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sexta-feira, abril 19, 2024

Ucrânia e Rússia: Sobre fascismos e fascismos

Uma das “justificativas” de Putin para a agressão contra a Ucrânia é a de que seu governo seria fascista ou nazista. Esta acusação é repetida à exaustão por parte da esquerda, principalmente stalinista.                                                                                                                                                                                           Por: Diego Russo

Não nutrimos nenhuma confiança no Governo Zelenskiy, afinal, é um representante da burguesia ucraniana, que sempre vendeu seu país ora ao imperialismo ocidental, ora à Rússia. Mas é uma mentira tosca de Putin dizer que Zelenskiy seja fascista. Uma mentira para justificar uma guerra injustificável ante o mundo, e mesmo ante o público russo. Uma justificativa tão falsa como a mentira de Bush de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, usada como desculpa para a guerra contra o país.

Esta mentira de Putin é denunciada por centenas de historiadores e investigadores do fascismo de todo o mundo, que assinaram uma carta aberta publicada pela BBC:

Rejeitamos firmemente o uso cínico e abusivo do termo “genocídio” por parte do regime russo, seu abuso com a memória da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, e suas tentativas de equiparar o Estado ucraniano ao regime nazista a fim de justificar uma agressão russa não-provocada. Tal retórica não se apoia em nenhum fato, é moralmente repugnante e profundamente ofensiva à memória das milhões de vítimas do nazismo e daqueles que corajosamente lutaram contra ele, incluindo os soldados russos e ucranianos do Exército Vermelho”.

Da mesma forma, o Memorial de Auschwitz-Birkenau, às vítimas do tristemente famoso campo de concentração nazista, condenou a invasão russa contra a Ucrânia, e declarou sua total solidariedade com o povo ucraniano, assim como com os russos reprimidos por Putin por declararem sua oposição à guerra.

Mas esta mentira de Putin para justificar sua política assassina, como toda grande mentira, apoia-se num elemento de verdade. A real existência de agrupamentos de extrema-direita, e inclusive de ideologia fascista, na Ucrânia. Já a falsidade do argumento consiste em considerar o nacionalismo ucraniano de conjunto como sendo de extrema-direita e fascista.

Extrema-direita e nacionalismo ucraniano não são a mesma coisa

No que diz respeito à extrema-direita, a Ucrânia infelizmente não é exceção entre outros países europeus “brancos”. A extrema-direita, incluído o nazi-fascismo, vem crescendo no mundo, como um subproduto da decadência capitalista, do empobrecimento das classes médias, da agudização e polarização da luta de classes. Representa mais um elemento de barbárie, lado a lado com a crise de imigrantes e refugiados, aumento do desemprego, aumento da exploração, da fome, da destruição do meio-ambiente, da epidemia de Covid-19 e não só, etc. É reflexo da putrefação do sistema capitalista-imperialista de conjunto.

Na Ucrânia o nacionalismo, entendido como a defesa de seu direito à independência nacional, é de massas. Mas as ideologias de extrema-direita não o são. Não é casualidade que o nacionalismo seja de massas na Ucrânia. A Ucrânia sempre foi uma nação oprimida, primeiramente pelo antigo Império Russo, e mais tarde pelo stalinismo. O Império Russo era corretamente chamado de “cárcere dos povos”, em referência às mais de 160 nacionalidades ali oprimidas. Ao final do antigo Império Russo, os marxistas participavam ativamente da luta do povo ucraniano contra a opressão russa.

Lenin defendia o direito à autodeterminação de todos os povos oprimidos pelo Império Russo, incluindo a Ucrânia. Para Lenin, o nacionalismo das nações oprimidas era revolucionário. Lutava por dar à luta nacional um caráter operário e socialista, mas era parte desta luta. O movimento pela autodeterminação da Ucrânia, assim como de outros povos mantidos à força sob domínio russo, foi um forte impulso para a Revolução de Outubro de 1917, que foi muito mais do que uma revolução apenas “russa”. A Ucrânia que então surgia pela primeira vez como nação independente, graças a esta política de Lenin, se uniu à então nascente URSS em igualdade de direitos com a Rússia, Belarus e demais nações.

