Sri Lanka| Quais são as perspectivas depois da destituição do presidente Rajapaksa?
Há poucas semanas, os trabalhadores e o povo de Sri Lanka ocuparam a residência presidencial e obrigaram o ex presidente Gotabaya Rajapaksa a renunciar e fugir do país. Foi a culminação de vários meses de greves e mobilizações que a repressão não conseguiu derrotar[1].
Por: Alejandro Iturbe
Este processo de luta no Sri Lanka não ocorreu como um fato isolado, mas se soma às outras respostas dos trabalhadores e das massas no mundo frente aos ataques do capitalismo: Equador, Panamá, as mobilizações das mulheres estadunidenses frente ao ataque ao direito ao aborto, a greve dos ferroviários britânicos e outras na Europa e, como um fato muito importante, a continuação da resistência ucraniana à invasão russa[2].
Nesse contexto, o processo de luta do Sri Lanka, se apresenta como um dos mais avançados: os trabalhadores e as massas arremeteram contra diversas instituições do Estado e derrubaram o Presidente. Ou seja, levantaram objetivamente o problema do poder no país. Por isso, para os lutadores e revolucionários é muito importante estudá-lo e compreendê-lo, analisar suas perspectivas e formular propostas para que este processo avance.
Neste sentido, lemos com muito interesse o artigo “Sri Lanka: acabou o jogo para os Rajapaksa” escrito por Balasinghan Skanthakuma, um militante cingalês, residente em Colombo (capital de Sri Lanka), membro do Comitê pela Anulação das Dívidas Ilegítimas do Sul da Ásia e integrante da Associação de Ciências Sociais daquele país[3].
O artigo faz uma extensa e vívida descrição do processo de luta, que fornece informação muito valiosa (que não encontramos na imprensa burguesa) para aqueles que o estudamos e tentamos analisá-lo do exterior. Ao mesmo tempo, devemos considerar que a revista Viento Sur expressa, embora oficiosamente, as análises e posições do Burô Político da IV Internacional, nome atual da corrente que, no passado, era conhecida como SU (Secretariado Unificado). Por exemplo, desde sua aparição em 1991, publicou numerosos artigos de dirigentes desta organização como o falecido Daniel Bensaïd e Gilbert Achcar[4]. O artigo de Balasinghan Skanthakuma expressa enfoques e propostas que concordam com essa visão. É com elas que queremos debater.
“Revolta” ou processo revolucionário?
O primeiro debate surge a partir da definição do que está ocorrendo no Sri Lanka. Para o autor do artigo mencionado trata-se de uma “revolta popular”, para nós, de um processo revolucionário ou de uma revolução em curso. Para essa definição, consideramos o critério usado por León Trotsky no Prólogo de seu livro História da Revolução Russa:
“O traço característico mais indiscutível das revoluções é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Em tempos normais, o Estado […] está acima da Nação; a história corre a cargo dos especialistas deste ofício […]. Porém, nos momentos decisivos, quando a ordem estabelecida se torna insuportável para as massas, estas rompem as barreiras que as separam da arena política, derrubam seus representantes tradicionais e, com sua intervenção criam um ponto de partida para um novo regime. Deixemos para os moralistas julgar se está correto ou não. Para nós basta tomar os fatos tal como nos brinda o processo histórico. A história das revoluções é para nós, acima de tudo, a história da irrupção violenta das massas no governo de seus próprios destinos (negrito nosso)[5].
Com base nestas considerações de Trotsky, é evidente que no Sri Lanka há um processo revolucionário em curso. Podemos e devemos analisar suas características específicas e, em especial, suas debilidades objetivas e subjetivas (como a ausência de organismos de duplo poder, a extrema debilidade de uma alternativa de direção revolucionária ou as ilusões das massas na democracia burguesa) porque a burguesia e seus agentes no movimento usam essas debilidades para criar armadilhas que tentam desviar e frear este processo revolucionário. Somente a partir desta compreensão geral é que uma organização revolucionária pode orientar-se, tanto no curso profundo dos acontecimentos como em cada um dos momentos específicos, para evitar que o processo seja desviado e, pelo contrário, avance. O que inclui, como uma questão essencial, o combate a essas armadilhas.
