Stalinismo em Angola: O massacre do 27 de maio de 1977 – Parte II
Repressão, Tortura e Assassinatos
Na manhã de 27 de Maio (sexta-feira), ouvem-se tiroteios e rebentamentos de obuses, há quem diga que as escaramuças começam na tarde do dia 26 com a detenção de Nito Alves e José Van Dunem levados na cadeia de São Paulo, mas o que chama atenção na manhã do dia 27 de Maio, para além dos disparos, são os dizeres que o locutor da Rádio Nacional de Angola profere: Kudibanguela! Weia! (Vamos fazer) Eram dizeres de um programa há algum tempo extinto por pertencer a ala de Nito Alves e organizações do Poder Popular, que entre palavras e músicas cantadas em Kimbundu vai pedindo que a população se dirija até a frente da radio, exige ainda a soltura dos presos políticos e o fim da repressão da DISA. A Rádio Nacional estava sob controlo de militares da 9ª Brigada, féis à Nito, que na altura passavam fome nos quarteis e sem fardamentos adequados, e populares que eram incessantemente humilhados com as longas filas nas famosas Lojas do Povo, para adquirir um quilo de arroz ou uma barra de sabão.
Por: J. G. Hata
A ocupação da Radio vai durar apenas 2 horas, entre às 6h até às 8h, altura que é cercada por tropas cubanas comandadas por Rafael Moracén[1] e Henriques Santos “Onambwé” vice diretor da DISA. São rendidos os ocupantes, incluindo o locutor, que é espancado ao mesmo tempo que o programa encontra-se no ar, Rafael Moracén toma conta dos microfones e lança palavras de apelo à tranquilidade da população e a Neto. Fora da rádio as rajadas não param e matam população civil que participa dos protestos.
As 14 horas Onambwé e os cubanos dirigem-se à 9ª Brigada, ondem militares da ala de Nito Alves haviam detido comandantes e membros do Governo que no dia seguinte aparecem mortos queimados, na zona da Boa Vista, em Luanda. A morte destes comandantes vai desencadear a maior cólera por parte de Neto e avança com a sentença extra judicial para tudo que se viria seguir com a palavra de ordem: não haverá contemplações, não vamos perder tempo com julgamentos. Seremos os mais breves possíveis
Estava traçado o destino da maior juventude revolucionária que Angola tivera, e as razoes para ser detido poderiam ser das mais objetivas possíveis ou das mais abjetas, como o fato de ser um estudante ou ser uma mulher bonita cobiçada pelos comandantes da situação. Os dias posteriores são de autênticos massacres, são visadas as organizações de massa, entre estas as mulheres, os sindicatos e a juventude, as Forças Armadas (9ªBrigada), a Administração Pública e os ministérios, os Órgãos do Poder Popular, e claro, para quem prende jovens por terem a 4ª Classe os livros não poderiam ficar de fora, foram queimados obras de Marx, Engls e Lénin[2]. O fim que se dá aos líderes da suposta intentona, seus familiares, pessoas próximas, ou simples simpatizantes, executado friamente pela Comissão das Lágrimas é deveras arrepiante:
Nito Alves: Foi capturado junto da localidade do Piri, sua região de origem, onde se refugiara nos primeiros dias depois do 27 de Maio de 1977. Para pressionarem a se render tiveram que prender toda sua aldeia natal, submetendo a população a maus-tratos e trabalhos forçados nas primeiras horas do dia. Seu corpo foi cravado de balas e o corpo atirado ao Mar com um peso. Não aceitou que lhe tapassem os olhos, pois queria ver os seus assassinos
Monstro Imortal: O lendário Comandante e afiliado de casamento de Agostinho Neto, foi atado os pés e as mãos às costas, ligados aos testículos, e pressionado por um garrote, os algozes deixavam um gravador na sala enquanto fora iam apertando o garrote. Diz-se que o cegaram e atiraram o corpo de um avião.
Sita Valles: Regressa em Angola em Junho de 1975, depois de estar a estudar em Portugal desde 1971. Ingressa no MPLA e tem a missão de reorganizar o setor intelectual, levanta suspeitas por parte de Lúcio Lara de quem a acusa de ser enviada pelo Partido Comunista Português-PCP a fim de controlar o MPLA,e é afastada do MPLA. Em 1976 casa com José Van Dunem. Na ressaca do 27 de Maio é presa junto com seu marido.
Antes de ser morta terá sido violada por elementos da DISA, alguns relatos afirmam que eram tantos os elementos que disputavam quem seria o primeiro a violá-la, e que para tal tiveram que fazer fila. Também foi assassinado o seu irmão, Ademar Valles, pelo simples fato de ser seu irmão.