Foi a Revolução de Outubro que garantiu o direito à autodeterminação da Ucrânia. E é exatamente este direito que Putin ataca agora, afirmando que o direito à autodeterminação da Ucrânia é um absurdo inventado por Lenin e os bolcheviques. Putin defende, segundo suas palavras, “descomunizar” a Ucrânia pelas armas, ou seja, eliminar qualquer vestígio de independência da Ucrânia.

A política de Lenin para as nacionalidades oprimidas é até hoje uma referência de como a classe trabalhadora pode superar as divisões nacionais e unificar-se contra os exploradores e opressores. Mas durou pouco. A stalinização da URSS, do Partido Bolchevique e da Internacional Comunista foi acompanhada pela mudança radical na política para as nacionalidades que faziam parte da URSS. Aliás, foi exatamente neste campo que o stalinismo surgiu enquanto corrente política própria, e oposta ao leninismo. Se deu ainda em vida de Lenin, na polêmica sobre os países do Cáucaso. Stalin defendeu uma política de “autonomização” da Geórgia e demais nações do Cáucaso, ao invés do direito à sua autodeterminação, e o fez com a grosseria típica que o tornaria famoso. Houve forte reação do Partido Comunista Georgiano. Lenin interviu na polêmica criticando violentamente a posição de Stalin. Propôs o afastamento de Stalin de seus postos e rompeu relações pessoais com ele. Foi a última batalha de Lenin, logo antes de morrer. E foi graças a esta última batalha de Lenin, derrotando Stalin, que o direito à autodeterminação dos povos entrou na Constituição Soviética. Direito este que seria utilizado no final dos anos 1980 para que vários países pudessem se separar da URSS, e que exatamente por isso é hoje atacado por Putin.

Stalin, temporariamente derrotado, volta à carga após a morte de Lenin. Não podendo intervir abertamente contra o artigo de Lenin na Constituição, o transforma em letra morta. O stalinismo implementa na prática sua política antileninista, transformando a URSS num novo “cárcere de povos”, submetendo à força novamente todos os não-russos ao domínio de Moscou, e trucidando dezenas de milhares de militantes comunistas que se mantinham fieis às ideias de Lenin, em especial os trotskistas. Para piorar, o fez falsificando a história, apresentando sua nefasta política como “leninista”.

Sob a brutal ditadura stalinista, qualquer corrente de esquerda que defendesse o direito ucraniano à independência nacional era violentamente reprimida. O resultado concreto foi que a justa luta pelo direito à autodeterminação da Ucrânia, abandonada pelos PCs estalinizados[1], ficou nas mãos de correntes nacionalistas não-marxistas.

Na Segunda Guerra Mundial, um setor minoritário deste nacionalismo na Ucrânia viu no enfrentamento entre a URSS e a Alemanha nazista uma brecha para independizar a Ucrânia, o que foi aproveitado por Hitler. Muito se fala hoje da figura de Stepan Bandera, que supostamente dirigia o setor que se aliou ao fascismo. Há muita controvérsia entre os historiadores sobre este tema, mesmo dentro da Ucrânia. Bandera passou todo o período de ocupação nazista preso pelos alemães, que não confiavam nele. É improvável que tenha tido o papel histórico que hoje lhe é atribuído, de dirigir, sob tais condições, todo o Exército Rebelde Ucraniano. Aliás, não há registros de que o Exército Rebelde Ucraniano tenha combatido o Exército Vermelho. Combateu sim, as tropas da NKVD, a precursora da KGB, enviadas para reprimir a população civil, falsamente chamada de “bandeirista”, que levava adiante uma ampla guerra de guerrilhas contra o controle soviético da região. Provavelmente a figura de Bandera tenha sido inflada por Stalin para justificar a repressão, como hoje é inflada por Putin para justificar a agressão contra a Ucrânia. Stalin e Putin fazem, desta forma, um grande favor à extrema-direita na Ucrânia, criando-lhes um “herói”. Independentemente das controvérsias sobre a história, afirmar que os ucranianos em sua maioria colaboraram com Hitler é uma falsificação total, estes setores eram muito minoritários. A imensa maioria do povo ucraniano combateu à morte a invasão nazista.

