Não podemos esquecer a pandemia de Covid-19
No mês passado, a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou “o fim da emergência de saúde global devido à covid-19”, após mais de três anos de seu início [1]. Essa pandemia causou 600 milhões de infecções e um número oficial de 7 milhões de mortes (cálculos mais realistas estimam mais de 20 milhões, número superior ao das vítimas da Primeira Guerra Mundial). No quadro do capitalismo imperialista, a pandemia assumiu um “perfil de classe” e atingiu muito mais duramente a classe trabalhadora e os setores populares, também em suas fortíssimas consequências econômicas e sociais. O que causou essa pandemia? Por que atingiu essa gravidade? Qual e a situação atual?
Por: Alexandre Iturbe
O capitalismo imperialista e as burguesias nacionais difundem na mídia a ideia de que a pandemia “já passou” e querem que o sofrimento vivido seja esquecido. Assim como pretendem que se aceite a deterioração das condições de vida dos trabalhadores e das massas, provocada ou acentuada pela pandemia. Mas não devemos esquecê-la: pelo contrário.
Em primeiro lugar, porque embora as zoonoses (doenças de origem animal que se transmitem aos humanos) sejam um “fato natural”, tem sido o capitalismo imperialista que tem criado condições cada vez mais favoráveis para que uma zoonose se transforme em uma pandemia da magnitude que a covid-19 chegou.
Em vários artigos, analisamos que a destruição da natureza reduziu o habitat natural de inúmeras espécies, muitas até se extinguindo. Por isso, vírus que geram doenças voltadas para essas espécies “procuram” outras onde possam se hospedar e assim manter seu ciclo natural de sobrevivência.
Ao mesmo tempo, a produção capitalista concentrou uma grande biomassa de animais em sistema intensivo de produção para consumo humano, em condições de grande superlotação, de forma que qualquer entrada de vírus se espalha rapidamente entre eles. Essas concentrações de animais estão muito adjuntas e em contato permanente com as grandes cidades próximas. Essas são as condições para a expansão de uma zoonose. Não é por acaso que, antes da covid, nas últimas décadas vimos surtos de “doença da vaca louca”, gripe suína e gripe aviária. Se somarmos o intenso trânsito de mercadorias e pessoas dentro de cada país, e além-fronteiras, as condições tornam-se mais propícias.
O negócio da saúde pública
Esse contexto favorável para o surgimento e expansão do contágio de covid foi agravado porque o capitalismo o enfrentou após décadas de ataque e deterioração dos sistemas públicos de saúde em todo o mundo.
A saúde pública transformou-se em um imenso e lucrativo negócio para grandes empresas privadas, donas de modernos centros de atendimento, produção de remédios e vacinas e de fabricação de equipamentos necessários para os casos mais complexos. Além desse grande negócio, os centros estatais gratuitos carecem de recursos mínimos para cuidar da saúde da população que não pode pagar por um atendimento melhor.
Como exemplo deste “negócio da saúde” ao serviço dos lucros destas empresas privadas, verificamos que uma vacina contra a covid poderia ter sido desenvolvida uma década antes das que foram finalmente utilizadas na recente pandemia. A partir de 2002, estourou um surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave) causado por um vírus semelhante à covid, semelhante ao de 2020, que afetou populações no sul da China e outros países da região.
Apesar das advertências de especialistas sobre o risco de pandemias virais, as empresas farmacêuticas privadas não iniciaram o desenvolvimento de uma vacina porque o lucro estimado que teriam não o justificava. Uma nova e séria responsabilidade do capitalismo imperialista na extensão e impacto da última pandemia.
Uma luta com as mãos amarradas
A dinâmica acelerada da pandemia foi ainda pior em países cujos governos tinham uma política criminal negacionista (“é só uma gripezinha”) como o de Donald Trump nos EUA e o de Jair Bolsonaro no Brasil. Desta forma, estes países encabeçaram a triste lista mundial com maior número de infeções e vítimas mortais.
Os governos que afirmaram que o combate à pandemia era sua prioridade o fizeram de mãos amarradas: com sistemas de saúde pública deteriorados e pouco financiamento estatal. Recorreram então a velhas medidas essenciais, mas que por si só eram insuficientes para combater e derrotar a pandemia, como a obrigatoriedade do uso de máscaras, o distanciamento e o isolamento social.
Diante dessas medidas parciais e insuficientes, e sem um plano sério para o funcionamento econômico da sociedade, os trabalhadores e setores populares se viram divididos. Um setor, o dos trabalhadores precarizados, ambulantes e muitos pequenos trabalhadores por conta própria, enfrentava uma situação de sobrevivência quase insuportável.
