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terça-feira, junho 25, 2024

Stalinismo em Angola: O massacre do 27 de maio de 1977 – Parte I

Apresentação:

Um grupo de trotsquistas de Angola apresenta neste texto um estudo inicial sobre os stalinismo naquele país ao final do período colonial, nos primeiros anos da independência e suas consequências atuais. O 27 de Maio é o ponto de partida repressivo após a independência. Prisões, tortura, assassinatos, campos de concentração e até desaparecimentos de crianças cujas mães deram a luz no cativeiro.

Por: J. G. Hata

Um país que se transformou em uma ditadura usando inicialmente simbolos tão caros ao movimento marxista  e hoje sem pudores mantem diversos presos politicos, exilados ou simplesmente silenciados em seus mais elementares direitos. Confira o texto e entenda a politica e os métodos usados pelo stalinismo em sua versão africana.

Introdução

Acusado fui nos tribunais conservadores/Na corte dos juízes reformistas/Fui condenado/Sem acusação formada nem confirmada/Sem julgamento nem sequer rudimentar/Sem direito à defesa elementar/Fui para a cela do tempo e dos homens/E ao público trabalhador não me deixaram apresentar documento que eu tenho a meu favor…[1]   Nito Alves

Em Cruzei-me com a História, José Samuel Chiwale, um dos nacionalistas da luta de libertação nacional de Angola, afirma que descrever a história de Angola é como pedir a vários cegos que narrem as características de um elefante. Um pegará a cauda e descreverá o elefante de acordo a cauda que tocou, outro pegará na perna e vai associar o elefante com a perna, um outro que teve contato com a tromba descreverá o elefante como tromba. Na verdade o elefante que nesta narrativa personifica o país e o somatório da descrição que cada um faz a partir do espaço geográfico que manteve contato com este país. É esta a complexidade da história política angolana, sobretudo quando é sequestrada por atores políticos, politizados e partidarizados[2].

Quanto ao 27 de Maio de 1977 a complexidade é bem maior atendendo ao silenciamento das poucas fontes e do trauma de sobreviventes que assistiram na primeira pessoa ao assassinato de mais de 80.000 cidadãos, maioritariamente jovens, que numa dada fase das suas caminhadas juraram proteção mútua enquanto companheiros de trincheira. Ainda assim, a história é teimosa, e aos poucos algumas fontes documentais, bibliográficas e depoimentos vão emergindo da longa noite sonolenta de quase 30 anos[3].

Portanto, observando algumas fontes bibliográficas, documentais e depoimentos de sobreviventes, vamos analisar as razões profundas que estiveram na base do maior assassinato pós colonial na África Austral, e buscar compreender as consequências dela nos dias atuais.

O 27 de Maio de 1977 

O 27 de Maio de 1977 é um acontecimento político que se dá no interior do Movimento Popular de Libertação de Angola-MPLA, que apesar de ter esta data como o epicentro das convulsões, protestos de massas para alguns e tentativa de golpe de estado para outros, as suas causas encontramo-las na própria história de formação do MPLA, na sua construção ideológica e nos perfis de seus líderes, herdeiros diretos de uma cultura classista oriunda da Lei do Indigenato dos anos 20. No final da repressão o saldo foi de mais de 80.000 cidadãos mortos e desaparecidos.

As raízes do 27 de Maio

É impossível percebermos as causas do 27 de Maio sem conhecermos a história do MPLA, apesar da sua reconhecida nebulosidade, que desde a fundação é marcado por vários conflitos internos, muitos dos quais lograram-se em violentos confrontos armados. O MPLA funda-se a 10 de Dezembro de 1956, fruto da fusão de partidos e movimentos, como o Partido Comunista Angolano-PCA, o Movimento para Independência de Angola-MINA, o Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola-PLUAA, Comissão Federal do Partido Comunista Português, Comissão de Luta contra o Imperialismo Colonial Português, Gente da Angola Negra e da Mensagem

Esta diversidade vai criar não só a uma visão inclusiva mas também crises internas em função das diferentes correntes ideológicas no seio do MPLA entre maoistas, Titistas, pro soviéticos e nacionalistas. Como tal apenas em Outubro de 1976, durante a III Reunião Plenária do Comitê Central do partido vai se adotar o Marxismo-leninismo como orientação política e económica. Voltemos então as crises internas:

A primeira crise decorre em 1962, após a ascensão de Agostinho Neto à liderança do MPLA, opunha-lhe Viriato da Cruz, defensor de um recuo estratégico da elite crioula, contando que a maioria era negra, Viriato estava disposto a sacrificar a sua posição na hierarquia sendo que ele também fazia parte desta elite, ao que Agostinho Neto não terá digerido muito bem. Terá contribuído para esta posição o fato de Agostinho Neto não querer ver muito distante dos círculos do poder o antigo colega e padrinho de casamento Lúcio Lara, que passa a controlar a formação de quadros, e Iko Carreira, responsável pela segurança. Para Neto era preferível ter por perto um grupo que não fosse de negros, desta forma não teria o seu cargo ameaçado e permaneceria o centro das atenções junto das massas negras. Outro fator que terá contribuído para a posição de Neto é a aura messiânica que Neto trazia depois de algumas prisões, nomeadamente 1955 e 1961, a primeira delas terá originado uma grande comoção internacional, contando com célebres figuras mundiais em campanha para exigir a sua libertação onde destacavam Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, François Mauriac e Nicolás Guillén. Por fim, Viriato da Cruz abandona o partido.

