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terça-feira, março 19, 2024

O imperialismo impõe um apartheid das vacinas

Lenin destacou, entre outros, um traço característico do imperialismo: “o capitalismo se transformou em um sistema mundial de opressão colonial e de estrangulamento financeiro da esmagadora maioria da população do planeta por um punhado de países ‘avançados’” [1].

Por: Daniel Sugasti

Em meio à pandemia mais mortífera que a humanidade conheceu em um século, esse conceito pode ser sintetizado em um fato: 60% das vacinas que serão produzidas em 2021 já foram monopolizadas por Estados que representam 16% da população mundial. Em fins de março já tinham sido aplicadas 536 milhões de doses, das quais 76% se concentraram nos dez países mais ricos[2].

Cerca de 40% das doses que serão produzidas – já falaremos da capacidade de produção – está sendo disputada por 84% dos seres humanos. Isto determina que só uma de cada dez pessoas que vive nos países pobres será vacinada em 2021. Está em curso um genocídio global.

Ter desenvolvido não só uma, mas várias vacinas seguras e eficazes contra a covid-19 em menos de um ano significa uma imensa conquista da humanidade. No entanto, este salto da ciência não está a serviço de combater a dramática ameaça que paira sobre o mundo – a pandemia – mas de enriquecer os magnatas de corporações de biotecnologia que podem ser contados nos dedos. As vacinas, como tudo sob o império das leis do capitalismo, são mercadorias só à disposição de quem possa pagar por elas.

Se aplicarmos o critério de Lenin, isto significa que todo o processo de investigação, produção, distribuição e aplicação dos imunizantes não está regido por critérios sanitários –salvar vidas – mas pelas regras do mercado capitalista, ditadas pelos royalties de imensos monopólios detidos por empresas de um “punhado de países avançados”.

Em consequência, a luta por “vacinas para todos e todas” só pode ocorrer derrotando o capitalismo. Este modo de produção, anárquico, é a razão fundamental pela qual os países pobres e semicoloniais recebem vacinas a conta gotas enquanto que os países imperialistas monopolizam o grosso das doses produzidas e a produzir.

O problema começa com a capacidade de produção. As empresas de biotecnologia que desenvolveram as vacinas que agora estão no mercado, garantem reunir as condições para produzir cerca de três bilhões de doses em 2021, que seria suficiente para inocular no máximo  um terço da população mundial. Esse nível de produção está muito longe do necessário para vacinar 70% da população global, única forma de derrotar a pandemia, posto que esta meta implica dispor de ao menos dez bilhões de doses.

A escassez originou a “guerra das vacinas”, uma disputa completamente desigual. Muito antes de ter concluído o período de testes e, consequentemente, de começar a produção massiva, os Estados ricos compraram a maior quantidade dos antígenos por meio de contratos secretos com as corporações biotecnológicas. Isto faz com que poucos países tenham doses suficientes garantidas para imunizar não uma, mas várias vezes suas próprias populações. Por exemplo, o Canadá terá nove doses por habitante; os EUA terá sete; a União Europeia, quatro. Neste ritmo de produção, muitos países não receberão suas primeiras doses até 2023. Se olharmos o mapa de vacinação mundial, é evidente a divisão entre países ricos e pobres. Deste modo, a linha entre o norte e o sul do planeta adquire um significado ainda mais perverso: marca os limites do apartheid das vacinas.

Fuente: DW

Esta desigualdade, além de sórdida, é inútil para superar a pandemia. De nada serve que alguns poucos países imunizem 70% de suas populações se a covid-19 continua circulando em outras áreas do mundo. Se não for erradicado, o vírus continuará  sendo transmitido e mutando, criando novas variantes que invalidarão a eficácia das vacinas atuais. É o que ocorre atualmente. À medida que os governos burgueses se recusam a quebrar as patentes, se negam a impor medidas de distanciamento físico com renda garantida para a classe trabalhadora e, por sua vez, não avançam na vacinação, o SARS-CoV-2 desenvolveu a cepa “britânica”, “sul-africana” e “brasileira”, mais transmissíveis e, possivelmente, mais letais.

As populações contempladas no “apartheid das vacinas”, nesse caso, deveriam manter-se isoladas do resto, algo impossível no contexto de um mercado mundial dependente de uma constante circulação de mercadorias e força de trabalho. O “nacionalismo das vacinas” pode parecer completamente irracional- e é – , mas esse desequilíbrio, esse caos, é perfeitamente coerente com a lógica do capitalismo, que sem exceção priorizará o lucro de alguns poucos em detrimento da saúde – e da vida- da humanidade e do planeta.