Outro setor foi enquadrado em “atividades essenciais” (grande parte da produção industrial, saúde e transporte etc.) e, assim, obrigados a ir em transportes lotados para seus locais de trabalho onde as empresas sequer garantiam as condições mínimas de saúde (como álcool em gel e distanciamento). Tanto os transportes como os locais de trabalho tornaram-se fontes de contágio que se espalharam e agravaram a pandemia. Em vários países, como Itália, Brasil e Argentina, houve lutas e reivindicações contra essas condições de trabalho.
Ao mesmo tempo, os governos aproveitaram essas medidas para estabelecer controles policiais e repressivos contra os trabalhadores e a população, enquanto a burguesia e setores da pequena burguesia continuaram com suas “festas” e reuniões (agora “clandestinas”, mas toleradas). Ao mesmo tempo, os governos, juntamente com as empresas, aproveitaram-se da situação e da fragilidade da classe trabalhadora para baixar os salários e atacar as condições de trabalho, tendo as burocracias sindicais como cúmplices desses ataques.
A crise econômica global e a “nova normalidade”
As medidas que restringiram a circulação de pessoas (em outros casos, como nos EUA, o autocuidado da população) acentuaram a tendência recessiva que a economia mundial já trazia desde 2019, e causaram uma queda impressionante de 10% no PIB mundial (a maior desde a crise de 1929), no terceiro trimestre de 2020[2].
Preocupados com a queda de seus lucros, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais iniciaram uma política criminosa que chamaram de “novo normal”: uma reabertura gradual, mas acelerada, de todas as atividades econômicas em que os trabalhadores e as massas tiveram que aceitar viver em meio à pandemia [3].
Difundiram o “novo normal” sem terem derrotado a pandemia. Pelo contrário, fizeram isso num momento em que se iniciava uma nova onda, mais forte que a primeira, e que esta política criminosa levou ao extremo. Mais uma vez, o capitalismo mostrou que seus lucros eram mais importantes do que a vida, a saúde e o sofrimento dos trabalhadores e das massas.
Durante toda a pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais realizaram duros ataques ao nível de vida das massas (redução de salários, deterioração das condições de trabalho, aumento do desemprego, etc.). A expressão mais aguda dessa deterioração tem sido um aumento acentuado da pobreza em todo o mundo e também da “pobreza extrema” (miséria) e da “insegurança alimentar” (fome): segundo um estudo do Banco Mundial realizado em outubro de 2020, que o ano terminaria com um saldo de 150 milhões de pessoas no mundo que se enquadrariam nessa categoria e se somariam às que já estavam nela [4]. Esses números se agravaram até o final da pandemia.
A situação da classe trabalhadora e das massas era insuportável, submetida, por um lado, ao sofrimento da própria pandemia e à incapacidade do capitalismo em derrotá-la e, por outro, aos duríssimos ataques econômicos e sociais. Neste quadro, a LIT-QI elaborou e propôs um Programa de Emergência com as medidas que seriam necessárias para acabar com ambos os flagelos. Um programa que, além de medidas concretas (como a reconstrução dos sistemas públicos de saúde gratuitos), propunha uma luta global contra o capitalismo imperialista [5]. Reivindicamos esse Programa de Emergência como uma resposta revolucionária e de classe à situação em que se vivia no mundo.
A “Corrida pelas Vacinas”
À medida que a política criminosa do “novo normal” agravava a situação com uma nova e mais forte onda da pandemia, começou a se desenvolver a “corrida pelas vacinas” entre algumas grandes corporações farmacêuticas internacionais (donas do negócio das vacinas em todo o mundo) para “chegar primeiro “para produzir uma vacina eficaz contra a covid-19[6].
Para entender o motivo dessa corrida, é preciso levar em consideração diversos fatores. Em primeiro lugar, como já apontamos, a transformação da saúde pública em um negócio para grandes empresas privadas (incluindo a fabricação de vacinas). Em segundo lugar, como também vimos, durante quase duas décadas consideraram que não era lucrativo iniciar o desenvolvimento de uma vacina contra um vírus covid e agora tinham de acelerar e compactar os tempos para o fazer o mais rápido possível. Em terceiro lugar, quem chegasse “primeiro” a produzir uma vacina eficaz colheria enormes lucros do gigantesco mercado em que a venderia. Por fim, diante do agravamento da pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais precisavam mostrar aos trabalhadores e às massas que “agora estão” preparando uma luta séria contra a pandemia, para evitar que se rebelassem contra o “novo normal”. Mas o fizeram à maneira capitalista: sem um plano cooperativo internacional, mas respeitando a propriedade privada e seus lucros.
