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domingo, maio 19, 2024

As taxas do Fed e a situação da economia dos Estados Unidos

A Reserva Federal dos EUA (o Fed) acaba de anunciar a política de taxas de juros que pagará pelos Bônus do Tesouro que este país emite[1]. Estas definições do Fed se baseiam sempre em uma avaliação da situação e da dinâmica das finanças e da economia do país e têm uma grande influência nelas. Ao mesmo tempo, também têm um grande impacto em todo o mundo, já que a taxa do Fed é tomada como taxa base de referência da qual os bancos de todo o mundo cobram pelos seus empréstimos.

Por: Alejandro Iturbe

O Fed é o Banco Central dos EUA, responsável pelo entesouramento do ouro e outras reservas monetárias deste país, pela emissão de dólares-bilhetes e também dos Bônus do Tesouro que são vendidos em seu país e em todo o mundo, pelos quais se paga uma taxa de juros. Diferente dos bancos centrais de outros países do mundo, o Fed tem autonomia e pode tomar suas próprias decisões sem sujeitá-las ao governo vigente.

A emissão e venda de Bônus do Tesouro é o mecanismo mais importante que os EUA utilizam para financiar seu gigantesco e crescente déficit orçamentário. Ao mesmo tempo, representam um quase dinheiro, ou seja, se utilizam das finanças e do comércio mundial como se fossem dólares-bilhete (que continua sendo a moeda de referência mundial). Por isso, muitos países compraram grandes quantidades e hoje são parte importante de suas reservas monetárias (isto inclui potências econômicas mundiais como Japão e China). É um dos mecanismos que o imperialismo estadunidense utiliza para “sugar” mais-valia de todo o mundo[2].

Os Bônus do Tesouro também são comprados por investidores privados, especialmente dos EUA, como um investimento de “retorno seguro” em comparação a outras muito mais oscilantes, como as ações de empresas privadas, ou “voláteis” como as criptomoedas. Se as taxas do Fed são altas (atrativas), muitos destes investidores escolhem os Bônus do Tesouro frente às outras opções.

O Fed vinha aplicando uma política de “taxas altas” em comparações históricas (5,5%). Agora anunciou que prevê pelo menos um leve “corte” em 2024 e que será mantido observando a dinâmica da economia estadunidenses ao longo do ano em dois parâmetros (evolução do PIB e inflação) para definir se considera necessário fazer novos cortes.

Neste ponto, achamos necessário fazer duas considerações. A primeira delas é que na visão “monetarista” que, desde a década de 70, predomina nos economistas burgueses, a gestão das taxas bancárias passou a ser uma das ferramentas centrais da política econômica com que os governos capitalistas operam sobre o processo econômico, com diferentes objetivos.

A segunda é considerar o conceito de “ciclos curtos” analisado por Marx ao estudar a economia capitalista: o próprio processo de acumulação capitalista gera que cada fase de crescimento de alguns anos seja seguida inevitavelmente por uma fase descendente, de similar duração.

De onde vem?

Com este enfoque, para entender a política de taxas do Fed, achamos necessário considerar brevemente como esta sequência de ciclos se deu nos últimos anos nos EUA. Em fins de 2019, a economia estadunidense já evidenciava ter “freado” e começava a entrar em um ciclo descendente. Esta dinâmica se confirmou no primeiro trimestre de 2020 (-1,2%)[3]. Nesse momento, começou oficialmente a “pandemia”, cujo impacto provocou uma queda histórica do PIB no segundo trimestre (cerca de -10%). Ou seja, aprofundou ao extremo o efeito de uma fase descendente.

Diante da grande queda de seus lucros, a burguesia estadunidense começou a aplicar a criminosa política da “nova normalidade”: a reabertura gradual de todas as atividades econômicas sem ainda ter controlado a pandemia[4]. Assim conseguiu o final abrupto da fase descendente e se iniciou uma recuperação, a partir do terceiro semestre de 2020[5]. Esta dinâmica de recuperação continuou em 2021.

Aí entraram para jogar os três grandes pacotes financeiros graduais lançados pelo governo de Joe Biden com objetivos imediatos, de médio e longo prazo que totalizavam vários bilhões de dólares. Naquele momento, um artigo da revista Correio Internacional analisou: Biden está combinando uma grande injeção de crédito com pagamentos diretos a empresas e habitações”[6].

Inclusive com o impacto que esses pacotes tiveram sobre a economia estadunidense caracterizamos que, de conjunto a nível mundial, tratava-se de “Uma recuperação anêmica e com muitos problemas”[7].