É necessário compreender que em meio à tamanha emergência planetária não existe meio termo. Ninguém estará a salvo até que todos estejam a salvo. Neste sentido, a classe trabalhadora dos países imperialistas deve tomar em suas mãos a bandeira de um combate global contra a pandemia.

Quebrar as patentes das vacinas

Porém, se poderia perguntar: por que há escassez das vacinas? Por acaso o desenvolvimento tecnológico e industrial, em pleno século XXI, não é capaz de suprir esta necessidade?

Aqui entra o problema das patentes. É tarefa inadiável organizar a luta para romper os direitos de propriedade intelectual não só das vacinas, mas de todos os medicamentos e de qualquer tecnologia médica necessária para conter a covid-19.

O mecanismo de patentes – utilizado para “proteger” qualquer produto – permite às farmacêuticas e outras empresas explorar uma invenção, neste caso as vacinas, durante 20 anos a partir de sua concepção. Ou seja, é uma ferramenta jurídica sobre a qual se assenta o monopólio do produto dos avanços científicos e das novas tecnologias, permitindo que as empresas de biotecnologia determinem a escala de produção e o preço dos imunizantes ou tratamentos, neste caso contra a covid-19.

As regras de proteção intelectual são a principal barreira para que as vacinas possam ser produzidas em países com capacidade industrial adequada mas ociosa, como Canadá, Brasil, México, Argentina, Índia, Egito, Coréia do Sul, entre outros. Para se ter uma ideia, só o Serum Institute da Índia é capaz de produzir 1,5 bilhão de doses ao ano.

Sem esse obstáculo, seria possível uma produção e abastecimento em escala massiva, barateando todo o processo e, em consequência, acelerando a vacinação em todos os países.

A gravidade da crise fez com que inclusive Estados burgueses periféricos, como a Índia e a África do Sul, solicitassem em outubro passado a liberação das patentes das vacinas contra a covid-19 perante a Organização Mundial do Comércio (OMC).

O documento propõe para todos os membros da OMC uma isenção de certas medidas de propriedade intelectual em vacinas, medicamentos, testes de diagnóstico e outras tecnologias contra a covid-19 enquanto durar a pandemia. A essa iniciativa se uniram mais de 100 países e outras 370 organizações internacionais, entre elas Saúde por Direito e Médicos sem Fronteiras, que solicitaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) e aos governos dos países ricos para que “coloquem a vida das pessoas à frente dos monopólios empresariais” [3]. Ou seja, a bandeira da quebra das patentes foi assumida, inclusive, por um setor da burguesia mundial.

Mas, como se esperava, a proposta recebeu um rotundo rechaço dos principais Estados imperialistas, que por sua vez são sede das empresas que desenvolveram e patentearam as vacinas, os EUA, a União Europeia, o Reino Unido, Suíça, Japão, Canadá, Espanha, entre outros, se uniram para manter o monopólio da produção dos antígenos alegando que a segurança jurídica é um incentivo fundamental para que as empresas “assumam riscos” e canalizem investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias. Houve duas reuniões em fevereiro e uma em março, e todas negaram a liberação das patentes. Espera-se que o debate continue em abril.

A posição monopolista não coube apenas aos países ricos. O Brasil, um país semicolonial, que atravessa seu pior momento na pandemia, também se opôs à medida. Esta postura, evidentemente, guarda relação com a política genocida do governo Bolsonaro, que desse modo não só priva sua própria população dos imunizantes como a de outros países da região, posto que o Brasil conta com uma indústria capaz de produzir vacinas para milhões.

O mesmo vale para o eventual resultado dos cerca de 1.600 ensaios clínicos com testes que envolvem humanos, que estão em curso com o objetivo de desenvolver medicamentos para combater as graves complicações da covid-19. No Brasil, o Instituto Butantã em São Paulo desenvolve um soro injetável rico em anticorpos, que poderia frear o avanço da doença e evitar, por exemplo, que ataque os pulmões de pessoas já infectadas. A Pfizer está desenvolvendo um antiviral oral. A Roche pesquisa um coquetel de aplicação intravenosa baseado nos chamados anticorpos monoclonais, que poderia reduzir o risco de hospitalização e morte em 70%. As farmacêuticas MSD e Ridgeback realizam ensaios clínicos da fase 2 com o antiviral oral molnupiravir, que pode inibir a replicação de vírus de ARN como o SARS-CoV-2[4]. Tudo isto é promissor, mas se o princípio das patentes não for eliminado, o preço fará que os possíveis novos tratamentos estejam disponíveis somente para quem puder pagá-los.