Os lucros das corporações privadas são garantidos por meio do “direito de patente” (royalty) contido em seu preço de venda e que também deve ser pago por todos que o fabricam. Isso impediu que países como Argentina, Brasil, Índia e África do Sul (com capacidade de fabricar suas próprias vacinas) produzissem vacinas em escala massiva sem pagar esses royalties às corporações.
O caso da Índia foi terrível: é o principal fabricante de vacinas do mundo (principalmente nas fábricas da AstraZeneca), mas não conseguiu arcar com o preço das vacinas necessárias para sua grande população, enquanto a pandemia crescia sem limites . Seu governo, o da África do Sul e outros países pediram uma “suspensão temporária” dos direitos de patente para suprimentos médicos, mas tanto as empresas quanto a OMC (Organização Mundial do Comércio) se recusaram a concedê-la[7].
Diante dessa recusa, os governos burgueses desses países foram covardes e não adotaram a medida de quebrar unilateralmente esse direito. Nesse momento, a LIT-QI incorporou ao seu Programa de Emergência a consigna: “Pela ruptura dos direitos de patente das empresas farmacêuticas privadas”, e convocou os trabalhadores e as massas a se mobilizarem para exigir que seus governos o fizessem.
Uma vez que as vacinas se tornaram disponíveis, a profunda desigualdade que existe entre as nações no capitalismo imperialista tornou-se evidente. Um punhado de países ricos (como Estados Unidos e potências europeias) comprou 70% das vacinas existentes, enquanto a maioria não tinha possibilidade de comprá-las (ou só poderia fazê-lo de forma escalonada, como Brasil, Argentina e até a Espanha) [8].
Essa desigualdade na vacinação no mundo retornou como um bumerangue sobre os próprios países imperialistas, porque naqueles países com pouca ou nenhuma vacinação surgiram novas cepas do vírus, mais contagiosas e letais que a primeira. Foi o caso do Omicron (detectado pela primeira vez na África do Sul), que posteriormente entrou em países ricos (EUA e da Europa) e causou uma onda fortíssima, no final de 2021[9].
Nesse contexto, reivindicamos como totalmente correto, no âmbito da luta contra a pandemia e o capitalismo, do ponto de vista revolucionário e de classe, a palavra de ordem de vacinação massiva, gratuita e obrigatória em todo o mundo. Defendemos essa proposta contra os diversos setores que promoviam o “movimento antivacina”. Uma parte desses setores partiu de posições bastante reacionárias (os “negacionistas”) e anticientíficas. Mas esta posição também foi assumida por algumas organizações de esquerda (para nós, com uma compreensão globalmente errada da pandemia) [10].
A pós pandemia
A partir da declaração da OMS, entramos “oficialmente” no pós-pandemia. No entanto, o impacto da covid-19 deixou profundas consequências em vários âmbitos da vida dos trabalhadores e das massas.
Comecemos pelo impacto económico-social. Como vimos, ao longo de toda a pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais realizaram duros ataques ao nível de vida das massas (redução de salários, deterioração das condições de trabalho, aumento do desemprego, etc.).
Com a política da “nova normalidade”, desde o terceiro trimestre de 2020, iniciou-se o que chamamos de “recuperação anêmica” da economia mundial [11]. Recuperação que está chegando ao seu final, com fortes tendências recessivas e uma crise bancária em curso (com epicentro nos EUA e impacto na Europa)[12].
Ao longo da recuperação, ficou evidente que o capitalismo não estava disposto a reembolsar o que foi perdido pelos trabalhadores e pelas massas durante a pandemia, mas buscou consolidar o terreno conquistado. Situação que, já em 2021, originou uma onda de greves, parciais mas importantes, nos EUA.[13] e, em 2022, lutas em várias partes do mundo [14].
Não só não devolveram o que foi roubado, como os ataques continuaram e continuam sendo respondidos por lutas operárias tão importantes quanto as ocorridas na Grã-Bretanha e na França, que são analisadas na edição especial da revista Correio Internacional que pode ser baixado da página da LIT-QI [15]. Outro exemplo foi a grande mobilização da juventude trabalhadora na Coreia do Sul, que obrigou o governo a recuar em seu projeto de aumentar a jornada de trabalho [16].
Se analisarmos o impacto da covid-19 como tal, ela também deixou duras consequências. Em primeiro lugar, naqueles que foram infectados, especialmente aqueles que sobreviveram, mas sofreram as formas mais agudas da doença e que, em muitos casos, ficaram com os pulmões gravemente afetados [17].