A política do Fed contra a inflação

Um dos problemas existentes era a alta inflação que se praticava nesta recuperação. Em 2021, a inflação anual foi de 7%, a mais alta desde 1982. Algo que [havia]começado a converter-se em uma das principais preocupações para os norte-americanos, que [começavam] a sentir como o aumento do custo de vida diluía os benefícios da forte recuperação da economia”[8].

Naquele momento, o Fed começou a subir suas taxas em uma tentativa monetarista de “secar o mercado” (extrair dinheiro de circulação). O objetivo de baixar a inflação foi alcançado: em 2023 será de 3,4% anual[9]. Ao mesmo tempo, embora tenha conseguido reduzir a inflação, não reverteu minimamente o aumento de preços nos últimos quatro anos e seu impacto fortemente negativo sobre o nível de vida dos trabalhadores e das massas.

Por outro lado, esta política de “secar o mercado” tem outras consequências, já que absorve dinheiro que não vai para outros investimentos, como as ações das empresas privadas ou das múltiplas startups dedicadas à tecnologia, e sua aplicação, que haviam surgido nos últimos anos.

Muitas destas startups entraram em crise e isso impactou duramente alguns bancos cujos negócios se centravam nelas e os levou a quebrar, como foi o caso do Silicon Valley Bank da Califórnia, o Signature Bank (concentrado em criptomoedas) e o First Republic Bank (com sede em San Francisco). Esta crise bancária ameaçava estender-se no país e, sob causas diferentes, teve uma expressão própria na Europa[10].

A intervenção do governo de Biden (respaldando o pagamento de depósitos) e a compra do First Republic Bank pelo JP Morgan contiveram a expansão da crise bancária e evitaram que ocorresse uma situação como a que foi detonada em 2007/2008 com a quebra do Lehman Brothers. Mas a situação pode reabrir se a economia estadunidense entrar abertamente em recessão.

“Aterrisagem suave” vs recessão

O impacto dos megapacotes de Biden já foi em grande medida “devorado”. Conseguiram seus objetivos mais imediatos: atenuar um pouco a duríssima situação econômico-social dos trabalhadores e das massas, existente durante a pandemia, e dar algum suporte à fase de recuperação. Mas não conseguiram outro de seus objetivos: promover uma onda mais forte e sustentada de investimentos capitalistas em setores produtivos (os únicos que criam novo valor).

Segundo dados do website da Casa Branca, “Investing in America”, o investimento privado na produção industrial durante a presidência de Biden ascende a 503 bilhões de dólares (uma cifra historicamente baixa) dos quais 231 (46%) são para a produção de semicondutores. Uma das consequências disto é que a criação de novos empregos é escassa e bastante abaixo das previsões do governo. Em outras palavras, a economia estadunidense “está ficando sem combustível”.

Vejamos alguns dados da dinâmica do PIB: em 2021, cresceu 5,8%; em 2022, 1,9% e em 2023, 2,4% (uma certa reversão da tendência declinante de crescimento). O que ocorrerá em 2024? As previsões sobre isto estão divididas. O Fed e outros analistas econômicos preveem que em 2024 haverá um crescimento de 2,4%[11]. Com base nesta previsão, caracterizam que está indo para uma “aterrisagem suave”; ou seja, um freio da dinâmica, embora lento e gradual. Por isso, o Fed é tão conservador em sua política de taxas (embora inclua um wait and see de alerta) o que significa que, por ora, continua privilegiando sua política de baixar a inflação.

Outras análises são mais pessimistas, como a do “The Conference Board” (um think tank de altos executivos de importantes empresas industriais e outros “pensadores”) que prevê um crescimento de apenas 0,8% para 2024. Entre outros elementos, esta análise considera que, embora o gasto dos consumidores se mantenha alto (o fator principal que, diante da escassez de investimentos produtivos, sustentou a fase ascendente), isto “é insustentável devido à escassez de renda disponível e ao rápido esgotamento das poupanças[12]. Ou seja, prevê uma “aterrisagem” muito mais rápida. Por isso, se localiza no campo dos que pedem uma política mais agressiva de corte de taxas pelo Fed para “soltar dinheiro” e atenuar assim a dinâmica de freio da economia.

Do nosso ponto de vista, os diferentes elementos que se combinam na realidade (o escasso investimento produtivo da burguesia, a baixa criação de emprego, a diminuição das taxas de benefícios empresariais a nível do conjunto da economia, como assinala o economista marxista Michael Roberts, e o esgotamento da fortaleza do consumo) indicam que se está no fim da fase ascendente e que, como a hipótese mais provável, se aproxima uma recessão.