Em 1968 instala-se outra crise, desta vez liderada pelos Comandantes Daniel Chipenda e Barros Freitas “Jiboia“, ao que ficou conhecido como Revolta do Leste. Esta crise vai durar até bem próximo da conquista da independência de Angola, as reivindicações centravam-se na exclusão dos combatentes do leste em detrimento do norte e dos afro-europeus, e o autoritarismo de Neto. Sob mediação da Organização de Unidade Africana e da República da Zâmbia surgiram algumas tentativas de reconciliação das partes, contudo, as divergências mantiveram-se, dando origem a iniciativa de um Movimento de Reajustamento do partido, o grupo passou a ser denominado por Revolta Ativa, que trazem para a discussão a democracia interna e a gestão do processo da luta de libertação nacional, e outra vez Neto vê os dedos apontados contra si. São rostos visíveis desta frente, Mário Pinto de Andrade, Fernando Paiva, Gentil Viana, Joaquim Pinto de Andrade e Manuel Videira. A posição oficial do partido apenas vai ser conhecida em 1974 na conferência de Lusaka, capital da República da Zâmbia.

Tanto a Revolta do Leste quanto a Revolta Ativa travam acesos debates com a ala de Agostinho Neto, este que como num gesto de mágica sai vitorioso por contar com um trunfo de ultima hora, a presença na conferência dos guerrilheiros da I Região Política Militar do MPLA, a única região onde o MPLA mantinha uma guerrilha efetiva, sendo estas as vozes legítimas para falarem da luta. É aqui onde as atenções voltam-se para o Comandante Bernardo Alves Baptista “Nito Alves“, que em defesa de Neto acusa os outros contendores de oportunistas. No fim, a conclusão do Congresso foi o que era esperado com a vitória de Neto, expulsão dos integrantes da Revolta dos Leste e da Revolta Ativa[4]. Este Congresso coloca no palanque das lideranças do MPLA Nito Alves e comandantes da I Região[5], a exemplo de João Jacob Caetano “Monstro Imortal“, José César Augusto “Kiluange“, Benigno Vieira Lopes “Ingo“, e Sebastião Francisco “Certeza“.

Até aqui temos o encerramento do primeiro período de crises internas no MPLA, que só não atingem dimensões cataclisticas porque Neto tinha a necessidade de fazer a gestão interna para as outras frentes pelos quais o partido encontrava-se envolvido, os sucessivos choques com a Frente Nacional de Libertação de Angola-FNLA, as tropas coloniais portuguesas e posteriormente a União Nacional para Independência Total de Angola-UNITA, e mesmo no exterior face a hostilidade de alguns países fronteiriços com os quais a FNLA mantinha acentuada relação como foi o caso do antigo Zaire[6]. No entanto outro cenário estava a ser desenhado com a emergência da I Região, o seu controle das bases, os sinais claros do avizinhar da independência de Angola, os alinhamentos geo ideológicos, e o poder de influência que este grupo teria no próximo Congresso, ademais, ao longo dos debates de Lusaka a I Região havia deixado claro apesar de terem apoiado Neto, que a implantação do MPLA na sua região em nada tinha a ver com os dirigentes do partido maioritariamente no exterior, mas sim aos jovens guerrilheiros que não mediam esforço em nome da causa. 

A Independência e o Início das Divergências com a I Região

Na madrugada do dia 11 de Novembro de 1975 é proclamada a independência da República de Angola e 4 dias depois Nito Alves é nomeado ministro da Administração Interna.

As primeiras divergências manifestadas logo após a proclamação da independência surgem na formação do exército angolano, as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola-FAPLA, com a insatisfação do patenteamento dos militares e da nomeação de Iko Carreira a Ministro da Defesa, contrariando as expectativas que estavam à volta do lendário Comandante Monstro Imortal.

Outro episódio que acirrou as clivagens deu-se à quando da participação de Nito Alves e José Van Dunem ao XXV Congresso do Partido Comunista da União Soviética-PCUS, em Março de 1976, chegando a serem recebidos à título excecional com honras de Estado, gerando ciúmes e abrindo espaço para especulações de que uma conspiração contra Neto estava ser montada, e que Nito Alves preparava-se para substitui-lo, acusam-no também de fomentador de um debate racista contra lideres próximos a Neto e a sua esposa de origem portuguesa. Em Abril já falava-se de um golpe de Estado em forja por Nito Alves e seus companheiros, maioritariamente da I Região.

De Março a Outubro vai se registar um clima de agitação em todos bairros de Luanda e arredores, com a elevada onda de criminalidade, saques em lojas e sucessivo aumento do custo de vida, para além das trocas de acusações entre as partes que agora andavam em guerra aberta.