Em segundo lugar, devemos ver o que significa “gripalização”; ou seja, a transformação da pandemia de covid-19 numa doença endêmica (permanente) com impacto semelhante ao da gripe comum. Embora não haja uma estimativa global de quantas pessoas no mundo contraem a gripe a cada ano, estudos recentes estimam que 650.000 morrem de doenças respiratórias relacionadas à gripe, e esse número vem aumentando nos últimos anos [18].
Em outras palavras, por responsabilidade do capitalismo imperialista, uma nova endemia se somou às muitas ameaças e problemas de saúde sofridos pelos trabalhadores e pelas massas. É uma ameaça real: espera-se uma onda de covid-19 “tipo gripe” na China que pode afetar 65 milhões de pessoas nas próximas semanas [19].
Por fim, os especialistas e a própria OMS não cansam de alertar que, dada a destruição da natureza, a dinâmica da produção econômica capitalista e os altíssimos níveis de urbanização, novas pandemias são inevitáveis no futuro [20].
Perante esta perspectiva, Salvador Macio (Doutor em Medicina e professor de Estudos em Ciências da Saúde na Universitat Oberta de Catalunya) expressou que “é necessário um plano de defesa coordenado, coerente e claro para a próxima”, mas duvida que vá materializar “porque isso requer coordenação em nível global, e até agora não mostramos que somos capazes de fazê-lo“[21].
A desconfiança desse especialista tem fundamentos muito sérios: devido à sua voracidade pelo lucro, o capitalismo está destruindo a natureza e a saúde pública, e aumentando a superlotação de grande parte da população mundial. Assim, prepara as condições para uma futura pandemia, que mais cedo ou mais tarde irá ocorrer, e que nós, os nossos filhos ou os nossos netos iremos sofrer. Diante dessa ameaça, age da mesma forma que fez há quase 20 anos: faz de conta que não vê. Ao mesmo tempo, continua atacando as condições de vida dos trabalhadores e das massas.
Nós, trabalhadores, não podemos ficar passivos diante dessa dura realidade e desse futuro sombrio. Precisamos lutar muito contra cada um desses ataques. No marco dessas lutas, desde a LIT-QI (como fizemos durante a pandemia do covid-19) explicaremos pacientemente que para acabar definitivamente com esses flagelos é necessário realizar uma revolução que derrote o capitalismo imperialista que os gera para o lucro imenso de poucos, e instale em seu lugar uma sociedade em bases muito mais justas e solidárias para toda a Humanidade: uma sociedade socialista internacional.
[1] A OMS declara o fim da emergência de saúde global devido à covid-19 – BBC News Mundo
[2] Veja Para onde vai a economia mundial? – https://litci.org/pt/2020/12/01/62598-2/
[3] A verdadeira cara do “novo normal” – https://litci.org/pt/2020/12/14/62684-2/
[4] https://news.un.org/pt/story/2020/10/1728962
[5] Aqui pode ver o programa especial da LIT-CI – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[6] Ver A corrida pela vacina contra a Covid-19 [II] – https://litci.org/pt/2020/08/28/a-corrida-pela-vacina-contra-a-covid-19-ii/
[7] Mais de 60 países em desenvolvimento solicitaram a suspensão por três anos de patentes de vacinas contra o coronavírus – Infobae
[8] Vacinação contra a Covid-19: entre o caos capitalista e os privilégios de classe – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[9] Europa no epicentro da pandemia – https://litci.org/pt/2021/12/02/a-europa-no-epicentro-da-pandemia/
[10] Antivacina: entre as fantasias reacionárias e a desconfiança no capitalismo – https://litci.org/pt/2022/02/13/antivacinas-entre-as-fantasias-reacionarias-e-a-desconfianca-no-capitalismo/
[11] Economia global: recuperação anêmica com muitos problemas –
[12] As raízes profundas da crise bancária internacional – https://litci.org/pt/2023/04/12/as-raizes-profundas-da-crise-bancaria-internacional/
[13] Ver Grande onda de greves nos Estados Unidos – https://litci.org/pt/2021/11/12/grande-onda-de-greves-nos-estados-unidos/
[14] Greves e revoltas eclodem em todo o mundo – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[15] Correo Internacional Europa – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[16] Coreia do Sul: grande triunfo da juventude trabalhadora – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[17] Três anos depois da Covid: assim são os pulmões de quem sofreu infecções graves (clarin.com)
[18] A cada ano, até 650.000 pessoas morrem de doenças respiratórias relacionadas à gripe sazonal (who.int)
[19] China prevê nova onda de Covid com 65 milhões de casos por semana | Saúde (elmundo.es)
[20] A OMS adverte sobre futuras pandemias. O que estamos enfrentando? (huffingtonpost.es)
[21] Idem.
