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sexta-feira, abril 19, 2024

Para onde vai a China?

No último mês ocorreram numerosas rebeliões populares que se estenderam por várias cidades e regiões da China contra as duríssimas medidas restritivas para a população devido à política “Covid 0” aplicada pelo governo chinês. Pela importância política e econômica da China no mundo, tudo o que ocorre nesse país tem significado internacional. Neste caso, trata-se da mais importante rebelião popular na China desde as mobilizações da Praça Tiananmen (1989). Quais são as possíveis perspectivas da situação?

Por: Alejandro Iturbe

Desde a restauração capitalista no país, iniciada em fins da década de 1970 sob a liderança de Deng Xiaoping[1],  a China teve um importante desenvolvimento econômico. Desenvolvimento que se acelerou depois da derrota do processo de Tiananmen já que afluíram ao país um volume de investimentos estrangeiros nunca visto antes na história.

Esses investimentos estavam dirigidos para a produção industrial e aproveitavam dois fatores centrais. O primeiro era a “estabilidade política” que o regime ditatorial do Partido Comunista Chinês (PCCh) garantia. O segundo era um gigantesco exército industrial de reserva proveniente da população expulsa do campo, forçada a migrar para as cidades, discriminada pelo uso do  houkou (passaporte interno obrigatório) e, nessas condições, obrigada a aceitar empregos de baixíssimos salários e duríssimas condições de trabalho de superexploração (estima-se que cerca de 200 milhões de pessoas migraram do campo para as cidades).

Nesse processo, a China deixou de ser um país de base agrária, se transformou em uma economia industrializada e se urbanizou aceleradamente, especialmente nas cidades do litoral e do sul, nas quais se concentram os núcleos industriais. Várias delas viveram explosões demográficas que as transformaram em cidades gigantescas.

O regime político continuou sendo uma ditadura do PCCh que, por sua vez, foi se fechando cada vez mais em sua cúpula, e por fim na figura de Xi Jinping[2]. Em vários artigos denominamos esta combinação entre as bases econômicas e sociais do país e seu regime político como uma “ditadura capitalista disfarçada de ‘vermelho’” que tenta controlar todos os aspectos da vida de sua população, especialmente da classe operária [3]. Esta caracterização nos opõe a aqueles que definem que na China existe o “socialismo de nossos dias” ou um “regime social intermediário” (nem capitalista nem socialista)[4].

Uma gigantesca classe operária

Como resultado deste desenvolvimento econômico, há atualmente no país mais de 500 milhões de trabalhadores/as e mais da metade deles/as são operários industriais [5]. Esta quantidade de operários industriais impacta. Mais ainda se considerarmos que em 2008 o conjunto dos países da OCDE (os países mais desenvolvidos do mundo) totalizavam 131 milhões. Ou seja, falamos da maior classe operária e do maior proletariado industrial do planeta, o que dá pleno significado à frase “A China é a fábrica do mundo”.

Este proletariado trabalha em indústrias com diferentes tipos de proprietários: aquelas que pertencem diretamente às multinacionais (como a GM e a Toyota), as que são propriedade da burguesia de origem chinesa que fugiu da China em 1949 e se radicou em outros países e territórios (como a Foxconn que é taiwanesa), as que pertencem a burgueses chineses associados ao regime (como a Huawei), muitas empresas chinesas “provedoras cativas” das grandes multinacionais (como as que fabricam para Walmart) e, finalmente, o grande conglomerado de empresas do Estado (mineração, petróleo, petroquímica, siderúrgica, construção, ferrovia e portuário naval).

A burguesia e o regime chineses procuram gerar divisões neste gigantesco proletariado. Em primeiro lugar, através do houkou, que prejudica os trabalhadores migrantes do interior, já que devem aceitar níveis salariais mais baixos, piores condições de trabalho, e são discriminados em questões centrais como saúde e habitação. Ao mesmo tempo, isto os transforma, muitas vezes, na vanguarda das exigências e das lutas nas empresas. Em segundo lugar, entre os trabalhadores das empresas estatais (com salários melhores e maiores privilégios). Em terceiro lugar, por idade: muitas empresas privadas não contratam trabalhadores/as de mais de 30 anos e os/as despedem ao chegar a essa idade, se não acessaram cargos de supervisão.

