dom jun 02, 2024
domingo, junho 2, 2024

Um Papa de esquerda?

A recente viagem do Papa Francisco por Cuba e pelos Estados Unidos gerou um grande impacto mundial. Com seus discursos contra a pobreza, a pena de morte e a exclusão dos imigrantes, muitos jornais do mundo começam a chamar Francisco de um Papa de “esquerda” e a serviço dos pobres, o que desperta expectativas em muitos companheiros e companheiras quanto à possibilidade de uma mudança no papel da tradicionalmente conservadora Igreja Católica.

Por: Matías Martínez

Na realidade, além dos gestos e discursos, a viagem comprova um apoio explícito ao plano de Obama e de Castro para suspender o bloqueio a Cuba e facilitar a entrega da ilha aos “investimentos” norte-americanos. A Igreja Católica continua ao lado dos poderosos e se reinventa como um instrumento a serviço do imperialismo que nos impõe uma submissão cotidiana.

Os jornais e agências de notícias mais importantes do mundo dedicaram seus editoriais para retratar a importância da última visita do Papa Francisco a Cuba e aos Estados Unidos. Seus discursos na Praça da Revolução de Havana, na Casa Branca, no Capitólio dos Estados Unidos e na Assembleia da ONU foram destacados como históricos, e todos concordaram em classificar esta viagem como a tarefa mais importante de Francisco desde que assumiu o cargo. E não é para menos: o Papa foi prestar contas no centro do poder imperialista, chegando aonde nenhum outro pontífice tinha estado antes. E o resultado foi uma ovação com “lágrimas nos olhos”.  Os aplausos obtidos nesse antro de bandidos são razões mais do que suficientes para que os trabalhadores e o povo do mundo não depositem nenhuma confiança no que venha desses lados.

Talvez como nenhum outro, o novo Papa assumiu a execução de sua agenda política incorporando seu novo papel em cada discurso. Cada vez fica mais claro qual foi a causa da estranha renúncia de Bento XVI, algo pouco frequente na Igreja Católica. Ainda que as escolhas internas desta instituição milenária estejam presentes, nada importante se modificou em sua estrutura. Evidentemente, o primeiro Papa latino-americano emergiu como uma necessidade da própria Igreja de recuperar seus fiéis e se adaptar aos tempos atuais. Francisco é só um produto da mudança de política desta instituição.

Contudo, certamente muitos valorosos companheiros e companheiras que querem um mundo sem pobreza, sem exploração nem opressão, hoje veem Francisco como uma referência. Para nós, com absoluto respeito às suas crenças religiosas e suas expectativas, queremos lhes dizer que lamentavelmente os fatos demonstram que esta mudança na política da Igreja continua em sintonia com o governo de Obama e com o amo imperialista em escala mundial. Isto é, fiel à sua tradição milenar, o “Papa de esquerda” não passa de uma cara mais amável da mesma Igreja Católica a serviço dos poderosos de sempre.

Com Obama, a serviço do imperialismo norte-americano

“Todos conhecemos e estamos sumamente preocupados com a inquietante situação social e política”, disse o Papa em uma parte de seu extenso discurso diante das duas câmaras do Poder Legislativo na “terra dos livres e na pátria dos valentes”, como ele mesmo definiu os Estados Unidos neste discurso. Essa foi a forma diplomática escolhida para descrever como a situação mundial se torna cada vez mais revolucionária.

E sua leitura não está equivocada. Ele sabe perfeitamente que o avanço da crise econômica e da resistência dos trabalhadores e dos povos de todo o mundo tem questionado todo o dispositivo de dominação imperialista em escala internacional. Hoje assistimos a revoluções, guerras, catástrofes que se multiplicam e começam a buscar uma saída.  Os fatos que comovem o mundo, como a crise migratória na Europa e o estouro da revolução síria, são alguns reflexos de para onde nos leva esta barbárie capitalista. As greves e mobilizações operárias e populares sacodem todo o planeta. O stalinismo já não pode cumprir seu papel de contenção dessas lutas, como o fez em boa parte do século XX, derrotado pelas revoluções das massas da antiga URSS e do Leste europeu. E é neste cenário que a Igreja e as grandes religiões jogam suas cartas na comunidade internacional. Apesar das disputas entre as religiões, todas aproveitam sua influência sobre o movimento de massas para impedir que os trabalhadores e trabalhadoras tomem o futuro em suas próprias mãos, construam suas próprias ferramentas e se mobilizem consequentemente até derrotar este sistema que os condena.