Não podemos esquecer a pandemia de Covid-19
No mês passado, a OMS (Organização Mundial da Saúde) declarou “o fim da emergência de saúde global devido à covid-19”, após mais de três anos de seu início [1]. Essa pandemia causou 600 milhões de infecções e um número oficial de 7 milhões de mortes (cálculos mais realistas estimam mais de 20 milhões, número superior ao das vítimas da Primeira Guerra Mundial). No quadro do capitalismo imperialista, a pandemia assumiu um “perfil de classe” e atingiu muito mais duramente a classe trabalhadora e os setores populares, também em suas fortíssimas consequências econômicas e sociais. O que causou essa pandemia? Por que atingiu essa gravidade? Qual e a situação atual?
Por: Alexandre Iturbe
O capitalismo imperialista e as burguesias nacionais difundem na mídia a ideia de que a pandemia “já passou” e querem que o sofrimento vivido seja esquecido. Assim como pretendem que se aceite a deterioração das condições de vida dos trabalhadores e das massas, provocada ou acentuada pela pandemia. Mas não devemos esquecê-la: pelo contrário.
Em primeiro lugar, porque embora as zoonoses (doenças de origem animal que se transmitem aos humanos) sejam um “fato natural”, tem sido o capitalismo imperialista que tem criado condições cada vez mais favoráveis para que uma zoonose se transforme em uma pandemia da magnitude que a covid-19 chegou.
Em vários artigos, analisamos que a destruição da natureza reduziu o habitat natural de inúmeras espécies, muitas até se extinguindo. Por isso, vírus que geram doenças voltadas para essas espécies “procuram” outras onde possam se hospedar e assim manter seu ciclo natural de sobrevivência.
Ao mesmo tempo, a produção capitalista concentrou uma grande biomassa de animais em sistema intensivo de produção para consumo humano, em condições de grande superlotação, de forma que qualquer entrada de vírus se espalha rapidamente entre eles. Essas concentrações de animais estão muito adjuntas e em contato permanente com as grandes cidades próximas. Essas são as condições para a expansão de uma zoonose. Não é por acaso que, antes da covid, nas últimas décadas vimos surtos de “doença da vaca louca”, gripe suína e gripe aviária. Se somarmos o intenso trânsito de mercadorias e pessoas dentro de cada país, e além-fronteiras, as condições tornam-se mais propícias.
O negócio da saúde pública
Esse contexto favorável para o surgimento e expansão do contágio de covid foi agravado porque o capitalismo o enfrentou após décadas de ataque e deterioração dos sistemas públicos de saúde em todo o mundo.
A saúde pública transformou-se em um imenso e lucrativo negócio para grandes empresas privadas, donas de modernos centros de atendimento, produção de remédios e vacinas e de fabricação de equipamentos necessários para os casos mais complexos. Além desse grande negócio, os centros estatais gratuitos carecem de recursos mínimos para cuidar da saúde da população que não pode pagar por um atendimento melhor.
Como exemplo deste “negócio da saúde” ao serviço dos lucros destas empresas privadas, verificamos que uma vacina contra a covid poderia ter sido desenvolvida uma década antes das que foram finalmente utilizadas na recente pandemia. A partir de 2002, estourou um surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave) causado por um vírus semelhante à covid, semelhante ao de 2020, que afetou populações no sul da China e outros países da região.
Apesar das advertências de especialistas sobre o risco de pandemias virais, as empresas farmacêuticas privadas não iniciaram o desenvolvimento de uma vacina porque o lucro estimado que teriam não o justificava. Uma nova e séria responsabilidade do capitalismo imperialista na extensão e impacto da última pandemia.
Uma luta com as mãos amarradas
A dinâmica acelerada da pandemia foi ainda pior em países cujos governos tinham uma política criminal negacionista (“é só uma gripezinha”) como o de Donald Trump nos EUA e o de Jair Bolsonaro no Brasil. Desta forma, estes países encabeçaram a triste lista mundial com maior número de infeções e vítimas mortais.
Os governos que afirmaram que o combate à pandemia era sua prioridade o fizeram de mãos amarradas: com sistemas de saúde pública deteriorados e pouco financiamento estatal. Recorreram então a velhas medidas essenciais, mas que por si só eram insuficientes para combater e derrotar a pandemia, como a obrigatoriedade do uso de máscaras, o distanciamento e o isolamento social.
Diante dessas medidas parciais e insuficientes, e sem um plano sério para o funcionamento econômico da sociedade, os trabalhadores e setores populares se viram divididos. Um setor, o dos trabalhadores precarizados, ambulantes e muitos pequenos trabalhadores por conta própria, enfrentava uma situação de sobrevivência quase insuportável.