Não se trata de uma questão terminológica. A definição do ocorrido como “revolta” remete a uma etapa da luta que permanece em um choque transitório com o poder do Estado. Um processo revolucionário, pelo contrário, propõe o problema objetivamente de qual classe ou setores sociais devem governar. Ou seja: quem deve ter o poder do Estado. Como dizia Trotsky, as massas “com sua intervenção criam um ponto de partida para um novo regime”.
O movimento Luta Popular
O artigo de Balasinghan Skanthakuma argumenta que o protagonista e impulsionador central do processo que levou à queda de Gotabaya Rajapaksa foi “O movimento cidadão de Sri Lanka, chamado Janatha Aragalaya (Luta Popular)”. Apresenta uma cronologia pormenorizada de suas atividades, que começaram com “protestos em pequena escala de pessoas que se reúnem toda noite ou semanalmente em seus bairros para segurar cartazes, agitar a bandeira nacional e entoar consignas contra o governo”, e então instalaram “um lugar permanente de protesto, a chamada GotaGoGama (Vila Gota Go), adjacente à sede da Presidência” e, finalmente, deu um salto em sua capacidade de convocação até chegar a “Mais de 100.000 pessoas, de todas as classes sociais, géneros, etnias, idades, crenças religiosas e convicções políticas[que] convergiram na capital…”para culminar na derrubada do Presidente.
Também apresenta uma descrição geracional e social dos ativistas deste movimento: “a idade de seus componentes oscila em sua maioria entre os 20 e os 40 anos, e são autônomos e aspirantes a profissionais, mas também jovens da classe trabalhadora e estudantes da classe média baixa”.
E também alguns elementos sobre sua visão política e econômica: “Não critica nem defende o capitalismo, nem sequer o neoliberalismo. No máximo, está a favor dos serviços de saúde e educação gratuitos e dos programas sociais, que são o que resta do Estado de bem estar social do Sri Lanka. Mas, sobretudo, o movimento reflete a ideologia dominante em sua adaptação e normalização da liberalização econômica: mercados desregulados, preços fixados por cartéis, privatização, investimento estrangeiro e crescimento promovido pelas exportações”. Além disso, “é apartidário” e “rechaça todos os partidos representados no parlamento’. Finalmente, “se orgulha de ser não violento”.
Nesse contexto, existe um setor da esquerda organizado “principalmente o Janatha Vimukthi Peramuna (JVP, Frente de Libertação dos Povos) [NdA, ao qual nos referimos em nosso artigo anterior] e sua cisão Peratugami Samajawadi Pakshaya(PSP, Partido Socialista de Vanguarda)… não diretamente como partidos mas através de suas alas juvenis e estudantis…”. Especialmente através da “presença constante” da Federação Interuniversitária de Estudantes (IUSF), com influência de ambas as organizações.
O artigo nos fornece informação muito valiosa sobre o processo que levou à derrubada de Rajapaksa, que conhecíamos muito pouco. Sem dúvida Luta Popular desempenhou um papel muito ativo e importante. Ao mesmo tempo, permite esboçar uma caracterização de que este movimento expressa basicamente setores médios jovens que sofrem a crise do capitalismo semicolonial cingalês e suas instituições mas que, embora tenham demonstrado que estão dispostos a lutar e defender seus direitos, se propõem a fazê-lo no marco do atual sistema e suas instituições. Ou seja, não mudá-lo mas sim “melhorá-lo”.
A importância do papel da classe operária
É verdade que o próprio artigo reivindica a entrada no processo de sindicatos “independentes” das influências dos partidos burgueses majoritários “como o de Bancários do Ceilão (CBEU) e o de Trabalhadores Industriais e Gerais do Ceilão (CMU), junto com o de Professores do Ceilão (CTU) e outros… que participavam nos protestos”. Reconhece que “o governo foi sacudido por estas ações, que conseguiram um amplo apoio dos trabalhadores do setor da administração, saúde, transportes e serviço postal…e das trabalhadoras das zonas francas”.
Por isso, “O poder da classe operária para paralisar a atividade comercial e alterar a normalidade era uma ameaça imediata maior para o Estado do que os protestos juvenis e estudantis. A resposta do Estado foi impor a lei de emergência e ditar serviços mínimos para que a greve fosse ilegal. Entretanto, isso não amedrontou os sindicatos nem diminuiu seu êxito”. Não por acaso a mídia internacional se referiu ao processo do Sri Lanka tomando como referência estas greves que reivindicavam explicitamente a renúncia de Gotabaya[6].