A CIVICOP e o 27 de Maio
Em Abril de 2019, por iniciativa presidencial, criou-se a Comissão de Reconciliação em Memoria das Vitimas dos Conflitos Políticos-CIVICOP, ocorridos entre 11 de Novembro de 1975 a 4 de Abril de 2002, a proclamação da independência e o fim da guerra civil. Portanto não sendo uma comissão criada exclusivamente para tratar do massacre do 27 de Maio. No entanto elencava entre os seus planos a procura e identificação dos restos mortais das vítimas e a emissão de certidões de óbitos. Numa iniciativa há muito solicitada por familiares e a sociedade angolana, no dia 26 de Maio de 2021 o Presidente angolano, João Manuel Gonçalves Lourenço pediu desculpas as famílias em nome do Estado angolano.
Em junho de 2022, em plena pré-campanha eleitoral para as Eleições Gerais, a CIVICOP apresentou os restos mortais daquilo que se presumiam serem os corpos de Nito Alves, Monstro Imortal, Arsénio José Lourenço Sihanuk e Ilídio Ramalhete[3].
Tudo o que viria a acontecer depois no âmbito da CIVICOP acabou por expor os seus reais objetivos que passam por minimizar os crimes do 27 de Maio, com a repartição das culpas entre os assassinos e as suas vítimas, redefinição da agenda sobre o 27 de Maio, ser um instrumento poderoso de propaganda eleitoral das eleições gerais, diabolização da UNITA e exclusão da sociedade civil desde a concepção até o plano de execução da mesma.
Segundo o antropólogo Ruy Llera Blanes[4], a CIVICOP tem sido marcada por um obscurantismo à partida, em relação ao seu rigor[5] e intencionalidade ao ponto de pôr em causa o próprio objetivo da reconciliação efetiva. Para o antropólogo, não foi seguido um processo de construção de transparência no que diz respeito a criação de uma comissão independente, incluindo atores nacionais e internacionais, e familiares. Blanes fala igualmente da ausência de um protocolo em matéria de investigações de execuções extralegais, arbitrarias e sumarias a exemplo dos Protocolos de Minnesota, de 1991 e o Protocolo de Istambul adotado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
Raça, Classe e o 27 de Maio
Era um sentimento generalizado que com a independência alcançada em 1975 nada tinha mudado, este sentimento era alimentado em função das elites que controlavam o país, quase sempre os brancos ou mestiços ocupavam os melhores cargos.
Segundo a pesquisadora Inglesa Lara Pawson, classe e raça são dois processos indissociáveis. Angola tinha uma experiencia de colonialismo durante séculos e viveu 50 anos fascismo, o que contribuiu para que o sistema português se estruturasse com base em ideias de hierarquia racial. Negar o papel da raça é negar a realidade. Acrescenta que o elemento racial transcende a questão dos traços fenótipos, como a cor da pele, e envolve aspetos culturais do negro.
No período colonial, entre 1926 a 1961 Portugal instituiu a Lei do Indigenato. Aqui o significado de indígena não pode ser confundido ao que por exemplo é dado no continente americano, a de população nativa antes da chegada do invasor europeu. O invasor português em Africa colocou como critério classificador de indígena o processo assimilador, refletido na supremacia racial branca. Eram indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendente que, pela sua ilustração ou costumes, se não distingam do comum daquela raça, não faziam parte da nação portuguesa, e a sua integração dependeria da transformação gradual dos seus hábitos e costumes (Artigo 1º). Já o negro assimilado adquiria os valores eurocentristas e poderia obter alguns privilégios, como a possibilidade de ascender na administração colonial. Este sistema de estratificação racial teve profundas consequências a nível económico e politico no novo Estado angolano.
Socorremo-nos novamente em Pawson quando apresenta o depoimento da antiga Vice Ministra da Saúde, Teresa Cohen uma pessoa de cor preta que afirmara categoricamente ser europeia como a escritora Pawson (branca), neste encontro a senhora ministra faz uma clara distinção entre ela e outros angolanos, ou seja os outros (pretos africanos), e ela (preta assimilada), e que por isso considera-se branca. O que evidencia a mentalidade das elites políticas angolanas.
Olhando para o discurso de Nito Alves onde afirmara que apenas haverá justiça quando brancos e mesticos varrerem as ruas, opinão muito aproveitada pelos seus detratores e que é usado sutilmente para lhe colocarem em oposição à Neto, Pawson faz a seguinte reflexão: onde existem apenas os negros a limparem as ruas é um evidente sinal de racismo, pelo que a afirmação de Nito Alves vem expressar ambição para a igualdade no tratamento, e como tal trazer o ideial de justiça, e que as deturpações feitas revelam que há certa resistência entre português e angolanos em aceitar esta existência.