As vacinas são uma conquista do capitalismo?

Recentemente, Boris Johnson, primeiro ministro britânico, declarou sem medir hipocrisia que a existência e o êxito das vacinas se deve à “cobiça” e ao “capitalismo” [5] Na realidade, é o oposto. O capitalismo limita qualquer avanço científico no qual a burguesia não identifique uma oportunidade de lucro imediato. Por isso não desenvolveu uma pesquisa consequente para obter uma vacina depois do surto do SARS-CoV-1 que surgiu em 2003 nos países do Sudeste asiático. Como essa epidemia foi controlada relativamente rápido, o potencial de lucro da indústria farmacêutica se desvaneceu e o mundo ficou à mercê de um novo surto, que ocorreu em fins de 2019. O capitalismo é uma camisa de força que aprisiona a ciência.

Por outro lado, argumentar que o mundo deve a existência das vacinas ao risco assumido pelos capitalistas é uma enorme mentira. As vacinas contra a covid-19 só foram possíveis porque existiu uma enorme injeção de fundos públicos. De acordo com a empresa de análise de dados científicos Airfinity, 61% do investimento destinado à produção de vacinas veio dos cofres públicos, contra 24% fornecido pelas empresas [6].

Embora os contratos entre as empresas e os Estados sejam secretos, sabe-se que a Oxford AstraZeneca recebeu, pelo menos, US$ 2,22 bilhões; Johnson & Johnson, US$ 819 milhões; Moderna, US$ 562 milhões; entre outras companhias.

Fonte: BBC

O processo de desenvolvimento das vacinas contra a covid-19 não escapou à norma do capitalismo segundo a qual a geração de conhecimento e a produção é social, enquanto que a apropriação dos lucros é privada. Em outras palavras, o custo é público, mas os lucros engrossam as contas bancárias de alguns poucos.

A própria AstraZeneca afirmou em repetidas ocasiões que o desenvolvimento dos produtos biológicos não terá implicações financeiras para a empresa, posto que “se prevê que os gastos para fazer avançar a vacina sejam compensados com fundos de governos e organizações internacionais” [7]. Entretanto, os gestores admitem que podem chegar a cobrar até 20% a mais do custo de produção da vacina [8].

Sem o dinheiro público, seja através da compra antecipada ou dos recursos injetados “a fundo perdido”, dificilmente as empresas farmacêuticas e de biotecnologia  teriam assumido algum risco. Do seu ponto de vista, a criação de vacinas, em tempos de emergência sanitária, não se demonstrou rentável no passado. As nações pobres precisam de grandes suprimentos, mas não podem pagar um preço muito alto. Além disso, as vacinas só podem ser administradas uma ou duas vezes. Até agora não se confirmou se a covid-19, como é o caso do lucrativo mercado de vacinas contra a gripe, precisará de doses de reforço anuais. Nessa hipótese, a rentabilidade aumentaria e é mais provável que as empresas invistam um pouco mais de seus próprios recursos.

O capitalismo não tornou possível as vacinas, como celebra Boris Johnson. O capitalismo, isso sim, parasitou o processo coletivo de conhecimento científico para obter lucros no que configura, para muitos, “o negócio do século”.

Assim, na medida em que sugam bilhões do dinheiro público, as empresas de biotecnologia aumentam seu valor de mercado. Enquanto milhões adoecem, morrem, perdem seus empregos ou fontes de renda no mundo, os acionistas das empresas que desenvolveram as vacinas se enriquecem cada vez mais. Ainda que tenham experimentado diferentes níveis de crescimento, seis dos laboratórios que lideram o mercado das vacinas obtiveram uma valorização de mais de US$ 85 bilhões em 2020[9].

Isto foi expresso em cenas grotescas, como o caso de Albert Bourla, CEO da Pfizer, que vendeu 62% de suas ações no dia em que a empresa anunciou os resultados preliminares da eficácia de sua vacina anticovid. Com essa informação privilegiada, Bourla aproveitou o previsível aumento das ações e pode embolsar US$5,6 milhões[10]. Poucos meses antes, executivos da Moderna venderam grandes quantidades de ações após anunciar resultados promissores de sua vacina, então na fase inicial.

