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sexta-feira, março 29, 2024

A guerra na Ucrânia e as perspectivas para Belarus

Em dezembro, Lukashenko recebeu a visita de uma delegação representativa dos principais criminosos de guerra russos, Putin, Shoigú e Lavrov. Não foram publicados os detalhes da conversa, mas “explicaram” que se tratava de cooperação e integração militar e econômica. De fato, esta visita teve um objetivo: discutir como – diante da total falta de vontade do povo de Belarus para lutar contra os ucranianos e sua rejeição à guerra e à ditadura – adaptar Belarus às necessidades militares e econômicas da Rússia e da guerra de Putin.

Por: Ales Radkevich

Um antecedente histórico

Durante a Segunda Guerra Mundial, em certo sentido, a França se encontrava em uma posição semelhante. O país foi parcialmente ocupado por tropas alemãs. O estado era governado pelo regime ditatorial colaboracionista de Vichy, liderado pelo general Pétain. A propaganda oficial do regime apoiou plenamente a guerra nazista contra a URSS. As organizações fascistas francesas tentaram reunir voluntários. Mas, em geral, Hitler e Pétain não enviaram os franceses à guerra. Não porque não quiseram, e não porque Hitler não pudesse “apertar” Pétain, mas porque os franceses comuns não estavam dispostos a ir lutar por Hitler. Tal ordem de ir para a guerra e armar os franceses em massa para este propósito, poderia ser contraproducente para o regime de Vichy e para o controle alemão da França.

Os trabalhadores franceses tampouco queriam ir à Alemanha para trabalhar nas fábricas alemãs. Embora fossem muito necessários para substituir os trabalhadores homens alemães enviados à guerra. Mas, nas condições do culto nazista à família patriarcal, em que a mulher tinha que ficar em casa com os filhos, interferia em grande medida na participação das mulheres alemãs na produção. Apesar dos esforços estatais de ambos os governos, o plano de enviar trabalhadores franceses à Alemanha fracassou estrepitosamente.

O ministro da indústria miliar da Alemanha nazista, Albert Speer, escreveu em suas memórias esta situação desagradável com os franceses: «nem à guerra, nem às fábricas». E relatou que foi repetidamente discutido pela cúpula do Reich e com os comandos do regime colaboracionista francês.

No final, chegaram a uma decisão. Em geral, os nazistas e o regime colaboracionista de Vichy na França dividiram as funções: a população alemã era enviada à guerra, e os trabalhadores franceses, homens e mulheres, eram obrigados a trabalhar para ela diretamente na França. Para a Alemanha foi designada uma função militar e para a França, as funções de retaguarda e apoio à guerra nazista. As empresas francesas estavam carregadas de pedidos alemães para a maquinaria militar alemã, a agricultura proporcionou provisões a Wehrmacht. A parte do leão dos alimentos e a roupa era exportada da França para a Alemanha, as fábricas de construção de maquinaria impulsionavam os produtos militares.  Em termos militares diretos, a Wehrmacht controlava por completo o norte da França. Dali, antes do início da guerra contra a URSS, ameaçou invadir a Grã Bretanha. E depois cobriu o território ocupado a partir da abertura de uma segunda frente. Quando houve perigo de desembarque dos aliados no Sul, a Wehmacht ocupou a parte sul do país.

Então a França se adaptou à guerra de Hitler. Acima de tudo, pairava na França um sentimento de humilhação nacional. Deu lugar à uma resistência, que a polícia de Vichy e a Gestapo tentaram reprimir juntas. O regime colaboracionista tentou justificar sua legitimidade argumentando que estava “preservando a paz” na França. Mas os funcionários do regime de Vichy passaram para a história como coagressores e cúmplices diretos dos crimes nazistas.

E qual é o papel do regime de Lukashenko?

Salvando todas as diferenças e distâncias, Putin e Lukashenko estão enfrentando hoje um problema similar ao dos nazistas e do regime colaboracionista francês de Vichy.