Com base em toda a informação que recebemos (inclusive a que Balasinghan Skanthakuma nos fornece), acreditamos que o movimento Luta Popular foi a “faísca” de um processo que dá um salto com a entrada da classe trabalhadora a partir de suas estruturas e com seus métodos de luta. A classe operária pode ser menos explosiva que outros setores sociais para responder aos ataques que recebe. Mas quando o faz, sua luta tem um impacto muito superior sobre o capitalismo e seus governos.
Para nós, com a entrada massiva dos trabalhadores cingaleses há uma mudança qualitativa e positiva do caráter do processo: o centro real do mesmo passou a ser a classe operária e não o movimento Luta Popular. Para o autor do artigo com o qual debatemos, pelo contrário, o centro continua sendo este movimento e a entrada dos trabalhadores (com toda a importância que ele reconhece) é um fator, em última instância, complementar. Não é um debate ocioso: é essencial para compreender as possíveis dinâmicas do processo, por um lado, e as tarefas que nós revolucionários temos que fazer entre os trabalhadores e as massas para que o processo avance, por outro.
A gênese do processo
Neste ponto, começaremos por nos focar em apresentar, resumidamente, nossas próprias análises, que já foram expostas em artigos anteriores[7].Definimos que o Sri Lanka é um país capitalista semicolonial pobre, de pouco desenvolvimento industrial. Exporta produtos agrários e importa produtos industriais, uma parte dos alimentos que consome e, essencialmente, o petróleo para refinar combustíveis e gerar energia. Em 2021, o país registrou um déficit de sua balança comercial de 8,135 bilhões de dólares, cerca de 9,63% de seu PIB, muito superior ao registrado em 2020. Em anos anteriores, o “déficit de caixa” do país era compensado em parte pelas receitas do turismo (12% do PIB), mas sofria uma pressão negativa pelo pagamento da crescente dívida externa.
As diferentes frações da burguesia cingalesa e suas expressões políticas, como o SLFP, o SLPP dos Rajapaksa e o UNP de Ranil Wickremesinghe são parte e defendem esta situação de semicolonização. Nesse marco, disputam a parcela cada vez mais escassa da renda nacional que fica no país, através dos processos eleitorais e do controle dos governos. Enquanto isso, para tentar manter este modelo de acumulação capitalista semicolonial em crise funcionando e eles se enriquecendo, endividaram o país até limites impagáveis e atacam os trabalhadores e as massas com ajustes permanentes, inclusive o que representa a inflação. Nesse contexto, todas as instituições do regime (presidência, primeiro ministro, parlamento) são ferramentas a serviço desta semicolonização.
O clã Rajapaksa voltou ao poder em 2019 (com os irmãos Gotabaya como presidente e Mahinde como primeiro ministro), agora com seu próprio partido (antes integrava o SLFP). Após um fracassado governo de coalizão entre o SLFP e o UNP, obtiveram uma vitória esmagadora: além da presidência, seu partido obteve 145 dos 225 deputados. O SLFP ficou muito reduzido e o UNP conseguiu apenas um deputado.
O governo dos Rajapaksa ficou preso no meio da “tempestade perfeita”: a pandemia derrubou o turismo e, com isso, não apenas cortou este importantíssimo fluxo de divisas, mas também provocou um forte desemprego. Isto gerou uma situação de impossibilidade virtual de pagar a dívida externa, por um lado, e, por outro, a extrema dificuldade de importar os produtos necessários. Isto gerou uma inflação crescente, o que foi agravado pelas consequências da guerra na Ucrânia e uma escassez cada vez maior de produtos imprescindíveis. Com isso, uma situação de intolerância por parte dos trabalhadores e das massas, o que originou o processo que estamos analisando.
Quando esta reação das massas estava se formando e se anunciava, os Rajapaksa sacrificaram Mahinde como primeiro ministro e nomearam para esse cargo Ranil Wickremesinghe (um velho político burguês, líder do UNP). Não era uma aliança necessária do ponto de vista institucional: o SLPP tinha ampla maioria parlamentar e a UNP uma representação quase nula. Significava a aliança entre duas frações burguesas para enfrentarem juntas o que vinha, e tentar detê-lo.