Ao mesmo tempo, se analisarmos o contexto econômico internacional, grandes potências como a Grã Bretanha, a Alemanha e, de fato, o Japão, já estão em recessão. A China, a segunda economia mundial, também enfrenta grandes problemas, especialmente em seu setor imobiliário[13].

Investimentos militares e em semicondutores

Neste marco, há dois setores que estão recebendo dinheiro do governo de Biden. Um é o chamado complexo industrial-militar que recebe parte dos 760 bilhões de dólares de “gastos militares” incluídos no orçamento anual e ao qual Biden quis agregar 105 bilhões com seu projeto de lei de “Financiamento Crítico da Segurança Nacional”, enviada ao Parlamento, em 2023 (que adicionava 105 bilhões de dólares aos 760 bilhões já incluídos no orçamento anual). Ainda que, por ora a lei esteja “travada” pelos republicanos, é parte da política do imperialismo estadunidense de “rearme” e de renovação de sua capacidade militar a partir da guerra na Ucrânia e da hipótese de um conflito militar com a China por Taiwan. Nesse marco, os diferentes ramos do complexo militar industrial estão trabalhando a pleno.

O segundo setor é o da fabricação de microchips avançados que são usados nos celulares e computadores de alta gama. Neste setor, atualmente, a indústria estadunidense depende dos chips fabricados pela empresa taiwanesa TSMC e pela coreana Samsung que dominam o mercado mundial. Biden quer diminuir esta dependência e começou a injetar fundos que promovam a pesquisa, o desenvolvimento e a fabricação de chips nos EUA, com instalação de novas fábricas.

Com esse objetivo, fez aprovar, em 2023, a “Lei de Chips” que injetou 50 bilhões de dólares em financiamento direto a este setor (o que seria parte de um pacote total de 282 bilhões a ser completado nos anos seguintes)[14]. Os maiores beneficiários tem sido empresas como NVidia e o bloco Intel-IBM, mas, como vimos, é neste setor de conjunto onde são realizados os maiores investimentos produtivos.

Este setor é o mais dinâmico da economia, atualmente. Mas é necessário esclarecer, em primeiro lugar, que a relação entre volume de investimento e taxa de criação de empregos é muito baixa. Em segundo lugar, a construção de novas plantas fabris agrava a crise da água existente nas regiões onde se instalam (como é o caso de Phoenix, Arizona). Na realidade, existe uma “crise logística” mais profunda sobre a questão da água e este fato gera dúvidas sobre uma aplicação significativa da Lei de Chips. Em terceiro lugar, não consegue ser o motor que possa superar a “crise de rentabilidade” da economia nacional em seu conjunto e, com isso, abrir uma forte onda de investimento da burguesia.

Um dado importante é que na indústria automotriz, o país está atrasado na feroz competição mundial no mercado de veículos elétricos e a transição necessária para uma reconversão desta indústria que aumente sua competitividade está “esfriando” [15].

A luta de classes

Queremos terminar este artigo referindo-nos, ainda que brevemente, aos processos e à dinâmica da luta de classes, especialmente às greves geradas pelas questões salariais e condições contratuais, que se entrelaçam profundamente com a situação e a dinâmica econômica.

A classe trabalhadora estadunidense vem sofrendo um permanente ataque em ambos os aspectos desde a década de 1980, quando o governo de Ronald Reagan derrotou a greve dos controladores aéreos. No caso dos trabalhadores industriais, se somou ao impacto da reconversão da economia estadunidense cada vez mais voltada às finanças e aos serviços e menos “produtiva”. O uso crescente da tecnologia também incidiu.

Isto significou o fechamento de numerosas plantas e a redução de equipes em outras, processos nos quais as empresas conseguiram impor novos acordos trabalhistas muito mais prejudiciais para os trabalhadores. Um exemplo disso foi o “salvamento” da General Motors em 2009, um modelo que logo foi aplicado em muitas outras empresas industriais. Ao mesmo tempo, crescia o número de empregos nos serviços, com salários e condições trabalhistas muito mais baixas.

A pandemia piorou este quadro. Quando “terminou”, os trabalhadores compreenderam que não seriam recompensados pelo seu sacrifício e começaram a lutar de forma crescente, em ondas parciais de greves, mas significativas. Um elemento importante é que nelas voltavam a aparecer os trabalhadores industriais (ausentes da cena por muitos anos).

Assim aconteceu em fins de 2021[16].  Em 2022, segundo o Escritório de Estatísticas Trabalhistas, houve um aumento de 50% de “grandes greves” (mais de 1.000 trabalhadores envolvidos em cada uma) em relação aos dois anos anteriores. Neste ano, houve um nítido predomínio dos setores da educação, saúde e serviços. Em 2023, o centro da cena foi ocupado pela greve dos trabalhadores das empresas automotrizes, que colocou “sobre a mesa” uma reivindicação do Programa de Transição da IV Internacional (a escala móvel de salários)[17]. O resultado desta greve foi considerado como uma vitória pelos trabalhadores[18].