A saída diante da escassez de vacinas que o imperialismo propõe é a iniciativa Covax, liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao menos 72 países se uniram a ela com o objetivo de imunizar 20% da população mundial de maior risco em 2021. Mas o mecanismo Covax é em todos os aspectos insuficiente. Em primeiro lugar, porque não resolve o problema principal: a produção. Na prática, se limita a redistribuir os excedentes que os países ricos optem por “compartilhar” com os pobres. Covax, como incontáveis outros potenciais compradores, deve “competir” por 40% das vacinas que serão produzidas e que não foram monopolizadas pelos países ricos. Para piorar as coisas, dispõe de US$ 2 bilhões, quando seria necessário US$ 5 bilhões.

Socialismo ou barbárie

Para deter o genocídio que está em curso, é preciso compreender que não existe saída efetiva para a classe trabalhadora enquanto a saúde estiver nas mãos da classe capitalista. Para os ricos, que podem furar a fila da vacinação e serem atendidos da melhor maneira possível, a vida de milhões de trabalhadores não importa.

O lema da burguesia mundial é e será: “não importa quantos morram, os negócios não podem parar”. Esta é a lógica inexorável do capitalismo. O importante é continuar produzindo, lucrando. O resto não importa, não passará de um “dano colateral”. A classe trabalhadora, para os ricos, é bucha de canhão. Não existe meio termo: ou eles, ou nós.

A única saída realista e coerente para a defesa da vida de milhões de pessoas é liquidar o capitalismo. Isto implica, entre outras medidas urgentes, a expropriação, sem indenização e sob controle operário, das principais molas da economia mundial. E, em meio à pandemia, especialmente dos complexos industriais farmacêuticos e dos destinados à produção de vacinas e equipamentos médicos, como leitos, respiradores, oxigênio, máscaras, óculos, luvas, álcool, e todo o necessário para enfrentar esta doença.

A única coisa que pode liquidar esta anarquia é a aplicação de um programa socialista. Só uma economia socialista poderá garantir uma saúde pública, gratuita, universal e de qualidade. É urgente confiscar estes setores, que estão nas mãos de um punhado de magnatas, e colocá-los para funcionar sobre a base de um plano econômico concebido e controlado pela classe operária. Enquanto imperar o modo de produção e o mercado capitalistas, a imunização da humanidade será uma quimera. Não obstante, conscientes da necessidade imediata, a luta pela quebra das patentes é o principal desafio da classe trabalhadora. A luta anti-imperialista assume um sentido concreto e imediato na luta contra as barreiras legais que impedem a produção de vacinas e, portanto, da imunização em massa.

Como afirmamos em outras publicações neste site, como poucas vezes na história está apresentada de maneira tão dramática a disjuntiva entre socialismo ou barbárie, socialismo ou extermínio sistemático da maior parte da humanidade.

Notas:

[1] LENIN, V. I. El imperialismo, fase superior del capitalismo. Madrid: Fundación Federico Engels, 2010, p. 7

[2] Ver: <https://www.swissinfo.ch/spa/coronavirus-oms_oms–se-han-superado-500-millones-de-vacunaciones–pero-a%C3%BAn-hay-desigualdad/46488768 >.

[3] Ver: <https://www.elespanol.com/invertia/observatorios/sanidad/20201019/ong-limitar-patentes-vacunas-tratamientos-frente-covid/529447460_0.amp.html>.

[4] Ver: <https://www.bbc.com/mundo/noticias-56584885>.

[5] Ver: <https://www.theguardian.com/politics/2021/mar/23/greed-and-capitalism-behind-jab-success-boris-johnson-tells-mps>.

[6] Ver: <https://www.bbc.com/mundo/noticias-55293057?fbclid=IwAR3F8ebgFUxTe-KwoB6b6jN2T9ai7raA7ntRvSNzbteHl2PR6SQJxIO4iw0>.

[7] Ver: < https://msf-spain.prezly.com/los-gobiernos-deben-exigir-a-las-farmaceuticas-que-hagan-publicos-todos-los-acuerdos-de-licencia-de-vacunas-de-covid-19 >.

[8] Ver: < https://msf-spain.prezly.com/los-gobiernos-deben-exigir-a-las-farmaceuticas-que-hagan-publicos-todos-los-acuerdos-de-licencia-de-vacunas-de-covid-19 >.

[9] La vacuna. El negocio de las farmacéuticas: <https://www.youtube.com/watch?v=2UHxJpSYloA>.

[10] Ver: <https://www.forbes.com.mx/negocios-ceo-de-pfizer-vendio-62-de-sus-acciones-ante-anuncio-de-prometedora-vacuna/?fbclid=IwAR2WlU44J2d1HRcCcqVEEc6Ifv2MluyLRr7Y_ZVaKZtkh0Bms_Zh4a5dRb8 >.

Tradução: Lilian Enck

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