A manobra não deu resultado: os trabalhadores e as massas aprofundaram sua luta, atacaram dois símbolos do poder (a residência presidencial e a casa do primeiro ministro) e forçaram a renúncia do primeiro e sua fuga do país. Ranil Wickremesinghe se posicionou “pairando no ar” e colocou sua renúncia à disposição do Parlamento, que não a aceitou: primeiro o ratificou como primeiro ministro e depois o designou como presidente de “um governo de unidade nacional” que “continue as conversações com o Fundo Monetário Internacional” [8].
Em termos marxistas, diríamos que há um processo revolucionário em curso cuja força conseguiu um primeiro triunfo (derrubar um presidente) e assim gerou uma profunda crise no regime político burguês. Mas esta crise não alcançou o nível do que denominamos “vazio de poder burguês”, porque continuou existindo uma instituição desse regime burguês (o Parlamento) que, embora seja questionada, ainda é aceita pelos trabalhadores e pelas massas, e não foi atacada nestes meses de luta.
Em que momento estamos?
Podemos dizer que estamos em um momento de inflexão ou de transição ainda não definida da dinâmica do processo revolucionário, com a combinação de vários fatores que incidem em sentidos contraditórios ou antagônicos.
As diferentes frações da burguesia e seus partidos se unem para tentar desmontá-lo com três linhas de ação combinadas. A primeira é que, a partir de que o Parlamento como instituição é, por ora, aceito pelas massas, podem recompor o regime burguês em seu conjunto e ter uma relação “normal” deste regime com as massas. Ou seja, de subordinação por parte destas.
A segunda é tentar convencer os trabalhadores e as massas de que, com a queda de Gotabaya Rajapaksa “o problema acabou” e que a única saída para o país é “continuar as conversações com o FMI”. Ou seja, manter o modelo de acumulação semicolonial do país, do qual se beneficiam. A terceira, se esta segunda tentativa fracassar e os trabalhadores e as massas voltarem à luta, é preparar-se para reprimir já que o aparato repressivo, embora superado pela força das greves e das mobilizações, não foi quebrado. Por isso, se mantém o Estado de Emergência.
No campo dos trabalhadores e das massas, o central é que vêm obtendo um triunfo com sua luta. Ou seja, seu ânimo está fortalecido porque comprovaram que, com sua “intervenção direta”, podem incidir no curso dos acontecimentos. Ao mesmo tempo, a própria realidade demonstrará rapidamente que a saída de Rajapaksa não é suficiente e que o governo de Ranil Wickremesinghe (respaldado pelo Parlamento) continuará os ataques e, com isso, a necessidade de responder. Esses são os fatores que podem impulsionar a continuidade do processo de greves e mobilizações, inclusive em um nível superior de luta.
Entretanto, esta análise seria parcial se não considerássemos as confusões e falsas ilusões que – segundo a informação que usamos sem estarmos presentes no próprio terreno – tem a consciência do movimento de massas. A primeira e fundamental é que parece não ter compreendido todavia que o problema de fundo no Sri Lanka é a necessidade de romper com o domínio semicolonial, seus agentes nacionais e com o conjunto das instituições que estão a seu serviço (inclusive o Parlamento).
Algo que se expressa, concretamente, na necessidade imediata de deixar de pagar a dívida externa e romper com o FMI, como primeiro passo nessa ruptura. Segundo o artigo de Balasinghan Skanthakuma,“Esta crença de que o recurso ao FMI não apenas é inevitável, mas inclusive desejável, se converteu em senso comum dentro da sociedade política e civil” e é um “consenso entre todas as classes sociais”. É muito claro que todas as frações da burguesia cingalesa querem usar esta falsa ilusão dos trabalhadores e das massas a seu favor e, à distância, nos é muito difícil saber como a experiência recentemente vivida incidiu neste ponto sobre a consciência das massas. O que é evidente é que, se não avançarem nessa compreensão, suas lutas (por mais contundentes que sejam) ficarão condenadas a golpear a superfície (inclusive rompê-la), mas não os alicerces dos problemas que vivem.
O segundo ponto está intimamente relacionado ao primeiro. Os trabalhadores e as massas parecem não ter compreendido que o conjunto do regime político democrático burguês cingalês (inclusive o Parlamento) está formado por instituições que agem como agentes da semicolonização. Por isso, atacaram o presidente e o primeiro ministro mas não o Congresso. Questionam sua composição (aparecem cartazes que exigem “Fora os 225”) mas não a instituição como tal. Algo que, como vimos, também é aproveitado pelas diferentes frações da burguesia para mantê-lo em pé e tentar recompô-lo. Novamente, se os trabalhadores e as massas não avançarem na compreensão de que devem lutar contra o regime em seu conjunto, suas lutas serão condenadas a seguir derrubando presidentes para que o Parlamento nomeie outro, em um círculo recorrente.