A luta contra o stalinismo e pelo direito à autodeterminação se manteve ao longo de toda a história da URSS após a guerra. Mesmo sob Brezhnev, houve uma forte política de russificação da Ucrânia, reprimindo o uso do idioma ucraniano. Os levantes nos campos de prisioneiros eram acusados de serem organizados por “bandeiristas”, assim como os trotskistas eram acusados antes da guerra de fascistas. E cruelmente reprimidos. Toda a oposição ao stalinismo na Ucrânia era chamada de “bandeirista” e de “nacionalismo-burguês”, que teriam colaborado com o nazismo. Uma mentira absurda, que tem na guerra atual sua conclusão lógica. Aquela minoria que de fato colaborou com o nazismo é amplamente rechaçada, e tem um peso marginal hoje em dia. Minorias colaboracionistas, aliás, existiram em todos os países ocupados pelo nazismo, até mesmo na Rússia (o General Vlasov, por exemplo).

O fim da URSS em 1991, como resultado da imensa revolução que derrubou o aparato stalinista soviético, significou uma nova libertação da Ucrânia, garantindo sua independência formal da Rússia. Novamente, a luta das nacionalidades oprimidas contra a opressão russa jogou um papel de primeira magnitude neste processo revolucionário. Mas os novos capitalistas russos, que vinham do antigo Partido Comunista e da KGB, que haviam restaurado o capitalismo no país, jamais aceitaram esta nova independência da Ucrânia.

A partir de 1999, com a chegada de Putin ao poder, a burguesia russa passa a reafirmar seu domínio sobre a Ucrânia e toda a região que havia sido parte da URSS. A cada inverno, a Rússia chantageava com a ameaça de interromper o fornecimento de gás para a Ucrânia, caso esta não aceitasse os aumentos de preços impostos, o que era insustentável para sua economia. Esta política de Putin levou a três processos: 1) O endividamento externo da Ucrânia com a Rússia, que exigia em pagamento o controle sobre os gasodutos que cortavam o país, ligando a Rússia à Europa Ocidental; 2) O endividamento da Ucrânia junto a credores ocidentais para cobrir suas dívidas com a Rússia, aumentando sua dependência econômica em relação aos EUA e União Europeia; 3) Um aumento cada vez maior do sentimento de nação oprimida pela Rússia e de indignação contra esta situação. O resultado desta política foi empurrar cada vez mais a Ucrânia em direção à União Europeia, aos EUA e à OTAN.

Quando finalmente explode a revolução ucraniana de 2014, a chamada Maidan, uma vez mais o povo ucraniano em luta se viu órfão de uma alternativa socialista que defendesse seu direito à autodeterminação. Porque praticamente toda a “esquerda” ucraniana, educada pelo stalinismo, ficou do lado da Rússia, apoiando a ditadura de Yanukovich, que seria derrubado nas ruas e barricadas.

Qualquer trabalhador ou jovem que combatesse nas barricadas contra o governo Yanukovich era, por assim dizer, nacionalista. Mas somente uma parte minoritária deles era de extrema-direita.

Então não é casual que correntes de extrema-direita existam na Ucrânia. A ausência de correntes socialistas com peso e que defendam o direito à autodeterminação da Ucrânia, juntamente com a propaganda de Putin e do stalinismo em torno aos “bandeiristas”, criam as condições, no marco de uma crise econômica global, para o surgimento de correntes desse tipo.

Mas afinal, a Ucrânia é fascista?

Apesar de todas estas razões reais e concretas para um fortalecimento do nacionalismo na Ucrânia, o fato é que correntes de extrema-direita seguem sendo marginais na realidade política do país. Nas últimas eleições presidenciais, em 2019, o candidato que unificava os grupos de extrema-direita atingiu míseros 1,6% dos votos. Nas eleições legislativas no mesmo ano, a lista unificada da direita nacionalista do país mal chegou aos 2% dos votos, ficando sem nenhum deputado no parlamento do país, a Rada. Aliás, o peso destas organizações vem diminuindo com os anos. Nas eleições de 2012 para a Rada, ainda antes da Maidan, a extrema-direita havia recebido 10,44% dos votos. Nas eleições de 2016, a lista unificada da direita nacionalista já havia caído para 6,4%, e em 2019, apenas 2,15%. Uma demonstração de que o profundo sentimento nacional do povo ucraniano pela independência não se confunde com o fascismo.

