O povo trabalhador do Paraguai mostra o caminho contra a pandemia
Os acontecimentos políticos que se desenvolvem no Paraguai desde o dia 5 de março, merecem a atenção de todas as organizações que se dizem pertencentes à classe trabalhadora na região e no mundo. A explosão social que atravessa o país expressa, neste momento, o ponto mais elevado de resistência, nas ruas, à política criminosa que os diferentes governos capitalistas aplicam face à pandemia de Covid-19.
Por: Daniel Sugasti
Todos os problemas que indignam o povo, que não parece estar disposto a abandonar as ruas diante dos primeiros retrocessos do governo colorado de Mario Abdo Benítez[1], já existiam antes da pandemia. O efeito combinado da dupla crise, sanitária e econômica, só os exacerbou até torná-los insuportáveis.
Durante os primeiros meses da pandemia, o caso paraguaio era mencionado como exemplo de contenção do vírus. O governo estabeleceu medidas de isolamento especialmente duras, como o toque de recolher ou o fechamento das fronteiras. Estas restrições à circulação surtiram efeito no contexto de uma população majoritariamente jovem (58% tem menos de 30 anos de idade) e um alto nível de ruralidade (38%).
Entretanto, a contrapartida da desaceleração dos casos de Covid-19 foi um aumento espantoso da crise social. O índice oficial do desemprego alcançou 8,2% em 2020, que no caso das mulheres significou 11,5%. Se no segundo trimestre de 2019 a taxa de emprego feminino alcançou 54,3%, no mesmo período de 2020 foi reduzida para 47,9%[2]. Em resumo, aproximadamente 707.000 pessoas, 19% da força de trabalho disponível, sofreram “problemas para o acesso ao trabalho”; uma cifra que abarca desempregados, subempregados e os contratos suspensos[3]. Sem medidas de assistência social significativas (o auxílio consistiu, basicamente, em 77 dólares para cerca de 300.000 famílias), a paralisia econômica causou estragos em um mercado de trabalho com alto índice de informalidade (70%).
Mesmo assim, até 8 de julho de 2020 morreram 20 pessoas por Covid-19[4]. Porém essa realidade começou a mudar quando, a partir de junho, as medidas de isolamento físico foram relaxadas, sobretudo a partir da exigência empresarial de “reabrir” a economia. Hoje a pandemia está fora de controle. Se em 14 de fevereiro deste ano foram contabilizados 599 casos, em 9 de março já eram 2.125 infectados[5]. O total de mortos sobe para 3.387[6]. Isso, com certeza, sem considerar os casos não registrados.
Isto levou a uma tragédia anunciada: o colapso do precário sistema de saúde pública. De acordo com dados de 2018, 73% da população não conta com nenhum tipo de cobertura médica. Na área rural, este indicador alcança 86%[7]. Em outras palavras, o povo pobre que sobrevive da informalidade está abandonado à sua própria sorte.
Para uma população de mais de sete milhões de pessoas, o Paraguai conta com 636 leitos de terapia intensiva. Mas nem todos os leitos contam com os medicamentos nem pessoal especializado indispensável. Existem apenas 200 médicos especializados em terapia intensiva. Remédios importantes para o tratamento de pacientes intubados, como atracúrio e midazolam, se esgotaram. O Ministério da Saúde não fez nenhuma licitação destes fármacos durante 2020. A primeira tentativa foi realizada na noite do último 5 de março, quando acontecia uma batalha campal em Assunção. Mas os preços aumentaram desmesuradamente. Se em 2019 uma ampola de atracúrio custou ao Estado 1,4 dólares, agora custa aproximadamente 10,7[8]. A isto se soma a especulação das empresas farmacêuticas, que simplesmente preferem fazer negócios com o setor privado, que paga mais. Nestas circunstancias, a saúde pública pode adquirir um lote, sem licitação, fornecido por uma única empresa Bioethic Pharma.
Em primeiro lugar, isto é o reflexo de uma política deliberada de destruição do sistema público de saúde. O país investe em saúde somente 3% do PIB, quando a OMS recomenda pelo menos 6%. Mas a coisa é ainda mais indignante quando toda a sociedade sabe que, há um ano, o governo de Marito (como é chamado no Paraguai) acordou um crédito internacional de 1.6 bilhão de dólares justamente para a compra de insumos e medicamentos. A pergunta que, com razão, percorre as ruas é: onde está esse dinheiro?
O colapso fez com que todos os gastos médicos recaíssem sobre as famílias dos pacientes internados. Nas semanas anteriores à explosão social, houve cenas dramáticas de médicos, enfermeiras, parentes de doentes que clamavam por insumos e medicamentos básicos, mas muito caros. O desespero cresceu e, com ele, o descontentamento. A humilhação cotidiana alimentava a raiva. Muitas famílias ficaram arruinadas. Por exemplo, um paciente pode chegar a precisar de até 40 ampolas de atracúrio diariamente, o que equivale a aproximadamente 705 dólares[9]. O salário mínimo, que na realidade é o “máximo”, mas serve como referencia, equivale a 336 dólares. Nos bairros, o povo organiza rifas, “polladas[10]” panelas comunitárias, e qualquer iniciativa solidária para ajudar as famílias que caem em desgraça. Muitos, sem saída, penhoraram telefones celulares. Houve casos mais extremos, como as denúncias de prostituição em frente aos hospitais ou da mãe que vendeu mal sua casa para cobrir os gastos da internação de seu filho, que acabou falecendo.