Outro setor foi enquadrado em “atividades essenciais” (grande parte da produção industrial, saúde e transporte etc.) e, assim, obrigados a ir em transportes lotados para seus locais de trabalho onde as empresas sequer garantiam as condições mínimas de saúde (como álcool em gel e distanciamento). Tanto os transportes como os locais de trabalho tornaram-se fontes de contágio que se espalharam e agravaram a pandemia. Em vários países, como Itália, Brasil e Argentina, houve lutas e reivindicações contra essas condições de trabalho.
Ao mesmo tempo, os governos aproveitaram essas medidas para estabelecer controles policiais e repressivos contra os trabalhadores e a população, enquanto a burguesia e setores da pequena burguesia continuaram com suas “festas” e reuniões (agora “clandestinas”, mas toleradas). Ao mesmo tempo, os governos, juntamente com as empresas, aproveitaram-se da situação e da fragilidade da classe trabalhadora para baixar os salários e atacar as condições de trabalho, tendo as burocracias sindicais como cúmplices desses ataques.
A crise econômica global e a “nova normalidade”
As medidas que restringiram a circulação de pessoas (em outros casos, como nos EUA, o autocuidado da população) acentuaram a tendência recessiva que a economia mundial já trazia desde 2019, e causaram uma queda impressionante de 10% no PIB mundial (a maior desde a crise de 1929), no terceiro trimestre de 2020[2].
Preocupados com a queda de seus lucros, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais iniciaram uma política criminosa que chamaram de “novo normal”: uma reabertura gradual, mas acelerada, de todas as atividades econômicas em que os trabalhadores e as massas tiveram que aceitar viver em meio à pandemia [3].
Difundiram o “novo normal” sem terem derrotado a pandemia. Pelo contrário, fizeram isso num momento em que se iniciava uma nova onda, mais forte que a primeira, e que esta política criminosa levou ao extremo. Mais uma vez, o capitalismo mostrou que seus lucros eram mais importantes do que a vida, a saúde e o sofrimento dos trabalhadores e das massas.
Durante toda a pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais realizaram duros ataques ao nível de vida das massas (redução de salários, deterioração das condições de trabalho, aumento do desemprego, etc.). A expressão mais aguda dessa deterioração tem sido um aumento acentuado da pobreza em todo o mundo e também da “pobreza extrema” (miséria) e da “insegurança alimentar” (fome): segundo um estudo do Banco Mundial realizado em outubro de 2020, que o ano terminaria com um saldo de 150 milhões de pessoas no mundo que se enquadrariam nessa categoria e se somariam às que já estavam nela [4]. Esses números se agravaram até o final da pandemia.
A situação da classe trabalhadora e das massas era insuportável, submetida, por um lado, ao sofrimento da própria pandemia e à incapacidade do capitalismo em derrotá-la e, por outro, aos duríssimos ataques econômicos e sociais. Neste quadro, a LIT-QI elaborou e propôs um Programa de Emergência com as medidas que seriam necessárias para acabar com ambos os flagelos. Um programa que, além de medidas concretas (como a reconstrução dos sistemas públicos de saúde gratuitos), propunha uma luta global contra o capitalismo imperialista [5]. Reivindicamos esse Programa de Emergência como uma resposta revolucionária e de classe à situação em que se vivia no mundo.
A “Corrida pelas Vacinas”
À medida que a política criminosa do “novo normal” agravava a situação com uma nova e mais forte onda da pandemia, começou a se desenvolver a “corrida pelas vacinas” entre algumas grandes corporações farmacêuticas internacionais (donas do negócio das vacinas em todo o mundo) para “chegar primeiro “para produzir uma vacina eficaz contra a covid-19[6].
Para entender o motivo dessa corrida, é preciso levar em consideração diversos fatores. Em primeiro lugar, como já apontamos, a transformação da saúde pública em um negócio para grandes empresas privadas (incluindo a fabricação de vacinas). Em segundo lugar, como também vimos, durante quase duas décadas consideraram que não era lucrativo iniciar o desenvolvimento de uma vacina contra um vírus covid e agora tinham de acelerar e compactar os tempos para o fazer o mais rápido possível. Em terceiro lugar, quem chegasse “primeiro” a produzir uma vacina eficaz colheria enormes lucros do gigantesco mercado em que a venderia. Por fim, diante do agravamento da pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais precisavam mostrar aos trabalhadores e às massas que “agora estão” preparando uma luta séria contra a pandemia, para evitar que se rebelassem contra o “novo normal”. Mas o fizeram à maneira capitalista: sem um plano cooperativo internacional, mas respeitando a propriedade privada e seus lucros.