Em muitos outros países europeus, a extrema-direita tem votações muito superiores a esta, como Vox na Espanha (15% dos votos em 2019), Chega em Portugal (7% dos votos em 2022), Aurora Dourada[2] na Grécia (4,9% em 2019), Alternativa para a Alemanha (10% em 2021), Partido da Liberdade da Áustria (16% em 2019), etc. Na França, a Frente Nacional de Marine Le Pen chegou ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2017. Nem falar de Trump nos EUA ou Bolsonaro no Brasil… E nem por isso caracterizamos estes países como fascistas.

Os que dizem que a Ucrânia é fascista argumentam que existe a presença de setores de extrema-direita dentro do aparato de estado da Ucrânia, e inclusive de suas Forças Armadas.

Pois quando Putin, reagindo à Maidan em 2014, anexa a Crimeia e ocupa com mercenários parte do Donbass, o faz com pouca resistência das Forças Armadas ucranianas, pois estas estavam destruídas, já que eram fieis ao governo derrubado de Yanukovich, e em boa medida formadas por oficiais pró-russos. Foi no vácuo desta ausência de forças regulares que se formaram grupos de voluntários para combater a invasão russa no leste do país. Estes voluntários, por falta de alternativa à esquerda, se organizam em agrupamentos que tinham como única orientação ideológica a independência ucraniana, o nacionalismo. Estes grupos eram um grande guarda-chuva, que abrigava todos os que queriam combater por seu país, com as posições mais variadas. Neste espaço atuavam também correntes de extrema-direita, mas nem de longe dominantes. As correntes de esquerda, uma vez mais se ausentaram. Houve então uma política da burguesia ucraniana de incorporar estes grupos nacionalistas às Forças Armadas regulares, para manter seu controle sobre eles.

O frequentemente citado Batalhão Azov é parte deste processo. Foi formado em 2014 com voluntários para combater a agressão russa no Donbass, participou então da libertação da cidade de Mariupol, o que lhe permitiu angariar certa autoridade. Foi então incorporado à Guarda Nacional ucraniana. Dentro dele há vários agrupamentos, sendo o principal o Corpo Nacional, de fato de extrema-direita.

Ou seja, o próprio surgimento deste grupo de extrema-direita é resultado da agressão russa contra a Ucrânia, resultado direto da política de Putin. Pois este Batalhão Azov, acusado por Putin de promover um “genocídio” contra a população de língua russa no leste da Ucrânia, é ele mesmo formado por gente de “língua russa”, habitantes da parte oriental do país.

Há um debate na sociedade ucraniana sobre ilegalizar ou não este batalhão. O Batalhão Azov possui um baixo apoio político entre a população, apesar de ser parte das forças que combatem com armas na mão a agressão russa. Este batalhão lançou uma candidatura própria recentemente às eleições ucranianas e fracassou completamente, com uma votação absolutamente inexpressiva. Segundo a BBC, o Corpo Nacional do Batalhão Azov conta com apenas 400 combatentes hoje. Chegaram a possuir 800. Mas caso venha a ganhar com a guerra maior autoridade no país, será por inteira responsabilidade de Putin, que é quem lhe dá a oportunidade de aparecer como heróis ante o povo ucraniano.

Batalhão Azov e Corpo Nacional, organizações de extrema-direita ucranianas

Como corolário, em 2020, jovens ucranianos de extrema-direita comemoraram o dia de aniversário de Hitler na cidade de Kherson. Foram presos, julgados e condenados à prisão, onde seguem até hoje. O que não combina com a lenda de um “estado fascista na Ucrânia”.

A suposta proibição dos “partidos de esquerda” na Ucrânia

Um argumento também utilizado pelo stalinismo é que o governo ucraniano proibiu o Partido Comunista Ucraniano, e agora com a guerra, proibiu vários partidos “de esquerda”.

