Hidrovia e Yacyretá: faíscas entre Argentina e Paraguai
O conflito diplomático entre a Argentina e o Paraguai que vem se desenvolvendo há semanas tem dois aspectos relacionados à interação entre ambos os países: o problema da energia, em torno da represa de Yacyretá e o dos pedágios da Hidrovia (rios Paraná e Paraguai). Ambas questões de grande importância em que, olhando um pouco mais além do que mostram, pode-se ver como os Estados nacionais de países semicoloniais como os nossos, agem como executores dos interesses das multinacionais.
Por: PSTU – Argentina
A relação da Argentina com o Paraguai teve vários marcos de enfrentamento em sua história. Sem dúvida o mais importante e dramático foi a guerra da Tripla Aliança (1864/1870) na qual morreram entre 60 e 69% da população paraguaia, e na qual o Estado argentino cumpriu um papel genocida.
A burguesia argentina sempre teve uma atitude de avassalamento do Paraguai, aproveitando-se de sua maior força para obter rendimentos (desenvolvendo mecanismos de opressão), o que a nível popular se traduz em xenofobia com a comunidade paraguaia.
Entretanto, agora não estamos diante de um gesto de soberania do Estado paraguaio, embora isso tenha inundado os discursos a respeito desse Governo, nem do Estado argentino. O que expressa a disputa são duas questões essenciais que levam a problemas de fundo de ambos os estados, servis às multinacionais. Vejamos.
A Hidrovia
Há tempos que vem se falando da Hidrovia na Argentina, já que em 2021 venceu a concessão à empresa belga que a administrava (desde 1995 a administração está privatizada) e ainda está suspensa uma nova licitação. Tem que se levar em conta que esta via fluvial, que tem 3400 quilômetros de longitude, concentra 60% do comércio exterior da Argentina e 70% das exportações paraguaias e fatura entre 200 e 300 milhões de dólares por ano.
O Paraguai reclama do pedágio que começou a ser cobrado (de 1,47 dólares por tonelada transportada) para manutenção de dragagem e balizamento (que foi terceirizado à empresa belga), sendo que das 153 empresas que seriam afetadas por ter que pagar esse imposto, 147 são de origem estrangeira, com grande predomínio dos capitais norte-americanos.
Por outro lado, o Estado Argentino impõe essa taxa, no contexto de buscar a entrada de dólares de variadas formas devido à situação na qual a economia do país se encontra e frente à queixa dos empresários da UIA-União Industrial Argentina, que defendem o pedágio, mas mantêm nas mãos do capital estrangeiro a imensa maioria dos portos da bacia (16 de 21). De fato, em 26 de novembro de 2020 saiu o decreto 949/20 que jogou por terra os anúncios de uma possível estatização, dando lugar a uma nova licitação privada, que ainda não está concretizada.
Ou seja, ambos os estados, têm o comércio exterior fluvial nas mãos das multinacionais (a maioria das quais se repetem nas duas frotas) e a disputa é em função de como cumprir melhor esse papel servil (e quem fica com as migalhas).
Yacyretá e o problema energético
Como represália, o Paraguai suspendeu a venda de sua parte da energia proveniente da hidroelétrica Yacyretá, entidade binacional que funciona desde 1995, cujo financiamento foi feito pelo Banco Mundial e é a maior provedora de energia elétrica do país vizinho (45%). O argumento é a dívida que o Estado argentino não vinha pagando pela parte da energia que compra do Paraguai (já que este não necessita da totalidade dos 50% que lhe corresponde, só consome 13%).
Esta situação revela não só a crise de dólares da economia argentina, mas também o problema da energia como um problema estrutural do país. Também se evidencia quando frente às altas temperaturas, o sistema elétrico entra em colapso em várias regiões diante das ondas de calor.
A privatização da energia elétrica imposta com as políticas entreguistas dos anos 90 tiveram consequências nefastas neste aspecto e converteram esta questão vital em uma grande negociação de diversas empresas, que se caracterizaram pelo desinvestimento tanto em matéria de geração, como de transporte e de distribuição da energia elétrica. Na Companhia Administradora do Mercado Atacadista Elétrico S.A. (Cammesa), que cumpre um papel fundamental na distribuição da energia no país, o Estado Argentino só intervém com 20%, e o resto são capitais privados. As de distribuição são capitais privados e têm dívida permanente que o Estado acaba absorvendo, além dos subsídios que lhes são outorgados direta ou indiretamente.
A soberania energética da qual tanto se fala, está muito longe de ser alcançada, principalmente porque a indústria energética está nas mãos das multinacionais e capitais privados.
Os interesses do povo trabalhador
O conflito diplomático entre a Argentina e o Paraguai não responde aos interesses do povo trabalhador de ambos os países. Os governos e estados representam os interesses dos setores de poder aos quais servem, que são os que nos exploram e oprimem em nossos países. Os trabalhadores argentinos e paraguaios têm que lutar para derrubar as multinacionais, e impor em nossos países outro modelo econômico que esteja a serviço das necessidades da população e não do lucro empresarial e das multinacionais. Algumas primeiras medidas nesse sentido seriam: a nacionalização e monopólio estatal do comércio exterior, para que o mesmo seja planificado em função das necessidades do povo trabalhador; expropriação de toda indústria agrícola, centro do comércio da Hidrovia; estatização da Hidrovia e de todos os portos da bacia, basta do lucro das multinacionais com nossos rios e recursos; estatização de toda indústria energética sob controle operário, por um plano de soberania energética a serviço do povo pobre em função das necessidades, contemplando o problema ambiental. Estas medidas deveriam fazer parte de um plano econômico operário que só um Governo dos trabalhadores, conquistado pela via de uma Revolução pode ser capaz de implementar. Para trilhar esse caminho, a solidariedade dos trabalhadores argentinos e paraguaios é fundamental, sem permitir que os interesses dos empresários e das multinacionais nos coloque em enfrentamento.
Publicado em pstu.com.ar 16 de outubro de 2023
Tradução: Lílian Enck