Putin e Lukashenko não enviam os bielorussos à guerra. Não porque não queiram, e não porque Putin “não tenha apertado” Lukashenko. Se Putin quiser, tem todas as ferramentas para isto, inclusive as forças de ocupação e a capacidade de capturar Lukashenko em duas horas. Não os enviam, simplesmente porque os bielorrussos comuns não querem lutar contra os ucranianos. A ordem de enviá-los à guerra implica o risco de protestos contra Lukashenko. E para Putin significa o risco de perder a Belarus na perspectiva de capturar Kiev. E quanto ao resto, Lukashenko há muito tempo fez e está fazendo de tudo e em todas as áreas para a guerra de Putin. E mais ainda, quanto mais tempo passa.

Desde 24 de fevereiro, o sul de Belarus passou a fazer parte do teatro de operações da Ucrânia. Inclusive antes de 24 de fevereiro, Lukashenko abriu a Belarus ao exército russo sob a aparência de «exercícios».   Certamente, que não pôde “ignorar” como estes exercícios poderiam terminar. O território de Belarus foi cedido ao exército russo para atacar a Ucrânia em uma zona chave, quando tentou tomar Kiev e cometeu as atrocidades de Bucha. Do território de Belarus e do seu espaço aéreo, são realizados ataques permanentes contra cidades ucranianas ou os bombardeios, que realizam e ameaçam com isto, aterrorizando a população da Ucrânia com alertas de ataques aéreos. Os aeródromos de Machulishchi e Baranovichi estão à disposição da aviação militar russa, enquanto que Zyabrovka y Luninets foram convertidos em bases militares. Lukashenko leva projéteis para os ocupantes, fornece equipamentos. Está realizando manobras próximo das fronteiras da Ucrânia, distraindo as forças ucranianas para ajudar Putin a intensificar sua agressão no Donbass. Ameaça com outro ataque do Norte. Comboios com equipamento militar russo e tropas invasoras chegam à Belarus. Oficiais bielorrussos treinam russos recém mobilizados para serem enviados à Ucrânia. Estão sendo realizados treinamentos conjuntos e a «coordenação» do exército bielorrusso com os russos, ou melhor, os bielorrussos estão se adaptando aos russos. Convocações são enviadas e são realizadas outras medidas de mobilização com uma evidente perspectiva.

Tenta-se também recrutar mercenários para uma “Companhia Militar Privada” (CMP) da Belarus, uma cópia da Companhia Privada Wagner da Rússia (com pouco êxito devido à impopularidade da guerra). Isso ocorre dentro de um contexto em que Putin está apostando em uma guerra prolongada de desgaste e ainda considera como possível opção organizar uma nova ofensiva a partir da Belarus. Lukashenko se “mostra” no Monastério de Santa Isabel da Igreja Ortodoxa Russa, que promove o «Mundo Russo» e arrecada fundos para os ocupantes russos na Ucrânia, expressando assim seu apoio a esta atividade.

O regime de Lukashenko produz armas, capacetes e coletes à prova de balas, uniformes, kits de primeiros socorros para o exército russo, conserta equipamentos, fornece alimentos à Rússia. A indústria está cada vez mais reorientada para a Rússia. Várias empresas transferiram a produção diretamente para os ocupantes russos. Existe comércio direto entre Belarus e as administrações da ocupação russa na Ucrânia. Representantes de Lukashenko visitaram esses territórios e representantes das administrações da ocupação visitaram a Belarus. A economia do país está se adaptando rapidamente às necessidades da Rússia. Ou seja, está à disposição do regime de Putin, cujo objetivo principal hoje é a guerra. Para isso há os empréstimos que financiam a propaganda estatal bielorrussa, transformada em uma cópia da propaganda oficial de Putin.

Assim, o regime colaboracionista de Lukashenko e seu aparato estatal estão fazendo todo o possível para a guerra de Putin contra a Ucrânia. Inclusive, uma possível nova invasão russa a partir do Norte com a participação de soldados bielorrussos.