Na Ucrânia, ao contrário da Rússia, há liberdade de organização partidária, conquistada na revolução de 2014. Há mais de 300 partidos políticos registrados na Ucrânia. Destes, a partir da agressão russa de 2014, um total de quatro partidos foram proibidos. Mas não por serem de esquerda. Foram proibidos o Partido Comunista Ucraniano e mais três partidos de direita. Não por sua linha ideológica, mas por apoiarem a ditadura de Yanukovich e sua repressão contra o povo, que custou mais de 100 mortos, e por convocarem abertamente a Rússia a invadir com tropas o seu próprio país!

Como se fosse pouco, quando a Rússia anexou a Crimeia e ocupou com mercenários parte do Donbass, estes quatro partidos apoiaram e colaboraram com esta agressão russa contra seu próprio país! Qual país do mundo permitiria que, no meio de uma agressão militar estrangeira, partidos pudessem livremente apoiar e colaborar com o inimigo que ocupa militarmente seu próprio país?

Mesmo assim, apesar da agressão russa de 2014, partidos pró-Rússia participaram livremente das eleições na Ucrânia desde então. Para comparação, seria inimaginável um partido pró-Ucrânia participando das eleições na Rússia, onde o simples fato de se dizer que a Crimeia deve ser devolvida à Ucrânia é punido com 20 anos de prisão por extremismo…

Agora, durante a guerra, foram proibidas outras organizações ucranianas ditas de esquerda. Vejamos o que diz um socialista ucraniano a respeito:

“Infelizmente, a “operação especial” fortalece tendências autoritárias e nacionalistas na Ucrânia. Mas embora este processo precise ser criticado, devemos nos lembrar da essência destes partidos. Eles foram proibidos não por serem de esquerda, mas por serem pró-Putin. Os partidos de esquerda que não são pró-russos não foram proibidos. (…) A lista de partidos proibidos não se limita aos partidos “de esquerda” pró-russos. Também inclui alguns dos partidos oligárquicos mais influentes, sucessores do Partido das Regiões [partido de Yanukovich]. (…) entre os partidos proibidos está o OPZJ, o maior partido pró-russo da Ucrânia. (…) o Kremlin esperava contar com ele para formar um regime de ocupação”[3].

Estes partidos foram proibidos não por serem de esquerda ou socialistas, mas por colaborarem com a invasão de seu próprio país, e se prepararem para cumprir o papel de governo fantoche de Putin em caso de vitória da ocupação.

Obviamente, sempre se pode argumentar que existe o risco de a burguesia ucraniana aproveitar-se da situação para restringir as liberdades democráticas, reprimir as lutas e organização dos trabalhadores, e impulsionar correntes de extrema-direita. Já chegou inclusive a indicar um vice-ministro ligado às forças de extrema-direita de 2017 a 2019. Mas este risco hoje é muito relativo, pela correlação de forças no país, com a mobilização massiva e armamento da população trabalhadora para combater a invasão. Chamamos o povo ucraniano a se organizar de forma independente e a combater em armas a ocupação russa, bem como a defender as liberdades democráticas conquistadas pela Revolução da Praça Maidan em 2014, sem depositar nenhuma confiança nem no Governo Zelenskiy, nem em organizações de extrema-direita.

Mas utilizar-se da existência de correntes marginais de extrema-direita como justificativa para invadir a Ucrânia, assim como igualar o justo nacionalismo ucraniano ao fascismo, não passam, como dissemos no início, de uma grande e tosca mentira de Putin.

O nazifascismo na Rússia

Por outro lado, se o peso das correntes de extrema-direita é marginal na sociedade e estado ucranianos, o mesmo não se pode dizer, infelizmente, da Rússia. Estudiosos do tema consideram que a Rússia é o país com mais militantes de extrema-direita e diretamente fascistas em todo o mundo. Se existe o Batalhão Azov na Ucrânia, na Rússia há o Grom, o Rusich (que utiliza como símbolo a kolovrata, a suástica eslava), o Unidade Nacional Russa, o The Hawks, o DPNI, todos atuando com milhares de paramilitares no Donbass desde 2014. Há fotos destes grupos atuando na Ucrânia com a bandeira valknut, um símbolo de supremacistas brancos.