Abre-se assim a possibilidade de uma nova onda parcial de greves. Por um lado, é necessário ver o impacto que teve o “efeito demonstração” do resultado da UAW. Por outro, opinamos que os sindicatos e sua influência estão crescendo, depois de décadas de retrocesso e redução (seja pelo aumento da quantidade de afiliados dos sindicatos existentes ou pelas tentativas de fundação de novos sindicatos, como é o caso da Amazon e outras empresas).

A classe trabalhadora estadunidense está compreendendo cada vez mais que “fazer concessões” só leva a retroceder, que é necessário lutar para obter alguma melhora, e começa a ver os sindicatos como uma ferramenta para isso. Segundo uma pesquisa da agência Reuters, 58% da população apoiou a greve da UAW. Ao mesmo tempo, cada vez são mais trabalhadores jovens que têm buscado emprego em lugares com sindicatos ou tentam organizá-lo (como na Amazon). Acreditamos que é um sintoma que pode indicar uma maior predisposição de luta. A realidade mostrará se é assim ou não.

A dinâmica da luta de classes nos EUA e os resultados das lutas terão evidentemente uma incidência sobre a situação interna do país. Também, pelo peso dos EUA, o terão sobre a luta de classes em todo o mundo[19]

Tradução: Lílian Enck


[1] La Fed confirma la intención de recortar las tasas de interés, aunque estira los plazos (ambito.com)

[2] Sobre este assunto, recomendamos ler o “Capítulo 8: EEUU, epicentro de la crisis actual” do livro de Alejandro Iturbe O sistema financeiro e crise da economia mundial, Editora Sundermann, Brasil, 2009. 

[3] https://cincodias.elpais.com/cincodias/2020/04/29/economia/1588166272_118727.html

[4] https://litci.org/es/la-verdadera-cara-de-la-nueva-normalidad/

[5]  https://litci.org/es/hacia-donde-va-la-economia-mundial/

[6] “Keynesianismo imperialista en tiempos de pandemia” de Orlando Torres, en la revista Correo Internacional n.° 25 (abril de 2021), disponible en https://litci.org/es/especialescorreo/

[7] https://litci.org/es/67115-2/

[8] https://www.lanacion.com.ar/estados-unidos/la-inflacion-en-estados-unidos-en-2021-alcanzo-su-maximo-en-39-anos-nid12012022/#:~:text=Estados%20Unidos%20cerr%C3%B3%202021%20con,en%20el%20costo%20de%20vida

[9] https://elpais.com/economia/2024-01-11/estados-unidos-cierra-2023-con-la-inflacion-en-el-34-tras-repuntar-en-diciembre.html

[10] https://litci.org/es/las-raices-profundas-de-la-crisis-bancaria-internacional/

[11] https://www.eleconomista.com.mx/economia/SP-proyecta-crecimiento-del-PIB-de-Estados-Unidos-de-2.4-para-2024-20240221-0089.html

[12] https://www.conference-board.org/about/us#:~:text=We%20connect%20senior%20executives%20across,profit%20our%20work%20is%20trusted.

[13] https://www.infobae.com/america/mundo/2024/01/02/la-crisis-de-la-economia-de-china-en-numeros-fuerte-caida-en-las-ventas-de-las-100-principales-inmobiliarias-en-2023/#:~:text=Las%20ventas%20de%20las%20100%20principales%20promotoras%20inmobiliarias%20de%20China,hongkon%C3%A9s%20South%20China%20Morning%20Post.

[14] Cinco claves de la Ley de Chips de EE. UU. – The New York Times (nytimes.com)

[15] https://www.infobae.com/wapo/2023/12/27/la-transicion-a-los-vehiculos-electricos-se-enfria-cae-la-demanda-y-se-ralentiza-la-produccion/

[16] https://litci.org/es/67597-2/

[17] https://litci.org/es/eeuu-solidaridad-con-los-huelguistas-de-la-uaw/

[18] https://elpais.com/economia/2023-10-31/los-trabajadores-ganan-la-huelga-del-motor-de-ee-uu-al-lograr-fuertes-subidas-de-sueldos-y-conquistas-laborales.html     

[19] https://litci.org/es/eeuu-un-levantamiento-de-la-clase-obrera-norteamericana-tiene-un-reflejo-enorme-sobre-el-conjunto-de-la-clase-trabajadora-mundial/

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