindicações (a Lista do Povo), o que nos permitia ampliar muitíssimo essa audiência.  Era isso o que tinha que ser impulsionado, politizado e disputado. Mas, atado ao esquema que vinha da Argentina (formar uma FIT-U), o PTR dá as costas a este fenômeno e o combate. Foi um erro tático muito grave, mais ainda na visão da FT sobre a importância dos resultados eleitorais no reagrupamento da vanguarda.

 Neste ponto, antes de abordar outros em debate, é importante fazer um balanço da dinâmica de ambas as organizações em todo este tempo. Antes da explosão de outubro de 2019, o PTR tinha maior quantidade de militantes que o MIT, embora se focassem em diferentes setores: o PTR concentrava seu trabalho nos meios universitários enquanto que o MIT tentava se construir nas estruturas operárias, especialmente entre os trabalhadores mineiros, e nos bairros populares. Depois destes dois anos e meio, o PTR continua praticamente igual, enquanto que o MIT não apenas teve um crescimento importante, mas também ganhou maior influência  e abriu um diálogo com um setor, pequeno porém real, da vanguarda operária, popular e juvenil que participou do processo iniciado em outubro de 2019.

Finalmente, para fechar esta questão, quando um setor de constituintes eleitos pela Lista do Povo começou a organizar um projeto de transformar a lista em uma organização política permanente que se integraria ao “sistema”, o MIT rompeu com ela. Nesse momento, o MIT expressou em um artigo: “para nós o mais importante é o programa que os partidos/organizações defendem e quais interesses defendem dentro da sociedade”[8]. A verdade é que María Rivera agiu na Convenção de modo completamente independente, denunciando, por um lado, a “armadilha institucional” e, por outro, realizando acordos concretos com constituintes que se mantinham independentes, para impulsionar lutas como a nacionalização/estatização da mineração (principal ramo da economia chilena) ou a defesa dos direitos do povo mapuche.

A eleição de María Rivera e sua atuação na Constituinte

Acreditamos ser necessário aprofundar esta questão: o PTS/PTR disse que ela foi eleita de “forma oportunista” (algo que o MIT e a LIT-QI estaríamos tentando “ocultar”) e que “ela quase não foi vista em lutas reais”. Com estas considerações, o PTS/PTR excede as críticas que surgem das diferenças que têm com a política que María defende (e inclusive com as táticas que derivam dela). Demonstram um profundo desprezo pela trajetória de uma militante que (para além das diferenças que tenham com ela, com seu partido e com a corrente à qual pertence) tem décadas de luta a serviço da classe trabalhadora. É uma atitude que nos indigna: vocês podem escrever o que quiserem em seus artigos jornalísticos, mas não poderiam defendê-lo por um minuto em uma assembleia de familiares de presos políticos chilenos, que estiveram na Primeira Linha ou em muitas estruturas operárias às quais nossa camarada esteve ligada.

María tem 64 anos. Começou a militar aos 12 anos em apoio, como muitos jovens chilenos, à candidatura de Salvador Allende. Dois anos depois, tornou-se ativista em sua escola secundária, como parte da FER (Frente de Estudantes Revolucionários, ligada ao MIR-Movimento de Esquerda Revolucionária). Em 1980, é detida pela CNI (Central Nacional de Informações), o serviço de inteligência da ditadura de Pinochet e fica presa no quartel Borgoño, um dos maiores centros de detenção e tortura da ditadura, do qual é sobrevivente. Em 1983, junto com seus filhos, se exila na Argentina, país no qual entra nas fileiras do MAS (Movimento ao Socialismo) onde milita, entre outros lugares, em bairros operários de Lanús, durante sete anos. Em 1990, pôde voltar ao Chile e, desde então, é ativa construtora das organizações da LIT-QI.

Em 2004, é reconhecida como “sobrevivente de prisão política e torturas” durante a ditadura. Depois, já como ativista pelos DDHH, decide usar sua bolsa pela reparação para estudar Direito. Em 2008, é fundadora da Defensoria Popular, organização de advogados que atende sem custo as vítimas da repressão policial e estatal. Em 2010, se gradua como advogada e se transforma em uma das principais figuras defensoras de presos políticos e vítimas da repressão, muito querida e respeitada por numerosos ativistas sindicais, juvenis e populares.

O processo de luta iniciado em outubro de 2019 a encontrou disposta, como parte da coluna do MIT na Plaza Dignidad, onde sua figura se destacava agitando com um megafone. Ao mesmo tempo, redobrou sua atividade como advogada ao tomar a defesa de muitos membros da Primeira Linha, detidos e presos pela repressão do governo de Piñera. Inclusive em plena pandemia, arriscou sua saúde ao ir permanentemente às prisões (onde o coronavírus se expandia aceleradamente) para atender àqueles que defendia. Muitos deles defenderam e apoiaram sua candidatura à constituinte frente àqueles que a acusam de “oportunista”.