Segundo as informações que dispomos, a maioria das direções que incidiram sobre o processo de luta (tanto Luta Popular como os dirigentes sindicais) acompanham estas falsas ilusões; alguns inclusive a promovem. Por isso mesmo, apoiando-se nos fatores que “empurram para frente” é uma obrigação dos revolucionários, concentrar sua agitação e sua propaganda imediata no combate contra essas falsas ilusões, para que os trabalhadores e as massas avancem para um nível superior de luta. Aí é onde entra, centralmente, o debate sobre as propostas que devemos fazer-lhes em relação às tarefas que devem enfrentar.
“Radicalizar a democracia”?
O artigo de Balasinghan Skanthakuma se localiza claramente no marco do movimento Luta Popular. É para esse movimento que realiza suas propostas e, ao mesmo tempo omite outras, adaptando-se às debilidades e falsas ilusões deste movimento.
Por exemplo, o Comitê pela Anulação das Dívidas Ilegítimas do Sul da Ásia que ele integra, propõe justamente “anular as dívidas ilegítimas” e lançou a campanha “Não se deve assinar um acordo com o FMI em Sri Lanka” [9]. Entretanto, nenhuma das duas propostas figuram em seu artigo, que se limita a constatar (e a lamentar-se) que as massas não compreendem assim. Dessa forma, o autor abandona qualquer combate político contra essa falsa ilusão e ganhar os trabalhadores cingaleses para essa luta que é de fato a central da realidade atual do Sri Lanka. O problema é mais profundo (também sua adaptação às debilidades do Luta Popular): em nenhuma parte do artigo aparece a definição do país como capitalista semicolonial e, portanto, a necessidade de lutar contra esta situação estrutural.
Ao abandonar qualquer luta programática contra o capitalismo semicolonial, o autor se limita apenas a fazer propostas para modificar as instituições do regime democrático burguês. Estas propostas se resumem em obter as “mudanças constitucionais exigidas pelo povo para limitar drasticamente os poderes executivos…como medida provisória para a abolição da onipotente presidência executiva”. Neste sentido: “A consciência democrática do movimento é alta. Há novas reivindicações sobre o direito de revogação dos representantes eleitos e o direito de celebrar referendos sobre assuntos de importância nacional”. Em outras palavras, suas propostas apontam para transformar um regime burguês presidencialista em um parlamentarista, ao estilo europeu ocidental, com alguns acréscimos como a “revogabilidade” e os “referendos”. É este o significado profundo de seu chamado final a “defender as conquistas deste momento e deste movimento”.
Para nós que acompanhamos há décadas as posições do Burô Político da IV Internacional (ex SU) e seu âmbito de influência, este programa totalmente limitado frente a um processo revolucionário (inclusive se é considerado uma “revolta”) não é uma surpresa: há muito tempo que esta organização abandonou a luta pela revolução socialista e limita suas propostas a “radicalizar a democracia [burguesa]”. Pode manter em seu nome as palavras IV Internacional mas sua política já não tem nada a ver com o trotskismo.
É verdade que, ao mesmo tempo, Balasinghan Skanthakuma reivindica corretamente que “os ativistas da Aragalaya prometeram manter sua oposição ao governo dirigido por Wickremesinghe, inclusive a ocupação dos acessos e os terrenos da sede da presidência e de outros lugares públicos em toda a ilha”. Mas a esta disposição de manter a luta propõe como objetivo apenas “radicalizar a democracia burguesa”.
Quais devem ser as propostas dos revolucionários?
Em um artigo anterior, já mencionado, dissemos que “ao formular as tarefas, teremos o cuidado que destacamos no início pela distância e pela não participação direta. Entretanto, ao mesmo tempo, existe toda uma experiência histórica, expressada em elaborações teóricas e programáticas do marxismo revolucionário”.