Em meio à barbárie, os medicamentos que faltavam nos hospitais apareciam no mercado ilegal, a preços indecentes. Drogas com selo do Ministério da Saúde ou do IPS (previdência social) e a advertência “venda proibida” eram comercializadas por farmácias próximas aos centros de saúde.
Este foi o terreno fértil para a fúria popular: fome, desemprego, colapso sanitário, negligência, corrupção descarada. O povo não tardou em realizar seu “julgamento político” contra o governo criminoso de Marito.
Embora o colapso dos hospitais tenha sido o detonante dos protestos, deve se considerar também a situação e a perspectiva da vacinação contra a Covid-19, já que esta é a única solução de fundo para a crise sanitária. A “gestão” dos recursos para os pacientes que precisam ser internados é fundamental, mas o vírus não será contido até que 70% da população esteja vacinada. O Paraguai é o país mais atrasado da região nesse sentido. Em 5 de março, o país contava com 4.000 doses do imunizante. Numa tentativa de conter as manifestações, o presidente recebeu um lote de 20.000 doses do Chile. Como são necessárias duas doses por indivíduo, isto dá para vacinar 12.000 pessoas, ou seja, nem sequer o pessoal da saúde.
Julio Borba, nomeado ministro da Saúde após a renúncia de Mazzoleni, declarou sua intenção de “apressar” a chegada de outras 36.000 doses até final de março, que correspondem à iniciativa Covax, liderada pela OMS. É tudo o que está previsto para tentar amenizar a crise. A situação é dramática: neste ritmo, o Paraguai vacinará (duas doses) 70% de sua população em julho de 2158[11].
Como afirma um comunicado do PT paraguaio “Isto não é uma campanha de combate a Covid-19, é uma farsa, uma tentativa grotesca de marketing político”[12].
Os protestos
A única alternativa capaz de mudar esta perspectiva sombria é a mobilização sustentada do povo trabalhador.
Somente com mais organização para a ação direta será possível vergar os assassinos em massa que governam o país. Não existe meio termo: ou eles, ou nós.
A mobilização não deve parar até que caia o governo de Mario Abdo Benítez, mas, no mesmo ato, devem ser derrotadas as manobras do ex-presidente Horacio Cartes e os interesses de todas as facções do Partido Liberal (PLRA), que procuram usurpar a luta justa das massas para melhorar sua posição no controle do Estado.
Neste sentido, é alentador que o repúdio popular não se limite a “Marito”, mas que abarque o magnata Cartes. Isto se expressa na consigna “ANR nunca mais”. Nos últimos dias, milhares de manifestantes protestaram em frente à sede do Partido Colorado e da mansão de Cartes. Ou seja, é evidente que a compreensão do problema não se reduz a interpretar que a crise atual deriva apenas da responsabilidade do atual governo e isto amplia o horizonte dos protestos.
A Associação Nacional Republicana (ANR-Partido Colorado) governa desde 1947, com exceção dos quatro anos de mandato de Fernando Lugo. Nesses 70 anos se transformou em um aparato poderoso, um partido-Estado que estende seus tentáculos para todas as esferas da vida. A ANR foi o partido da última ditadura, a do general Alfredo Stroessner (1954-1989), período nefasto no qual reinou a tríade Estado-FFAA- Partido Colorado. Em 1973, Stroessner assinou o tratado de Itaipu, que contempla a possibilidade de uma invasão militar ao território paraguaio e entrega a soberania energética do país à burguesia brasileira. Em 2019, Mario Abdo negociou um acordo sobre o preço da energia de Itaipu com o Brasil, completamente favorável aos interesses de Bolsonaro. A indignação tomou as ruas e esse escândalo quase custa o cargo ao presidente paraguaio. Salvou seu mandato por dois motivos: 1) Bolsonaro admitiu anular a ata entreguista para não perder um aliado na região. Ao mesmo tempo, foi detido no Brasil Darío Messer (o doleiro dos doleiros), o principal sócio para a lavagem de dinheiro de Cartes, que se referia a ele como “patrão”. Esta foi uma mensagem clara para Cartes do que poderia ocorrer com sua sorte se não chegasse a um acordo com Mario Abdo para acabar com a crise; 2) em consequência, a facção interna do Partido Colorado, liderada por Cartes retrocedeu na investida do impeachment, selando um pacto de impunidade entre dois setores do mesmo aparato mafioso[13].