Além de todos estes grupos de extrema-direita, há ainda os exércitos privados e milícias de mercenários ligados aos grandes oligarcas russos, que defendem ditaduras em vários países, em especial na Ucrânia. Aconselhamos ler sobre este mercado da morte aqui: https://litci.org/pt/grupo-wagner-milicias-russas-na-africa/

Kolovrat, a suástica dos neonazistas russos

Todo 4 de novembro ocorre nas cidades russas a Marcha Russa, com ativistas de extrema-direita, monarquistas, grupos diretamente fascistas, contra imigrantes, islamofóbicos, misóginos, racistas e homofóbicos. Enquanto as manifestações de oposição na Rússia são violentamente reprimidas, as Marchas Russas ocorrem sob proteção da polícia e da FSB, e contam com a participação de membros da Igreja Ortodoxa Russa, que aliás, apoia ativamente a guerra contra a Ucrânia.

Moscou era considerada a cidade com mais skinheads no mundo, que atacavam imigrantes nas ruas, tendo assassinado brutalmente vários deles. Mas desde 2014, praticamente não se vê skinheads nas ruas, pois foram todos “combater” no leste ucraniano.

Estes grupos de extrema-direita são diretamente financiados por grandes bilionários e membros do alto escalão do governo Putin, como Ragozin, hoje chefe da RosCosmos. Segundo The Conversation, o Kremlin mantinha relações estreitas com Russkii Obraz, grupo neonazista que participava inclusive de discussões em canais estatais russos de TV.

Marcha Russa, com o grupo nazista DPNI e Igreja Ortodoxa Russa
Marcha Russa com bandeiras e organizações de extrema-direita
Neonazistas na Marcha Russa
Marcha Russa com bandeira nazista e bandeira imperial russa
Partido dos Nacionalistas, na Marcha Russa

Por que aqueles que enchem a boca para falar do “fascismo ucraniano” se calam a respeito destes grupos fascistas russos?

Como se não fosse suficiente, a polícia russa é profundamente racista, controlando pela aparência física as pessoas nas estações de metrô e trens, parando todos os que não sejam brancos, pedindo documentos, especialmente para os imigrantes do Cáucaso e da Ásia Central. Este racismo se revela permanentemente no dia a dia russo.

Na Rússia, ao colocar um imóvel para alugar, é de praxe se escrever nos anúncios “apenas para eslavos”, para que caucasianos ou asiáticos (nem falar de negros) não possam aluga-los. Isso num país em que pelo menos 20% da população é de “não-eslavos”. Imagine-se um país onde fosse normal alugar apartamentos “apenas para brancos”, ou “não alugo para judeus”. Pois na Rússia é exatamente assim, e qualquer estrangeiro que tenha morado lá pode confirmar isso de boa fé. Esse era um fenômeno marginal nos anos 1990, e que se tornou generalizado durante o período Putin.

Mas, infelizmente, o quadro é ainda pior do que descrevemos até aqui. A Guerra da Chechênia foi o momento-chave para a afirmação de Putin como presidente. Foi Putin quem massacrou o levante dos chechenos pela sua autodeterminação em 1999, destruindo sua capital Grozny, e fechando um acordo com o ultrarreacionário clã de Kadyrov para que submetesse toda a região com seus bandos fascistas.

Na Chechênia há campos de concentração para homossexuais, tortura, execuções extrajudiciais, violenta opressão sobre as mulheres, repressão brutal contra ateus, socialistas, sindicalistas, etc. Reuniu-se um milhão de assinaturas exigindo que a Rússia investigasse as denúncias. Este abaixo-assinado foi ignorado por Putin. Kadyrov está por trás de incontáveis assassinatos de opositores e jornalistas. Sob seu governo, não existe direito à livre expressão nem à livre organização. Graças a Kadyrov, Putin recebe na região a cada eleição 99% dos votos, patamar típico de ditaduras stalinistas, como na Coreia do Norte e outros tantos exemplos.