Nesse contexto, “Sri Lanka é um país capitalista semicolonial pobre que hoje vive uma terrível situação econômica e social (nem sequer pode comprar o petróleo que necessita) que aumenta os padecimentos cotidianos dos trabalhadores e das massas a um nível intolerável. Nestas condições, achamos necessário que, no curso da luta, as massas do Sri Lanka apresentem o que, em outros países, se denominou de um Plano Operário e Popular de Emergência que, com base nos recursos disponíveis, fixe prioridades em sua utilização; em primeiro lugar, a satisfação das necessidades urgentes dos trabalhadores e das massas (como as de alimentação e combustíveis)”.
“Entre outras medidas que aparecem como imprescindíveis, este plano deveria partir do Não ao Pagamento da Dívida Externa e o fim das “conversações” com o FMI e incluir a expropriação dos bens obtidos legal e ilegalmente pelo clã Rajapaksa e os outros clãs burgueses, a instalação de impostos progressivos à burguesia e o controle operário e popular da produção e a cadeia de comercialização”.
É evidente que as atuais instituições semicoloniais do país (inclusive o Parlamento) não estão dispostas a aplicar nenhuma dessas medidas. Talvez, se a luta impuser, se vejam obrigadas a aplicar parcialmente alguma delas. Mas será para ganhar tempo e voltar o quanto antes às “conversações” com o FMI, ou seja, com o imperialismo.
Por isso, um plano destas características só poderá ser aplicado em seu conjunto se os trabalhadores e as massas avançarem para a tomada do poder e a construção de um novo Estado, cujo acionar, como o próprio Plano, esteja destinado justamente a satisfazer suas necessidades mais imperiosas. Isto propõe uma tarefa ao mesmo tempo presente e futura: ao calor da luta, os trabalhadores e as massas precisam construir e centralizar organizações que, com um funcionamento baseado na democracia operária e popular, em primeiro lugar, mantenham e promovam a luta e, que, nesse processo de luta, avancem em sua consciência sobre a profundidade das mudanças que precisam (a tomada do poder para aplicar esse Plano de Emergência). Dessa forma, ao construir essas organizações democráticas de luta, os trabalhadores e as massas do Sri Lanka estariam construindo as instituições que constituiriam as bases de um novo tipo de Estado.
Mas este processo não ocorre no ar: a burguesia tentará evitá-lo com suas campanhas de confusão (apoiando-se nas falsas ilusões dos trabalhadores e das massas): por isso temos que combatê-las, como também aqueles que as repetem e difundem. Como dissemos, se isto fracassar, apelarão sem duvidar para a mais dura repressão. Uma realidade que não pode ser respondida com a “resistência pacífica”. Pelo contrário, exige abordar questões como a autodefesa das greves e mobilizações, e uma política de quebrar as forças da repressão pela sua base de soldados e suboficiais para que não reprimam e que uma parte deles passe para o campo dos trabalhadores e das massas.
No marco de participar e promover ativamente este processo, como trotskistas sustentamos que, como surge da experiência histórica, teórica e programática da Revolução Russa de 1917, é necessária a construção de um partido revolucionário que promova de modo consciente e consequente a luta até o final, ou seja, para a tomada do poder e a construção de um novo tipo de Estado. A partir da LIT-QI nos colocamos a serviço dessas tarefas.
[1] Ver https://litci.org/pt/2022/07/12/sri-lanka-uma-revolucao-em-curso-derruba-o-presidente-rajapaksa/ e https://litci.org/pt/2022/07/27/sri-lanka-a-segunda-vitoria-do-povo/
[3] https://vientosur.info/sri-lanka-se-acaboel-partido-para-los-rajapaksa/
[4] Para quem se interessar, o site da LIT-QI publicou recentemente uma polêmica sobre a guerra da Ucrânia com esta organização e Gilbert Achcar. Ver https://litci.org/pt/2022/06/12/67103-2/
[5] Extraído da versão León Trotsky (1932): Historia de la Revolución Rusa, Tomo I. (marxists.org)
[6] Ver, entre outros muitos artigos https://www.swissinfo.ch/spa/sri-lanka-crisis_una-huelga-masiva-y-protestas-contra-el-presidente-paralizan-sri-lanka/47573538
[7] Ver os artigos mencionados na nota 1.
[8] https://www.asianews.it/noticias-es/Colombo:-la-oposici%C3%B3n-propone-un-gobierno-de-unidad-nacional-56234.html
[9] Ver a página https://www.cadtm.org/Espanol
Tradução: Lilian Enck