O concreto é que, principalmente nas empresas privadas, trata-se de um proletariado jovem, em especial nas indústrias de maior tecnologia. Um estudo sobre várias grandes plantas terminais automotrizes dava uma idade em média de 24 anos[6]. Ao mesmo tempo, surge desse informe que todos os trabalhadores dessas plantas têm, no mínimo, 12 anos de estudo [escola secundária completa] e muitos têm dois anos adicionais de estudos técnicos. Tomada de conjunto, a classe operária chinesa tem um nível educativo crescente. Além disso, nas indústrias de maior valor agregado, os estudos secundários são um requisito para ser contratado.

Tal como destacamos em um artigo de 2015: “É importante compreender que parte importante da classe operária industrial mudou seu caráter. Já não se trata da geração recém chegada do campo mas de seus filhos, já criados nas grandes cidades, com melhores níveis de educação e maiores aspirações sociais”. É uma consideração essencial para compreender a situação atual e suas perspectivas.

O motor foi a rejeição à repressão pela “Covid 0”

Esta série de rebeliões eclode pela rejeição da população à política denominada “Covid 0” aplicada pelo regime chinês desde o início da pandemia e que se manteve desde então. Na maioria dos países imperialistas e em grande parte do mundo, as burguesias e seus governos promoveram, primeiro, uma gradual “normalização” das atividades [7], e depois “decretaram” o fim da pandemia e sua “gripalização” [8]. Foi sua forma de retomar a plena atividade econômica e, com ela, recuperar os níveis “normais” de exploração dos trabalhadores e de seus lucros.

A burguesia e o regime chineses, ao contrário, mantiveram por quase três anos, uma política centrada basicamente no isolamento e no confinamento das empresas, cidades e regiões onde os surtos ocorreram. Poderia se dizer que se trata de um “excesso burocrático” por uma preocupação com a saúde da população. Entretanto, não é assim. Apesar de serem fabricadas no país várias vacinas de uso internacional, nunca se aplicou um critério de “vacinação obrigatória” e os níveis de porcentagem da população vacinada são baixos em relação a outros países. O regime afirmava “ter contido” a pandemia[9].

Por sua vez, quando ocorria um contágio em uma grande fábrica, os trabalhadores eram “confinados” e obrigados a continuar trabalhando, inclusive os contagiados. Em outras palavras, a preocupação do regime e da burguesia chineses não era a saúde dos trabalhadores e da população, mas manter os altíssimos níveis de superexploração. Nesse contexto, as medidas da política “Covid 0” transformaram-se em uma exacerbação da repressão sobre a população submetida ao controle ditatorial que o PCCh exerce.

As rebeliões expressam uma raiva profunda

Embora estas rebeliões ocorram contra a política do “Covid 0”, são uma expressão de um substrato prévio e de várias “raivas acumuladas” por muito tempo entre os trabalhadores e a população chinesa.

Em primeiro lugar, na situação geral da classe trabalhadora, seus baixos salários, suas duríssimas condições de trabalho, e a extrema dificuldade de criar sindicatos independentes do regime ou de fazer greves para lutar por suas demandas. Já em 2014-2016 houve uma importante onda de greves de fábricas ou empresas[10] que teve, como contexto, uma situação de crise econômica e imobiliária [11]. A situação da classe operária chinesa piorou com a pandemia e agora temos também um contexto de crise econômica e imobiliária que é superior à de 2014-2016[12].

Um exemplo desse importante componente é o ocorrido na gigantesca planta da empresa Foxconn, na cidade de Zhengzhou, localizada no que é conhecido como “Foxconn City”, uma verdadeira cidade murada na qual seus trabalhadores (mais de 200.000) trabalham em condições de semiescravidão. Milhares fugiram do “confinamento” e a empresa contratou substitutos prometendo-lhes bônus e prêmios adicionais, que não cumpriu. Nova “fuga” de trabalhadores e duríssimos choques com os guardas de segurança internos e a polícia, no exterior da “City”[13].