Assim é que, por trás dos chamados ao diálogo e à paz, esconde-se o apoio à política aplicada pelo presidente Barack Obama, à frente do imperialismo norte-americano. Evocando Abraham Lincoln e Martin Luther King, o Papa teve palavras para agradar todos, democratas e republicanos, e alinhar a tropa atrás uma mesma política. O anúncio da renúncia de John Boehner, presidente da Câmara de Representantes (deputados) dos Estados Unidos e homem duro do bloco republicano, depois da visita papal, parece ser um sinal nesta direção.

E essas coincidências não são nenhuma novidade. Pouco tempo depois de ter chegado à Roma, foi o próprio Francisco quem viajou ao Oriente Médio para “rezar” junto a outros líderes religiosos, em um claro apoio à reacionária política da construção dos dois Estados impulsionada pelo próprio Obama. Essa mesma política que vem fracassando e permite que o Estado de Israel continue massacrando o povo palestino. Também é este Papa quem fala que “os muros não são a solução” diante dos refugiados que fogem da Síria, mas não se pronunciou em apoio à revolução que luta contra a ditadura assassina de Bashar Al Assad, um dos responsáveis por produzir esta “catástrofe  não vista desde os tempos da Segunda Guerra Mundial”. E enquanto fala em defesa dos pobres, apoia politicamente os governos que aplicam os ajustes e afundam na pobreza seus próprios trabalhadores para salvar os lucros das multinacionais, como fez no Brasil em sua primeira viagem pela América Latina.

Junto ao castrismo, “benzendo” as pontes da restauração capitalista

Antes de chegar a Washington, o Papa esteve em terra cubana. Nada é casual na agenda do Vaticano e, desta vez, não foi diferente. O Papa Francisco desempenhou um papel determinante na restauração das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos.

Ainda que as declarações para a mídia tenham se empenhado em destacar o caráter pastoral da viagem, o Papa negou-se a receber os dissidentes do regime cubano na própria ilha, numa clara mensagem de apoio aos irmãos Castro. Por outro lado, o Papa levou o anúncio do secretário do Tesouro norte-americano, Jacob Lew, flexibilizando as travas “em matéria de ampliação de remessas, viagens, telecomunicações, serviços de internet e operações comerciais em Cuba”.1 Esta foi a antessala das negociações abertas entre Castro e Obama nas Nações Unidas para suspender o bloqueio comercial de forma definitiva. Em contrapartida, e como forma de pagamento pelos serviços prestados, o regime castrista devolveu à Igreja católica cubana várias propriedades que tinham sido expropriadas pela revolução.

Assim como seu irmão Fidel teve que receber o então Papa João Paulo II em 1998 para consolidar a penetração do capital europeu no processo de restauração capitalista em Cuba naquela ocasião, desta vez foi Raúl Castro quem recebeu com todas as honras Francisco em Havana. Quase vinte anos depois, um novo Papa veio “abençoar” as “pontes do diálogo” que permitem a entrada do capital norte-americano na partilha da espoliação da Ilha.

Inclusive, isso trouxe desentendimentos no interior da própria corrente castrista. Aleida Guevara, filha de Che Guevara, negou-se a cumprir o chamado do Partido Comunista de Cuba (PPC) para comparecer à missa realizada pelo Papa Francisco na Praça da Revolução: “À missa não (vou) porque isso para mim é hipócrita (…), Que vou fazer parada aí, horas e horas? (…), “é como uma tarefa do Partido, praticamente, com a qual eu não estou totalmente de acordo”2, acrescentou.

Justamente, é a ditadura do PC que se agarra à popularidade do Papa para atenuar o descontentamento crescente do povo cubano diante do brutal ajuste que vem sendo implementado para permitir que os “investimentos” capitalistas cheguem à Ilha. Todas as correntes castro-chavistas que destacam a participação de Raúl Castro na ONU e na Cúpula das Américas como um triunfo do povo cubano na realidade escondem uma nova entrega do regime castrista a serviço do poder imperialista. Algo que, cada vez mais, fica evidente.

Notas:
1) Ler nota completa em http://www.pagina12.com.ar/diario/ultimas/20-281963-2015-09-18.html
2) Ler nota completa em http://www.telesurtv.net/news/Hija-del-Che-Guevara-cuestiona-visita-papal-a-Cuba-

Tradução: Suely Corvacho

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