A França, sob o regime de ocupação de Vichy, foi de fato a retaguarda da Alemanha para a guerra contra a URSS. A escala de sua economia em comparação com a Rússia e sua posição geográfica no teatro de operações militares não permitem definir a Belarus como retaguarda da guerra de Putin. Mas quanto mais profunda é a dependência econômica do país e mais forte é sua participação em manobras militares, mais evidente é que fica relegada ao nível de uma parte da Rússia. É um “campo de operações” russo para a guerra contra a Ucrânia, com Lukashenko no papel de intendente militar.

O regime de Lukashenko é instrumento direto da guerra criminosa de Putin contra os ucranianos, cúmplice dos ocupantes russos na Ucrânia e Belarus, entregador da soberania e da independência nacional. Todo bielorrusso em Belarus é suspeito e punível. E os agressores russos são “recebidos com pão e sal” em uma obrigatória manifestação oficial televisada. Uma verdadeira demonstração de humilhação nacional.

Caminhos para a libertação da Belarus

No país hoje pode-se ouvir diferentes avaliações sobre as perspectivas para o desenvolvimento dos eventos e vários cenários possíveis. Nos deteremos nos principais.

«Lukashenko trairá Putin»

Esta visão não leva em conta que o regime de Lukashenko está, de fato, completamente nas mãos de Putin, econômica e militarmente. Está vinculado ao dinheiro dos empréstimos, ao comércio, aos pedidos, ao controle do país pelos invasores russos e numerosos graduados de instituições educacionais militares russas em altos postos militares do regime de Lukashenko. Por esta dependência é que os fracassos de Putin na Ucrânia complicam a posição do regime de Lukashenko.  E não o empurram em absoluto a “distanciar-se” de Putin, pelo contrário, leva a submeter-se cada vez mais a ele. Porque o regime de Lukashenko não tem outra saída. Lukashenko é o lacaio de Putin.

Embora a ideia de que Lukashenko trairá Putin seja contrária à lógica e aos fatos, paradoxalmente esta versão é sustentada simultaneamente pelo regime de Lukashenko e por Putin, pelos governos ocidentais e pelo governo de Zelensky e pela oposição liberal bielorrussa. O fato é que esta ideia é benéfica para todos eles de diferentes formas e por diferentes motivos. Isto permite ao lacaio de Putin, Lukashenko, mostrar-se como um “político independente”, manter relações com o governo de Zelensky e com os governos ocidentais e conseguir com que estes ignorem relativamente Tikhanovskaya (a candidata presidencial opositora que ganhou as eleições e agora está exilada e seu esposo preso). Permite a Putin usar Lukashenko ao máximo para a guerra e ao mesmo tempo manter uma “janela para a Europa”, no terreno econômico e político. Permite aos governos ocidentais evitar o «agravamento» interno na Belarus e continuar pressionando a Ucrânia na direção de um «tratado de paz», através de Lukashenko. Permite ao governo ucraniano não desagradar aos governos ocidentais, evitando unir a luta dos povos bielorrusso e ucraniano, o que seria muito perigoso para os oligarcas locais e as potências do Ocidente. Permite a Tikhanovskaya e companhia inspirar os bielorrussos na ilusão da possibilidade de um «diálogo» com a ditadura e flertar com seu aparato estatal, continuar a política de «acordo» com o regime ao invés de derrubá-lo.

Libertação “do exterior”

Isto significa que a derrota de Putin na Ucrânia conduzirá automaticamente à queda do regime de Lukashenko na Belarus, ou que os ucranianos, os governos ocidentais e o Regimento de Kalinovski o farão.