Apresentou-se como candidata à constituinte pelo Distrito 8 de Santiago que, com 1,5 milhão de habitantes, é o maior do país e onde se encontram várias comunas operárias e populares. Nesse distrito, sua candidatura foi apoiada por mais de 5.000 assinaturas e obteve mais de 16.000 votos, umas das votações individuais mais altas desse distrito. María foi eleita pela sua trajetória de lutadora e, especialmente, pela atividade desenvolvida a partir de outubro de 2019. Sua integração à Lista do Povo foi feita por considerações políticas. Não teve nada de “oportunista”: teria sido eleita em qualquer lista que integrasse.

Dissemos que as considerações do artigo do PTS excedem o debate de diferenças políticas. Dá a impressão de que expressa diferentes critérios de classe para avaliar os fatos; neste caso, a eleição como parlamentares de lutadores operários e de esquerda. Por exemplo, tal como cita o próprio artigo do PTS, para além das diferenças que tenhamos com este partido, o PSTU da Argentina e da LIT-QI expressamos que “a eleição, pela primeira vez, de um trabalhador e deputado de origem indígena como Alejandro Vilca é digna de comemoração”. Da mesma forma, comemoramos a boa votação da FIT-U e a eleição de outros deputados. Mas parece que, para o PTS, como María não foi eleita pela lista do PTR deixou de ser uma grande lutadora e passou a ser uma “oportunista”, “gritona e charlatã”.

Não obstante, parece que a burguesia, a direita e os órgãos repressivos do Chile não opinam o mesmo. Desde outubro de 2019, recebeu numerosas ameaças de morte [9] e o comando dos Carabineiros apresentou contra ela uma denúncia pelo suposto delito de “sedição”. A mídia digital El Líbero publicou um artigo apoiando esta acusação: María Rivera é “A advogada que incentivou a ruptura nos Carabineiros para derrotar o governo e que agora quer ser constituinte”. Não é qualquer mídia: é editada por uma sociedade cujos cinco sócios fundadores são Hernán Büchi B., Gabriel Ruiz Tagle, Eduardo Sepúlveda M., José Antonio Guzmán A. e Carlos Kubick O., economistas e empresários integrantes da “nata” da burguesia formada com Pinochet e que se manteve nestes 30 anos (Piñera faz parte dessa “nata”) [10].

O exemplo do Brasil

O debate que estamos realizando não se limita ao Chile e à Argentina: é um debate geral de concepções que inclui, por um lado, os critérios para caracterizar os processos de luta e, por outro, qual deve ser o centro da atividade de uma organização revolucionária para construir-se, ajudar o reagrupamento e o desenvolvimento da consciência dos ativistas e lutadores, e avançar na superação da crise de direção revolucionária.

Para a LIT-QI e suas seções, a atividade central deve ser a agitação e a propaganda revolucionárias ligadas às lutas e aos processos profundos da classe operária e das massas. Nesse marco, a atividade eleitoral e parlamentar é, como dizia Lenin, um ponto de apoio secundário a serviço desse centro. Para a FT e suas seções, para desenvolver a agitação e a propaganda, o centro passou a ser a atividade eleitoral e parlamentar, obter muitos votos, e eleger deputados. Em função disso, transformou em sua proposta principal a formação de frentes eleitorais de esquerda (ou partidos frente) que, quando concretizam, acabam tendo um perfil “anticapitalista”: ou seja, de unidade dos revolucionários com os reformistas “honestos” (às vezes, nem tanto).

Esta concepção e política se expressaram com nitidez e sem ambiguidades no Brasil onde a FT tinha conseguido construir uma organização inicial (a LER, Liga Estratégia Revolucionária) que, dos meios universitários, buscava se expandir para a classe operária. No contexto de importantes lutas contra o governo de Dilma Rousseff, do PT (que o PSTU brasileiro impulsionava diretamente e através de sua influência na CSP-Conlutas), a LER mudou seu nome para MRT (Movimento Revolucionário dos Trabalhadores).

A atividade inicial central do MRT foi o desenvolvimento de uma campanha para entrar no PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), um partido-frente eleitoral do qual participam várias organizações que se reivindicam trotskistas, mas que é dirigido por setores ultra reformistas e pró-burocráticos ligados ao PT de Lula. Até aqui, poderia se tratar apenas de uma tática para entrar no PSOL, crescer um pouco, e sair fortalecidos.