Os lucros das corporações privadas são garantidos por meio do “direito de patente” (royalty) contido em seu preço de venda e que também deve ser pago por todos que o fabricam. Isso impediu que países como Argentina, Brasil, Índia e África do Sul (com capacidade de fabricar suas próprias vacinas) produzissem vacinas em escala massiva sem pagar esses royalties às corporações.
O caso da Índia foi terrível: é o principal fabricante de vacinas do mundo (principalmente nas fábricas da AstraZeneca), mas não conseguiu arcar com o preço das vacinas necessárias para sua grande população, enquanto a pandemia crescia sem limites . Seu governo, o da África do Sul e outros países pediram uma “suspensão temporária” dos direitos de patente para suprimentos médicos, mas tanto as empresas quanto a OMC (Organização Mundial do Comércio) se recusaram a concedê-la[7].
Diante dessa recusa, os governos burgueses desses países foram covardes e não adotaram a medida de quebrar unilateralmente esse direito. Nesse momento, a LIT-QI incorporou ao seu Programa de Emergência a consigna: “Pela ruptura dos direitos de patente das empresas farmacêuticas privadas”, e convocou os trabalhadores e as massas a se mobilizarem para exigir que seus governos o fizessem.
Uma vez que as vacinas se tornaram disponíveis, a profunda desigualdade que existe entre as nações no capitalismo imperialista tornou-se evidente. Um punhado de países ricos (como Estados Unidos e potências europeias) comprou 70% das vacinas existentes, enquanto a maioria não tinha possibilidade de comprá-las (ou só poderia fazê-lo de forma escalonada, como Brasil, Argentina e até a Espanha) [8].
Essa desigualdade na vacinação no mundo retornou como um bumerangue sobre os próprios países imperialistas, porque naqueles países com pouca ou nenhuma vacinação surgiram novas cepas do vírus, mais contagiosas e letais que a primeira. Foi o caso do Omicron (detectado pela primeira vez na África do Sul), que posteriormente entrou em países ricos (EUA e da Europa) e causou uma onda fortíssima, no final de 2021[9].
Nesse contexto, reivindicamos como totalmente correto, no âmbito da luta contra a pandemia e o capitalismo, do ponto de vista revolucionário e de classe, a palavra de ordem de vacinação massiva, gratuita e obrigatória em todo o mundo. Defendemos essa proposta contra os diversos setores que promoviam o “movimento antivacina”. Uma parte desses setores partiu de posições bastante reacionárias (os “negacionistas”) e anticientíficas. Mas esta posição também foi assumida por algumas organizações de esquerda (para nós, com uma compreensão globalmente errada da pandemia) [10].
A pós pandemia
A partir da declaração da OMS, entramos “oficialmente” no pós-pandemia. No entanto, o impacto da covid-19 deixou profundas consequências em vários âmbitos da vida dos trabalhadores e das massas.
Comecemos pelo impacto económico-social. Como vimos, ao longo de toda a pandemia, o capitalismo imperialista e as burguesias nacionais realizaram duros ataques ao nível de vida das massas (redução de salários, deterioração das condições de trabalho, aumento do desemprego, etc.).
Com a política da “nova normalidade”, desde o terceiro trimestre de 2020, iniciou-se o que chamamos de “recuperação anêmica” da economia mundial [11]. Recuperação que está chegando ao seu final, com fortes tendências recessivas e uma crise bancária em curso (com epicentro nos EUA e impacto na Europa)[12].
Ao longo da recuperação, ficou evidente que o capitalismo não estava disposto a reembolsar o que foi perdido pelos trabalhadores e pelas massas durante a pandemia, mas buscou consolidar o terreno conquistado. Situação que, já em 2021, originou uma onda de greves, parciais mas importantes, nos EUA.[13] e, em 2022, lutas em várias partes do mundo [14].
Não só não devolveram o que foi roubado, como os ataques continuaram e continuam sendo respondidos por lutas operárias tão importantes quanto as ocorridas na Grã-Bretanha e na França, que são analisadas na edição especial da revista Correio Internacional que pode ser baixado da página da LIT-QI [15]. Outro exemplo foi a grande mobilização da juventude trabalhadora na Coreia do Sul, que obrigou o governo a recuar em seu projeto de aumentar a jornada de trabalho [16].
Se analisarmos o impacto da covid-19 como tal, ela também deixou duras consequências. Em primeiro lugar, naqueles que foram infectados, especialmente aqueles que sobreviveram, mas sofreram as formas mais agudas da doença e que, em muitos casos, ficaram com os pulmões gravemente afetados [17].