Não é por acaso que, para substituir os desmoralizados soldados russos na Ucrânia, Putin tenha enviado os carniceiros de Kadyrov, que declarou abertamente que seus homens não seriam “moles” com os ucranianos como os soldados russos. A bravata durou pouco. A resistência ucraniana, aliada aos chechenos no exílio, derrotou os assassinos profissionais de Kadyrov, que retornaram desmoralizados à Chechênia, com pesadas baixas.

Mas não é só a Chechênia. Em toda a Rússia a repressão é muito forte contra qualquer movimento independente de protesto. Só há 4 partidos com representação legal, todos pró-regime. Não existem sindicatos livres. Todos os grandes meios de comunicação são controlados por Putin. Manifestações são fortemente reprimidas. Não existem partidos de esquerda legais, à exceção do Partido Comunista, que é parte do regime. É um partido chauvinista, nacionalista, militarista e clerical. Ligado aos oligarcas e à FSB, a polícia política. Veio do Partido Comunista a proposta de reconhecimento da independência de Lugansk e Donetsk, medida que deu início a guerra. Todas as demais organizações de esquerda são ilegais.

Agora com a guerra, todo este quadro se agravou, com a proibição absoluta de qualquer protesto, penas de 15 anos ou mais de prisão por um post contra a guerra, fechamento dos meios alternativos de comunicação, bloqueio de sites na internet, do Facebook, Instagram, etc. Os meios de comunicação russos (e aliás, qualquer cidadão) estão inclusive proibidos de usar o termo “guerra” para definir o que se passa na Ucrânia, e obrigados a se referir ao tema como “operação especial de libertação da Ucrânia”, o que dá uma prévia do regime a la Chechênia que se estenderá por todo o país caso Putin vença a guerra.

A ultradireita mundial está com Putin

Putin é apoiado por Bolsonaro no Brasil, Viktor Orban na Hungria, Marie Le Pen e sua Frente Nacional na França, Alternativa pela Alemanha, Liga Norte da Itália, Partido da Liberdade da Áustria, Vox na Espanha, Chega em Portugal, Aurora Dourada da Grécia, Steve Bannon, Partido Nacional-Democrata da Alemanha, Força Nova da Itália, Partido Nacional Britânico, Partido dos Suecos, Partido dos Dinamarqueses, Liga Pela Vida britânico, Liga da Lombardia italiano, etc. Vários destes partidos são definidos como neofascistas até mesmo em relatório do Ministério da Relações Exteriores da Rússia. Pois todos eles apoiaram a anexação da Criméia, se colocam contra as sanções à Rússia, enviaram “observadores” às “eleições” e “referendos” realizados em Lugansk, Donetsk e Crimeia ocupados, afirmando sua “legalidade, caráter democrático, justo e de acordo às convenções internacionais”. Defendem, assim como Putin, os “valores tradicionais”, contra os imigrantes, minorias étnicas, sexuais, religiosas, etc. Vários destes partidos se reuniram em 2015 em São Petersburgo no “Fórum Conservador Russo Internacional”, lado a lado com a extrema-direita russa.

Oras, se Putin, autocrata, xenófobo, misógino e homofóbico, estivesse de fato combatendo o fascismo, por que razão seria apoiado pela extrema direita em todo o mundo?

A verdade é que Putin tem as mãos sujas de sangue do povo checheno, sírio, egípcio, líbio, belarruso, cazaque e ucraniano, entre outros. E sangue do povo russo também! Putin ataca violentamente qualquer intento de libertação dos povos da região que considera seu “espaço vital”. Putin afirma abertamente que a Ucrânia não tem direito a existir enquanto nação independente, e implementa esta sua visão através de uma guerra de agressão. A extrema-direita está no próprio Kremlin!

Se Putin desejasse de fato combater o fascismo, deveria “desnazificar” seu próprio país, seus próprios aliados, sua própria polícia e Forças Armadas, e em primeiro lugar, seu próprio governo!

[1] Nos referimos aqui ao fuzilamento de toda a direção destes partidos, depois substituída por funcionários fieis a Moscou.

[2] Aliás, esta organização abertamente neonazista declarou que a Maidan foi uma “conspiração sionista”.

[3] Um socialista ucraniano a respeito da proibição dos partidos “de esquerda”. Taras Bilous, Sotcialniy Rukh

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