A ANR é um chicote para o povo trabalhador, um resquício da ditadura. Sua saída do poder seria um triunfo democrático em si mesmo, muito profundo, para todo o povo. A facção de Horacio Cartes também merece atenção especial. Este personagem é o empresário mais poderoso do país, ligado a setores mafiosos. Há décadas é investigado internacionalmente por contrabando e todo tipo de atividade ilegal. Na atual crise, apesar de se enfrentar com a corrente interna de Marito, o ex-presidente o apoia ao não aderir à iniciativa de um impeachment, pois a bancada parlamentar de Cartes é decisiva para alcançar os 53 votos necessários na Câmara de deputados. Nesse sentido, se pode dizer que Mario Abdo é um refém de Cartes, que aumenta seu poder e o utiliza para obter cargos no gabinete e todo tipo de privilégios. As massas sabem que, em última instância, a cadeira presidencial é de Marito, mas quem tem poder é Cartes. Daí que, com justiça, está na mira dos manifestantes.
Mas um amplo setor vai mais além. O grito de guerra que percorre Assunção é o mesmo da revolução argentina de 2001: “fora todos, que não fique nenhum”. Esta bandeira, a principio, é progressiva porque expressa um profundo rechaço a todos os políticos e partidos burgueses tradicionais. É um sinal de profundo cansaço.
Os protestos são convocados diariamente. Uma juventude precarizada, sem perspectiva de futuro e cansada de tanta humilhação, tomam as ruas para dizer: “todos os dias até irem embora!”. A mobilização deve encarar a tarefa imediata do movimento social: Abaixo o governo de Mario Abdo Benítez! Nem Marito nem Cartes nem Llano, abaixo todas as opções capitalistas!
É necessário, para sustentar a mobilização, articular espaços de unidade de ação com funcionamento democrático. É urgente debater os rumos do movimento entre todos os setores, evitando a dispersão de forças. Só com organização será possível manter a pressão e resistir à repressão, inclusive avançando com medidas de autodefesa frente à repressão. E, o mais importante, é imperioso iniciar o debate sobre um programa de emergência econômico-social-sanitário, que parta da queda do governo, e avance para mudanças estruturais.
No que toca a crise sanitária, é urgente propor o confisco e estatização de todos os hospitais e serviços privados da saúde. A saúde não deve ser uma mercadoria. Isto é indispensável para centralizar todos os recursos (leitos, insumos, medicamento, pessoal especializado) em um único plano de combate ao Covid-19.
Deve-se levantar a bandeira de vacinas para todos e todas. Para isso, o movimento deve propor a quebra das patentes internacionais, controladas por poucas empresas imperialistas de biotecnologia, para que os imunizantes possam ser produzidos e distribuídos de acordo com a necessidade, não para o lucro de um punhado de bilionários.
Isto apenas começou. A perspectiva mais provável é o agravamento da pandemia nas próximas semanas. Existe um “alerta vermelho” que revelou que 99% dos leitos de terapia intensiva estão ocupados. Mais do que nunca será necessário enfrentar o governo, até derrubá-lo, e atacar os interesses do setor privado.
O PT, que participa das mobilizações com a mesma indignação que todos e todas, propõe que é necessário discutir este programa de emergência que coloca em perspectiva a construção de uma saída socialista frente à crise na qual os ricos e poderosos nos puseram. O crime social causado pela política dos governos diante da pandemia coloca como nunca a disjuntiva socialismo ou barbárie.
[1] Desde 5 de março caíram quatro ministros: saúde, educação, mulher, gabinete civil.
[2] Ver: <https://www.abc.com.py/edicion-impresa/suplementos/economico/2020/11/01/destacan-rapida-incorporacion-de-politicas-publicas-en-paraguay-frente-al-covid-19/ > .
[3] No terceiro trimestre de 2020, os desempregados eram 294.697, os subempregados chegavam a 301.488 e os inativos devido à pandemia atingiram 111.162, segundo a Pesquisa de Domicílios. Ver: <https://www.abc.com.py/nacionales/2020/11/13/desempleo-subio-a-82-y-afecto-a-295000-personas-en-el-tercer-trimestre-del-ano/>.
[4] Em junho de 2020,o Paraguai tinha uma taxa de dois mortos por milhão de habitantes, a mais baixa da América do Sul.
[5] Ver: < https://www.abc.com.py/nacionales/2021/03/09/se-confirman-otros-2125-casos-de-covid-19-y-17-muertes/>
[6] Dados da Universidade Johns Hopkins em 11/03/2021.
[7] Ver: < https://www.abc.com.py/edicion-impresa/economia/2019/12/03/solo-el-27-de-la-poblacion-accede-a-un-seguro-medico/>.
[8] Ver: < https://www.abc.com.py/nacionales/2021/03/09/salud-no-previo-compra-de-atracurio-y-ya-pago-hasta-g-70000-por-unidad/>.
[9] Ver: < https://www.hoy.com.py/nacionales/asegurados-de-ips-deben-comprar-medicamentos-vendidos-en-el-mercado-negro>.
[10] Atividade solidária de arrecadação de dinheiro vendendo frango, ndt.
[11] Ver: <https://covidvax.live/location/pry >, consultado em 10/03/2021.
[12] Ver: <https://litci.org/es/paraguay-fuera-marito-cartes-que-se-vayan-todos-ellos/>.
[13] Ver: https://litci.org/es/carta-abierta-de-un-paraguayo-a-la-clase-trabajadora-brasilena-sobre-itaipu/
Tradução: Lilian Enck