Entretanto, esse não era o raciocínio do MRT/FT. No “Manifesto do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, em campanha pelo #MRTnoPSOL”, se afirma:

“O PSOL é um partido que, acima de tudo, nas últimas eleições, com a candidatura de Luciana Genro e diversos deputados, apareceu como uma alternativa à esquerda do PT para uma importante audiência de massas. Luciana teve 1,6 milhões de votos como uma importante expressão do combate aos setores mais conservadores da política brasileira”. Por isso, a proposta do MRT é “lutar com nossas ideias revolucionárias dentro do PSOL para construir uma forte alternativa dos trabalhadores”. Pelo contrário, “o PSTU, apesar de levantar pontos corretos de programa, vem renunciando a apresentar-se como verdadeira alternativa, cada vez mais restrito a um sindicalismo que agita na propaganda à ‘greve geral’, mas não dá uma resposta à crise do PT nem à luta de classes”.

Em outro material, o MRT caracteriza que, pela diferença nos votos obtidos por ambos os partidos nas eleições, “o que devemos ter nítido é que a tendência é a emergência política do PSOL frente à crise do PT e que o PSTU se consolida como uma  grande seita sindicalista que desaparece do terreno político”, apesar de reconhecer que “na CSP-Conlutas estão os sindicatos antigovernistas do país” [11].

Passemos a limpo o raciocínio do MRT/FT: o importante para ter peso político e “ser alternativa” na vanguarda e no ativismo operário e popular é obter muitos votos e deputados. Se ao contrário, tem peso de direção na central na qual se agrupam os sindicatos que lutavam contra o governo do PT (ou seja, peso estrutural e organizativo na classe trabalhadora), mas se obtém poucos votos, um partido se converte em uma “seita sindicalista grande” sem futuro político.

O MRT não conseguiu entrar no PSOL mas permaneceu “satélite” vários anos ao redor deste partido. A realidade deu um duro golpe nesta concepção e nesta política: o PSOL foi girando cada vez mais à direita e aproximando-se ao PT de Lula, a tal ponto que nas próximas eleições presidenciais nem sequer apresentará candidato próprio, mas apoiará a fórmula de Lula e Geraldo Alckmin (um homem proveniente da direita tradicional que, quando foi governador do Estado de São Paulo, reprimiu duramente as lutas).

Como continuar acompanhando o PSOL já era “insuportável”, o MRT deu um giro e agora participa do Polo Socialista e Revolucionário, a proposta eleitoral liderada pelo PSTU brasileiro. Parece, então, que o partido da LIT-QI deixou de ser uma “grande seita sindicalista” sem futuro político.

Finalmente, Argentina

À diferença do Chile e do Brasil, onde a política da FT foi derrotada pela realidade, na Argentina está dando bons resultados: a influência eleitoral da FIT-U cresce, elege vários parlamentares e, nesse marco, o PTS (a organização mais forte da FIT-U) seguramente amplia sua audiência e sua militância.

A conclusão do PTS é: “Tudo isso foi conseguido a partir da agitação de um programa anticapitalista e socialista…que mostra à esquerda que é possível obter influência em setores amplos da vanguarda (em perspectiva de massas) sem rebaixar o programa anticapitalista…” na perspectiva de “a construção de uma frente única operária para derrotar os ajustes e o acordo do FMI e abrir um caminho na mobilização independente da classe trabalhadora e do povo” […] “Essa é a estratégia que marca a atuação do PTS na FIT e suas tribunas parlamentares: desenvolver a mobilização e preparar a frente única para a luta contra o acordo do FMI, sustentando uma política independente dos blocos capitalistas da direita e do peronismo”.

Nos artigos citados no início se desenvolve a crítica que o programa “anticapitalista” que o PTS e a FIT-U agitam é, na realidade, um programa rebaixado que não levanta abertamente a necessidade de uma revolução contra o regime democrático burguês. Aqui queremos focar na relação entre os processos de luta e a ação eleitoral e parlamentar dos revolucionários.

Para nós, como dissemos, o central são os processos de luta, e a ação eleitoral parlamentar deve estar a seu serviço. Para o PTS, pelo menos em sua atividade concreta, é o contrário. Nesse marco, se dá o debate sobre como se avança na construção de uma “frente única para a luta contra o acordo do FMI”.

Um fato recente nos permite ver com nitidez as diferenças entre nossas políticas. O Congresso argentino votava a aprovação do acordo que o governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner tinha assinado com o FMI. Não era uma questão menor, mas essencial: o acordo reafirmava e aprofundava a dependência semicolonial do país com o imperialismo e o caráter do Congresso como uma instituição a seu serviço.