Muito pouco provável que seja assim. A derrota de Putin na Ucrânia realmente debilitaria o regime de Lukashenko. Objetivamente, os ucranianos estão lutando por nossa liberdade. Mas isto é só um pré requisito para a queda do regime. Não cairá por si próprio, alguém terá que tirá-lo.  Isso definitivamente não será feito pelo comando das Forças Armadas da Ucrânia e pelos governos das potências ocidentais. Inclusive hoje, ignoram Tikhanovskaya e não fazem contatos com ela mais além de eventos simbólicos, mas estão em contato com os regimes de Putin e Lukashenko. Tentarão preservar estes regimes tanto quanto for possível no futuro. O colapso de regimes que garantem a estabilidade, a exploração dos trabalhadores e povos, por meio da repressão de uma vasta região no interesse das estruturas financeiras ocidentais não é rentável para as potências imperialistas.

Além disso, neste esquema de preservação do regime, a Belarus poderia se tornar um “prêmio de consolação”, se o Ocidente e o governo ucraniano permitissem ao regime de Putin a anexação, para apresentá-la aos russos como uma conquista da “Operação Militar Especial” e evitar desestabilizar o regime.

O regimento de Kalinovski é pequeno em comparação ao aparato repressivo de Lukashenko. Além disso, eles não serão consequentes em libertar a Belarus, porque dependem das forças políticas que querem um acordo com o regime de Lukashenko.  As Defesas Territoriais da Ucrânia são relativamente mais independentes do comando das Forças Armadas da Ucrânia, porém também não devemos supor que farão o trabalho dos bielorrussos. Portanto, ninguém fará o trabalho no lugar dos bielorrussos. Serão os bielorrussos na Belarus, os que terão que derrubar o regime de Lukashenko.

Libertação “de dentro”

Nesse momento, ninguém formula tal cenário, visto que praticamente há uma supressão do movimento de massas no país. Manifesta-se no pessimismo que muitos têm sobre as perspectivas da Belarus. Porque se apenas se fechar dentro da Belarus, vai ver só uma imagem: o fortalecimento da repressão do regime e que a Rússia devora Belarus. Isto provoca apatia, leva a baixar os braços, a retrair-se em si mesmo. E isso é tudo o que Lukashenko quer.

Mas a luta não começa nem termina dentro de Belarus. Há uma grande guerra na Ucrânia, a Belarus é um elo importante na cadeia desta guerra e seu resultado é de importância política fundamental para a causa da Belarus. As derrotas de Putin na Ucrânia tornam o regime de Lukashenko cada vez mais vulnerável, apesar da aparência que o regime cria.

Um único processo para a libertação da Ucrânia e da Belarus

Na realidade, a queda da ditadura de Lukashenko, com a expulsão dos ocupantes russos e a derrota de Putin na Ucrânia são um único processo. O aparato estatal bielorrusso caminhará com uma “coleira cada vez mais curta” na mão de Putin. De fora ninguém nos libertará. Mas inclusive dentro a Belarus não estaremos sós. É impossível prever se os ucranianos vencerão primeiro e depois derrubaremos o regime, ou se derrubaremos o regime e desta forma ajudaremos os ucranianos. Não há tal ordem estabelecida. Sim, pode-se dizer com certeza que cada vitória dos ucranianos contra Putin já debilita Lukashenko e facilita a libertação da Belarus. A solidariedade do povo bielorrusso para com os ucranianos e a recusa de lutar contra eles, por ordem de Putin e Lukashenko, já está ajudando os ucranianos a ganhar.  Mas organizar a resistência contra o regime dentro da Belarus pode fazer ainda mais, e esta é nossa tarefa principal.

Não há motivos para pessimismo na Belarus hoje. Se observarmos todo o panorama da luta na região, será possível entender a conexão entre as batalhas na Ucrânia e a Belarus pela libertação de nossos países e nos daremos conta de que não vai mal. E baixar os braços neste momento é dar uma chance a Putin e Lukashenko. Para nós, bielorrussos comuns, não é momento de esperar por tempos sombrios. Pelo contrário, precisamos nos comunicar e nos preparar para importantes lutas em nosso país em um futuro muito próximo.

Glória à Ucrânia! Viva Belarus!

Tradução: Lilian Enck

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