Tal como informa outro artigo publicado neste mesmo site, “Estes protestos operários não foram os únicos. Na semana anterior, uma multidão de trabalhadores migrantes protestou contra a escassez de alimentos no distrito industrial de Haizhu, no Cantão, onde 1.8 milhões de operários foram confinados durante três semanas devido à política de “Covid 0” [14].

À esta presença dos trabalhadores se incorpora a luta de uma das nacionalidades oprimidas pelo regime de Beijing: os uigures. São um povo de cerca de 10 milhões de pessoas na China, de origem étnica, linguística e cultural próprias, diferente dos chineses que habitam a província de Xinjiang, no extremo ocidental do país. Chamam seu território Turquestão Oriental ou Uiguristão e lutam pela sua independência, que é negada pelo regime chinês. Foi nas cidades desta região que se iniciaram as rebeliões que depois se estenderam a outras regiões do país.

O inimigo é a ditadura

O que unifica todas as exigências é a grande raiva subjacente contra o regime ditatorial e repressivo do PCCh. Ou seja, a carência absoluta de qualquer liberdade democrática, na qual o partido decide tudo (na realidade, agora, Xi Jinping). Uma ditadura que, como vimos, está a serviço de uma feroz exploração capitalista a serviço dos burgueses imperialistas e chineses.

Uma parte da imprensa imperialista quer apresentar o que ocorre como o resultado de uma ação individual: a de Peng Lifa, um homem que, em meados de outubro passado, subiu em uma ponte em Beijing para pendurar cartazes com reivindicações democráticas, pouco antes de ser detido pela polícia. O chamam de “o homem que acendeu a faísca em meio à obscuridade” ou “profeta”[15]. Várias de suas reivindicações são agora entoadas nas rebeliões: “Queremos comida…”, “Queremos reformas…”, “Queremos liberdade, não confinamentos”, “Queremos dignidade, não mentiras”, “Queremos votar”.

Esta imprensa imperialista ama os “heróis solitários que lutam contra os moinhos de vento”. Tal como vimos, o processo de rebeliões se iniciou com a luta massiva dos trabalhadores da Foxconn e do povo uigur. Entretanto, a “faísca” que Peng Lifa acendeu pegou fogo em um “pasto seco” e suscetível a incendiar-se. Uma onda de rebeliões que, caso se desenvolva, aponta diretamente ao regime e à sua derrubada. Não por acaso, nos cartazes mais radicais das mobilizações se lia: “Abaixo o traidor despótico Xi Jinping”[16].

Na realidade, para além das glórias do New York Times ao “profeta Peng”, a imprensa, a burguesia e os governos imperialistas estão muito preocupados com o que ocorre na China. Veem com simpatia que estas mobilizações desgastem e debilitem um pouco o regime ditatorial do PCCh. No entanto, lhes preocupa profundamente que esta perda de controle da situação e, muito mais ainda, que a situação se transforme em um processo revolucionário aberto que possa derrubar esse regime.

Por um lado, como analisa um artigo do jornal argentino de direita La Nacióntodos têm consciência de que uma derrubada brutal da economia do gigante asiático teria consequências catastróficas no equilíbrio mundial” [17]Por outro, como um componente essencial da preocupação: “A sociedade civil está em ebulição”. A conclusão é: “Se o povo se sentir galvanizado, a mobilização poderia continuar crescendo e tudo dependerá da resposta que o governo central decidir dar: entre brutalidade e negociação”.

As perspectivas

Muito mais preocupado está o próprio regime chinês. As características destas rebeliões, muito mais extensas, profundas e espontâneas que outras anteriores, as tornam, para a ditadura, muito mais perigosas e difíceis de controlar. Com certeza, vai continuar com sua dura repressão seletiva aos ativistas que conseguir identificar, como Peng Lifa. Mas uma resposta repressiva massiva pode agravar ainda mais o quadro, se não conseguir frear o processo.

Por isso, sua primeira resposta tem sido “afrouxar” algumas medidas da política do “Covid 0”, em uma tentativa de descomprimir um pouco as tensões[18]. Este fato representa um passo atrás do regime e, ao mesmo tempo, um primeiro triunfo (ainda que seja muito parcial) do movimento de massas. O regime conseguirá descomprimir e tranquilizar um pouco as coisas? Ou, pelo contrário, as massas não se darão por satisfeitas e, sentindo-se fortalecidas, irão buscar mais? A realidade nos dirá qual destas perspectivas poderá ocorrer.