Fora do congresso se desenvolveu uma importante mobilização popular que tentou impedir essa aprovação (inclusive houve ataques com pedras às janelas dos gabinetes de parlamentares) que acabou sendo duramente reprimida. Para qualquer lutador, não socialista, mas anti-imperialista, com sangue nas veias, era absolutamente nítido que esse era o centro da atividade dos revolucionários e que a ação dos parlamentares revolucionários devia estar a serviço disto. Ao mesmo tempo, essa mobilização era uma alavanca concreta para avançar na construção de uma “frente única para a luta contra o acordo do FMI”.

O PTS, indiscutivelmente, chamou essa mobilização e sua coluna esteve presente nela. Mas sua política profunda era que servisse como um elemento de pressão para a ação de seus parlamentares, o que caracterizam como “duras lutas políticas em que nossos deputados intervêm no Parlamento, nas quais houve dezenas de encruzilhadas e duros debates com representantes dos blocos capitalistas, seja de direita ou peronistas, como a denúncia ao acordo com o FMI…”

Porém pelo caráter de instituição semicolonial do Parlamento argentino, essa batalha estava perdida de antemão e nenhum “duro debate” mudaria essa realidade. Se alguma coisa poderia impedir a votação favorável ao acordo com o FMI era a mobilização e a luta que se desenvolvia fora do Congresso, e os deputados da FIT-U deveriam colocar sua ação a serviço dessa luta e não continuar, como se nada acontecesse, com seu duro debate parlamentar.

Os deputados da FIT-U não fizeram nada disso. Por isso, tem razão o artigo do PSTU argentino que critica sua atuação nesse dia e expressa que deviam “ao menos fazer algo como o que Zamora fez em 1991 quando repudiou a presença de Bush no Congresso” (e por isso foi expulso aos empurrões do recinto) ou “ter feito um escândalo quando começou a repressão e apresentar uma moção para suspender a sessão” [12]. Os deputados da FIT-U não fizeram nada disso. Inclusive, como destaca este último artigo “até uma queima de coberturas (que não deixa de ser um ato simbólico) gerou rechaço da forças da FIT-U”.

Então, camaradas do PTS, estamos discutindo uma questão muito profunda: duas concepções sobre qual é o caminho para avançar para uma estratégia de revolução socialista e, nesse caminho, como avançamos na construção de uma alternativa de direção revolucionária. O caminho é impulsionar e intervir nas lutas, e a atividade eleitoral e parlamentar deve ser posta como um ponto de apoio secundário a esta tarefa, como sustenta a LIT-QI? Ou o centro da atividade atual deve ser a ação eleitoral e parlamentar e nela reagrupar a vanguarda como algo prévio a um verdadeiro impulso das lutas como sustenta de fato o PTS/FT?

Como vimos, esta orientação fracassou no Chile e no Brasil. No entanto, é na Argentina onde a FIT-U ganha peso eleitoral e parlamentar, que se torna muito mais perigosa, porque acaba sendo um fator que freia o desenvolvimento das lutas reais, como neste enfrentamento contra a aprovação do acordo com o FMI e, pelo mesmo motivo, freia o avanço na construção de uma verdadeira alternativa de direção revolucionária.

[1] O artigo do PTS pode ser visto em:https://www.laizquierdadiario.com/La-LIT-y-la-perdida-de-la-brujula-estrategica-Para-que-intervenir-en-elecciones-y-el-parlamento; os artigos da LIT-QI em: https://litci.org/pt/argentina-a-adaptacao-dos-deputados-da-fit-u-ao-parlamento-burgues/ https://litci.org/pt/argentina-como-teria-que-enfrentar-o-acordo-com-o-fmi/

[2] Tomado da versão Leon Trotsky (1932): Historia de la Revolución Rusa, Tomo I. (marxists.org)

[3] Sobre este debate, recomendamos ler o artigo de Alejandro Iturbe “En defensa de la revolución permanente” publicado na revista Marxismo Vivo Nueva Época No 3 (Ediciones Marxismo Vivo, San Pablo, Brasil, 2013).

[4] Ver, entre outros artigos da página do MIT e da LIT-QI: https://www.vozdelostrabajadores.cl/que-pasaria-no-acabamos-con-el-capitalismo

[5] https://www.laizquierdadiario.cl/spip.php?page=voice&id_article=204723

[6] O que podemos esperar do processo constituinte em: https://litci.org/pt/chile-6/

[7] https://litci.org/pt/maria-rivera-uma-candidatura-independente-e-revolucionaria-ao-distrito-8/

[8] A crise na Lista do Povo e a saída do MIT em: https://litci.org/pt/64684-2/

[9]https://litci.org/es/declaracion-del-mit-sobre-la-persecucion-a-nuestra-camarada-maria-rivera/

[10] https://litci.org/es/64805-2/

[11] Para conhecer este debate de conjunto, recomendamos ler: https://litci.org/pt/a-capitulacao-do-mrt-a-frente-popular/

Tradução: Lilian Enck

Leia também