De 23 a 29 de Outubro de 1976 realiza-se a III Reunião Plenária do Comité Central do MPLA, que entre outras questões vai analisar o período conturbado econômico, político e social, a restruturação das FAPLA, a restruturação da Organização da Mulher Angolana-OMA, a vinculação da juventude diretamente ao partido e a extinção dos Ministérios da Informação e da Administração, este último dirigido por Nito Alves. Se a extinção deste Ministério era sinal claro de que havia necessidade de se reduzir o poder que Nito Alves detinha no seio da sociedade, não menos importante foi a constatação saída do Plenário do Comité Central que se mostrou inclinado à direção, como ficou constatado em nota:

O Pleno do Comité Central do MPLA constatou a ação perniciosa de sectores ligados à reação interna e externa, e grupos esquerdistas que tentam, alimentando correntes desagregadoras e utilizando o nome de dirigentes, provocar a confusão ideológica, perturbar a coesão das estruturas do Movimento e dividir militantes[7]

No fim, cria-se uma comissão de inquérito, encarregada de investigar a realidade ou não da preparação de um golpe de estado liderado por Nito Alves e José Van Dunem e termina exortando os militantes a combater o divisionismo, sectarismo e o oportunismo, prometendo sancionar duramente todos que atentassem contra a unidade no seio do MPLA[8]. Palavras muito familiares a Nito Alves só que desta vez sendo ele mesmo a vítima, diferentemente da conferência de Lusaka de 1974 quando o centro da acusação foram os integrantes da Revolta do Leste e a Revolta Ativa, e para agravar o quadro, desta vez o partido estava investido de poderes de Estado, que tornava a sua ação mais contundente. Meses depois, em sua defesa, como que acreditando talvez no seu poder de persuasão ou na inocência de Neto no conluio montado contra si, Nito Alves envia uma carta ao Comité Central do MPLA onde começa por protestar o isolamento a que foi submetido, com as seguintes palavras:

O comité Central não pode permitir que eu permaneça, diante dos meus acusadores, com as mãos abusiva e agressivamente amarradas sobre as minhas costas vergastadas e o meu corpo preso e atado a mil cordas e mil nós a um poste de suplício e martírio, onde a reação interna exibe e rema o seu chicote contra-revolucionário[9].  

Fez igualmente críticas à direção do partido pelo facto de durante os seus 20 anos de existência não ter realizado um único congresso onde discutisse as questões fundamentais de cada fase da luta anticolonialista e anti-imperialista. Não deixa de lado a Comissão de Inquérito, a quem chama de indisciplinada, pelo incumprimento do seu papel, nem tao pouco ser ouvido ao longo dos 2 meses que ela teria para o apuramento dos factos, o que no dizer de Nito Alves indiciava haver uma sentença prévia. E assim aconteceu.

No dia 21 de Maio de 1977 Nito Alves e José Van Dunem são expulsos do Comité Central do MPLA, sem qualquer conclusão dos trabalhos da Comissão de Inquérito, aumenta a onda de indignação nos órgãos de base do partido e em resposta há um movimento de massas que se estrutura para protestos, à fim de chamar atenção do Presidente Neto sobre a injustiça que cometera, claro, com a inclusão de militares, numa sociedade recém independente e com uma guerra civil em curso, como tal militarizada em todos setores, o que ao mesmo tempo facilita a infiltração da Direção de Informação e Segurança de Angola-DISA. Dias depois Agostinho Neto reúne no palácio presidencial com Nito Alves e José Van Dunem e tenta persuadi-los a fazerem uma autocritica pública, e estes rejeitam por entenderem nada ter feito. Neto termina a reunião dizendo que a partir daquele momento não responderia pela integridade física dos mesmos.


[1] FRAGOSO, José, PEDRO, Lucas, 2010, p.47

[2] FNLA, MPLA, UNITA

[3] O meu primeiro contacto com uma obra que aborda o massacre do 27 de Maio aconteceu em 2008, o livro Nuvem Negra: o drama do 27 de Maio, de Miguel Francisco Michel, ex militar sobrevivente e agora advogado. Curiosamente em 2015 Francisco Michel tornou-se advogado no processo 15+Duas, jovens igualmente acusados de tentativa de golpe de estado.

[4] Até 1976 integrantes da Revolta Ativa ainda procuravam o seu reingresso no MPLA, sem encontrar o parecer favorável do partido.

[5] A I Região Política Militar do MPLA abrangia as províncias de Luanda/Bengo, Kwanza Norte, Zaire, Uíge e Malange.

[6] Atual República Democrática do Congo. Segundo Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, em Março de 1973 Monstro Imortal acabaria detido no Porto de Kinshasa, quando se preparava para apanhar o barco que o levaria para Brazzaville graças à denúncia dos Serviços de Segurança do Governo Revolucionário Angolano no Exílio (GRAE),criado por Álvaro Holden Roberto, Líder da FNLA.

[7] Ver MATEUS e MATEUS­ 2007, p.65.

[8] A Comissão era dirigida por José Eduardo dos Santos e teria 2 meses para apresentar as conclusões, a contar da data de 8 de novembro de 1976, o que nunca chegou a acontecer.

[9] Ver FRAGOSO e PEDRO 2010, P.82.

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