Entretanto, qualquer que seja a alternativa que se dê, as condições objetivas subjacentes que geraram esta onda de rebeliões permanecem intactas. O regime ditatorial chinês parece muito forte e “eterno”. Mas está montado sobre um vulcão em atividade e o que estamos vendo são apenas as primeiras manifestações de uma possível grande erupção.

Consideramos vigente o que dissemos em 2015, “O grande problema para o regime e a burguesia da China é que não existem no país mecanismos de mediação que lhes permitam hoje amortizar ou desviar estes possíveis choques, ou canalizar essas aspirações. […] E a burguesia (e a nova pequena burguesia na qual pode se apoiar) são débeis em tamanho frente à imensa classe trabalhadora e o campesinato pobre. Ou seja, seria um enfrentamento que pode ocorrer ‘em bruto’” [19].

Até agora, o regime ditatorial não deu nenhuma mostra de tentar fazer uma “abertura controlada”, nem sequer parcial e, se tentar no futuro frente a uma “erupção geral” pode ser que seja tarde demais e se veja atropelado pelo próprio processo de ascenso revolucionário.

Nestas condições, frente a uma dinâmica deste tipo, tem, com certeza, a alternativa de tentar o esmagamento repressivo massivo como fez com o movimento de Tiananmen em 1989, e para isso conta com poderosas forças repressivas. Mas, a realidade social do país é hoje muito diferente daquela da época Tiananmen: agora deverá enfrentar uma classe operária jovem e de dimensões colossais. É impossível prever os altos e baixos que esse processo terá, e seus ritmos, mas esse choque é, em grande medida, inevitável.

Frente a esta perspectiva e às rebeliões atuais, a LIT-QI propõe um programa de intervenção para a China centrado em Abaixo a ditadura de Xi Jinping!, que articule as reivindicações democráticas e as do movimento operário na dinâmica da revolução permanente, no marco da estratégia da tomada do poder e da construção de um novo Estado operário no país.


[1] Ver La restauración capitalista en China – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)

[2] Ver https://litci.org/pt/2022/10/22/20o-congresso-do-partido-comunista-da-china-nao-traz-surpresas-e-mantem-xi-jinping-no-poder/

[3] https://litci.org/pt/2019/10/15/a-china-e-uma-ditadura-capitalista-disfarcada-de-vermelha/

[4] https://litci.org/pt/2022/01/15/china-um-regime-capitalista-o-socialismo-de-nossos-dias-ou-um-regime-social-intermediario/

[5] Ver Un estudio sobre la clase obrera china – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)

[6] CHEN, Vincent; CHAN, Anita; Regular and Agency Workers: Attitudes and Resistance in Chinese Auto Joint Ventures; Revista China Quarterly 224 (marzo, 2018).

[7] No hay una nueva normalidad ¡Basta de naturalizar la muerte! – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)

[8] Ómicron: ¿oleada final o pandemia eterna? – Liga Internacional de los Trabajadores (litci.org)

[9] ¿Por qué China no va a vacunar contra el Covid-19 a toda su población? (eluniversal.com.mx)

[10] Ver a análise do artigo da nota 5.

[11] https://litci.org/pt/2015/10/19/certezas-e-duvidas-diante-da-crise-economica-na-china-2/

[12] https://litci.org/pt/2021/09/27/provavel-colapso-da-evergrande-escancara-o-capitalismo-chines/

[13] Ver https://litci.org/pt/2022/11/28/protestos-operarios-e-populares-desafiam-a-ditadura-na-china/ e o vídeo https://www.facebook.com/watch/?v=120560359999257 (não mais disponível)

[14] https://litci.org/pt/2022/11/30/a-china-vive-dias-turbulentos-de-desafio-ao-governo/

[15] China’s Protest Prophet – The New York Times (nytimes.com)

[16] Idem

[17] Occidente, entre el entusiasmo y el temor por el impacto de las protestas en China – LA NACION

[18] China abandona algunas medidas clave de su política “cero-COVID” (eldiarioar.com)

[19] Ver artigo da nota 11.

Tradução: Lilian Enck

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