Em segundo lugar, devemos ver o que significa “gripalização”; ou seja, a transformação da pandemia de covid-19 numa doença endêmica (permanente) com impacto semelhante ao da gripe comum. Embora não haja uma estimativa global de quantas pessoas no mundo contraem a gripe a cada ano, estudos recentes estimam que 650.000 morrem de doenças respiratórias relacionadas à gripe, e esse número vem aumentando nos últimos anos [18].
Em outras palavras, por responsabilidade do capitalismo imperialista, uma nova endemia se somou às muitas ameaças e problemas de saúde sofridos pelos trabalhadores e pelas massas. É uma ameaça real: espera-se uma onda de covid-19 “tipo gripe” na China que pode afetar 65 milhões de pessoas nas próximas semanas [19].
Por fim, os especialistas e a própria OMS não cansam de alertar que, dada a destruição da natureza, a dinâmica da produção econômica capitalista e os altíssimos níveis de urbanização, novas pandemias são inevitáveis no futuro [20].
Perante esta perspectiva, Salvador Macio (Doutor em Medicina e professor de Estudos em Ciências da Saúde na Universitat Oberta de Catalunya) expressou que “é necessário um plano de defesa coordenado, coerente e claro para a próxima”, mas duvida que vá materializar “porque isso requer coordenação em nível global, e até agora não mostramos que somos capazes de fazê-lo“[21].
A desconfiança desse especialista tem fundamentos muito sérios: devido à sua voracidade pelo lucro, o capitalismo está destruindo a natureza e a saúde pública, e aumentando a superlotação de grande parte da população mundial. Assim, prepara as condições para uma futura pandemia, que mais cedo ou mais tarde irá ocorrer, e que nós, os nossos filhos ou os nossos netos iremos sofrer. Diante dessa ameaça, age da mesma forma que fez há quase 20 anos: faz de conta que não vê. Ao mesmo tempo, continua atacando as condições de vida dos trabalhadores e das massas.
Nós, trabalhadores, não podemos ficar passivos diante dessa dura realidade e desse futuro sombrio. Precisamos lutar muito contra cada um desses ataques. No marco dessas lutas, desde a LIT-QI (como fizemos durante a pandemia do covid-19) explicaremos pacientemente que para acabar definitivamente com esses flagelos é necessário realizar uma revolução que derrote o capitalismo imperialista que os gera para o lucro imenso de poucos, e instale em seu lugar uma sociedade em bases muito mais justas e solidárias para toda a Humanidade: uma sociedade socialista internacional.
[1] A OMS declara o fim da emergência de saúde global devido à covid-19 – BBC News Mundo
[2] Veja Para onde vai a economia mundial? – https://litci.org/pt/2020/12/01/62598-2/
[3] A verdadeira cara do “novo normal” – https://litci.org/pt/2020/12/14/62684-2/
[4] https://news.un.org/pt/story/2020/10/1728962
[5] Aqui pode ver o programa especial da LIT-CI – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[6] Ver A corrida pela vacina contra a Covid-19 [II] – https://litci.org/pt/2020/08/28/a-corrida-pela-vacina-contra-a-covid-19-ii/
[7] Mais de 60 países em desenvolvimento solicitaram a suspensão por três anos de patentes de vacinas contra o coronavírus – Infobae
[8] Vacinação contra a Covid-19: entre o caos capitalista e os privilégios de classe – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[9] Europa no epicentro da pandemia – https://litci.org/pt/2021/12/02/a-europa-no-epicentro-da-pandemia/
[10] Antivacina: entre as fantasias reacionárias e a desconfiança no capitalismo – https://litci.org/pt/2022/02/13/antivacinas-entre-as-fantasias-reacionarias-e-a-desconfianca-no-capitalismo/
[11] Economia global: recuperação anêmica com muitos problemas –
[12] As raízes profundas da crise bancária internacional – https://litci.org/pt/2023/04/12/as-raizes-profundas-da-crise-bancaria-internacional/
[13] Ver Grande onda de greves nos Estados Unidos – https://litci.org/pt/2021/11/12/grande-onda-de-greves-nos-estados-unidos/
[14] Greves e revoltas eclodem em todo o mundo – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[15] Correo Internacional Europa – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[16] Coreia do Sul: grande triunfo da juventude trabalhadora – Liga Internacional dos Trabalhadores (litci.org)
[17] Três anos depois da Covid: assim são os pulmões de quem sofreu infecções graves (clarin.com)
[18] A cada ano, até 650.000 pessoas morrem de doenças respiratórias relacionadas à gripe sazonal (who.int)
[19] China prevê nova onda de Covid com 65 milhões de casos por semana | Saúde (elmundo.es)
[20] A OMS adverte sobre futuras pandemias. O que estamos enfrentando? (huffingtonpost.es)
[21] Idem.
Tradução: Nea vieira