Conclusão
“Al pueblo de Angola y a su máximo lider, presidente Neto, que nos encontramos ahora en la emisora del radio, combatiendo aqui, manteniendo esa posicion. Que la emisoravá a ser puesta en manos de los revolucionários, con Agostinho Neto. Que se encuentra combatiendo […] que se encuentra aqui confundido […]” – Rafael Moracén – militar cubano
“Não haverá contemplações […]Certamente não vamos perder tempo com julgamentos. Seremos o mais breve possível” – Agostinho Neto
O massacre iniciado em 27 de Maio de 1977 apenas teve o seu fim em 1979 com a dissolução da DISA. Os números de vítimas mortais variam dos 30.000 aos 80.000, provavelmente nunca obteremos os números reais, nem é isso que está em causa, mas sim sabermos as razões profundas por detrás do 27 de Maio, como e porque aconteceu tal drama, ao ponto de em menos de um ano e meio após a independência se dar essa mudança brusca nas relações entre membros de um mesmo partido? Como é que de forma repentina heróis passam há vilões?
Como podemos constatar durante exposição do tema, o 27 de Maio é o corolário de percurso político que o MPLA fez ao longo da sua fundação, é o rebentar da ausência de uma cultura de diálogo. A natureza ideológica dos vários grupos que deram origem a este movimento desde sempre trouxera várias clivagens, como a da Revolta do Leste e a Revolta Activa, infelizmente mal compreendidos e como tal pouco estudados no interior do partido mas que apenas retardava a discussão dos vários problemas que afetavam o partido e a sua direção. Nota que Nito Alves numa das suas críticas ao partido apontava o facto de durante os seus 20 anos de existência nunca ter realizado um único congresso.
Outra questão que ficará por responder é a via pela qual a ala de Nito Alves pretendia fazer ouvir as suas reivindicações. Manifestação popular para chamar atenção de Neto ou golpe de estado? Aqui as vozes divergem no interior do MPLA. Alguns defendem a tese de golpe de estado pelo facto de haver envolvimento militar e os que afirmam tratar de manifestação popular dizem que os militares foram chamados apenas para dar proteção ao vasto público que iria se manifestar.
Uma variável que deve ser estudada para perceber os Estados africanos pós colonial é sobre o papel da raça. O racismo e a cultura de classe herdada da colonização terão agudizado ainda mais as já deterioradas divergências ideológicas. A divisão da sociedade colonial entre indígenas e assimilados criou os pilares da Angola pós colonial, havendo a sensação de que nada havia mudado pois a elite política maioritariamente assimilada continuou a usufruir dos privilégios deste estatus, diferentemente da maioria que tivera um papel de facto na luta anticolonial.
Por fim a CIVICOP enquanto comissão para a memória das vítimas de conflitos políticos deveria ser um instrumento de reconciliação entre as pessoas e a história, não se pode falar de memória sem verdade. E para esse fim os critérios como imparcialidade, transparência e inclusão dariam mais credibilidade nesta comissão, que tem agido ao ritmo e interesses do regime político para o seu auto perdão e propaganda política.
Referências
BLANES, Ruy Llera. Reconciliação sem Justiça: A CIVICOP e o 27 de Maio em Angola, Jornal Expresso, 2023.
CHIWALE, Samuel. Cruzei-me com a História. Sextante Editora, Lisboa, 2008.
FRAGOSO, José, PEDRO, Lucas, Nito Alves: A Última Vítima do MPLA no Século XX. Fundação 27 de Maio, Luanda, 2010.
MATEUS, Dalila Cabrita, MATEUS, Álvaro, Purga em Angola: O 27 de Maio de 1977. Texto Editores, Lisboa, 2015.
MARQUES, Alexandre, Segredos da Descolonização de Angola. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2013.
MICHEL, Miguel Francisco, Nuvem Negra: O Drama do 27 de Maio de 1977.Classica Editora, Lisboa, 2007.
NUMA, Abílio José Augusto Kamalata, Angola Prólogo ao Projecto do Mwangay: Democracia e Construtivismo. Luanda, 2015.
PACHECO, Carlos. Agostinho Neto o Perfil de Um Ditador: A História do MPLA em Carne Viva. Nova Veja, Lisboa, 2016.
PAWSON, Lara. Entrevista Concedida a Mwangole TV. 2014.
[1] Rafael Moracén, elevado a condição general de brigada do Exercito cubano, relata com detalhes sua participação em Angola na entrevista: Secretos de Generales, publicado no jornal Gramna, por ocasião do 50⁰ Aniversário das Forças Armadas de Cuba
[2] MATEUS e MATEUS, 2007, Pag. 118.
[3] Irmão gémeo de Júlio Ramalhete, também vítima no 27 de Maio
[4] BLANES, Reconciliação sem Justiça: a CIVICOP e o 27 de Maio em Angola, Jornal Expresso, 2023.
[5] Idem, Quem identificou os locais de escavação? Com que conhecimento e metodologia? A 16 de novembro a TPA emitiu um Especial Informação onde apresentavam os passos tomados nos trabalhos de identificação. Nele, referia-se o recurso a testemunhos orais e principalmente a intervenção de um pesquisador brasileiro, o geografo Ary Resende Filho, professor da Universidade Federal do Mato Grosso, na identificação de campas e valas comuns através de um aparelho de medição de solos. No entanto, esta metodologia não é reconhecida nas práticas forenses internacionais.