sáb abr 13, 2024
sábado, abril 13, 2024

O prognóstico de Trotsky sobre a restauração capitalista na URSS

Quando em dezembro de 1991 se declarava a dissolução da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) iniciou-se um debate, que continua atualmente, sobre as causas dessa dissolução e o significado histórico e político deste fato.

Por: Alejandro Iturbe

Houve quatro critérios para sua interpretação. O mais difundido foi o que apresentaram o imperialismo e seus meios: tratava-se de um triunfo do capitalismo sobre o socialismo porque o capitalismo havia demonstrado ser um sistema econômico mais eficiente e, além disso, podia conceder a “democracia” (entendida como o mecanismo eleitoral burguês). As massas dos “países socialistas” haviam compreendido esta superioridade e, por isso, derrubaram a URSS e restauraram o capitalismo, assim como em 1989 haviam derrubado o Muro de Berlin.

Em numerosos artigos temos rebatido esta suposta superioridade do capitalismo e não vamos reiterar neste artigo esses debates. Porém, basta ver a duríssima realidade mundial (aumento permanente dos níveis de pobreza, miséria e fome; destruição da natureza; “normalização” das pandemias…) para compreender o verdadeiro significado desse “triunfo”.

Por seu lado, o estalinismo (expressão política da burocracia que governava a ex-URSS), que partia de uma avaliação oposta à do imperialismo sobre a realidade objetiva, acabava chegando à mesma conclusão: tanto a queda da URSS como a restauração do capitalismo era, em última instância, culpa das massas.

Quando precisa explicar porque aconteceu isso, o estalinismo tem que apelar para uma lógica bizarra. Porque diz que se bem o “socialismo real” tinha problemas, o processo ia avançando[1]. Porém, as massas foram convencidas pela “propaganda imperialista” e atuaram contra seus próprios interesses. Tal explicação antimarxista remete à frase de uma canção de Silvio Rodríguez, que em outro contexto, diz “O inimigo nos apodreceu”.

Este raciocínio está destinado a ocultar o papel da burocracia estalinista da ex-URSS em todo o processo. Por um lado, o grande enfraquecimento do Estado operário provocado por sua política. Por outro, como a questão central, que foi a própria burocracia estalinista a que restaurou o capitalismo.

A transição ao socialismo

Frente a esta explicação simétrica do imperialismo e o estalinismo, nós reivindicamos as análises, critérios, definições e prognósticos realizados pelo revolucionário russo Leon Trotsky na década de 1930, em especial no seu livro A revolução traída[2]. Neste trabalho, Trotsky defende, como uma das alternativas do futuro da URSS, que a burocracia estalinista restauraria o capitalismo se não fosse expulsa do poder pela classe operaria. Este prognóstico foi realizado quase 60 anos antes do fim da URSS. Por isso, consideramos a única análise marxista desse acontecimento, ou seja, uma análise cientifica e ajustada aos fatos da realidade.

Marx havia previsto que a revolução socialista começaria pelos países capitalistas mais desenvolvidos da época e que, necessariamente, deveria se estender em nível internacional. Porque uma sociedade socialista seria uma sociedade superior, do ponto de vista econômico e cultural, que a mais avançada das sociedades capitalistas. A partir dessa premissa, ele considerava que, depois de uma curta transição de reordenamento da economia segundo as novas pautas de funcionamento, começaria a fase socialista da sociedade que, depois do grande desenvolvimento que esta permitiria, se chegaria à fase do comunismo.

Porém, uma combinação de circunstancias históricas fez com que a primeira revolução desse tipo, que se consolidou, acontecesse na Rússia, um país relativamente atrasado. Isso representava uma realidade nova, não prevista por Marx: a existência de um período mais extenso de transição ao socialismo, em que, pelas limitações do desenvolvimento econômico nacional, os parâmetros socialistas não podiam se aplicar de modo pleno e subsistiriam certos critérios capitalistas de distribuição desigual da riqueza produzida. A forma como se distribuía estava condicionada pelo quanto se produzia. Isso determinava que a permanência do Estado Operário e seu aparato superestrutural seriam necessários durante todo esse período e não podiam se extinguir gradualmente em suas funções, como havia previsto Marx no contexto do avanço rumo ao comunismo.

Para Lenin e Trotsky, a única resolução possível para essa limitação, e para a profunda contradição que ela representava, era a extensão da revolução em nível internacional, aos países capitalistas mais avançados. Por isso, puseram seus maiores esforços na construção da III Internacional. Nesses anos, os olhares estavam voltados especialmente em impulsionar a revolução na Alemanha.

A degeneração do Estado operário

Contudo, a revolução foi derrotada na Alemanha e também em outros países da Europa, por razões que não desenvolveremos aqui. A jovem URSS ficou isolada e submetida a  condições extremamente difíceis. Uma situação na qual foi se consolidando uma burocracia dentro do Estado operário que, finalmente, conseguiu o controle completo do aparato do Estado. Não foi um processo pacifico, mas uma verdadeira contrarrevolução que assassinou ou perseguiu a maioria dos dirigentes do partido Bolchevique e a milhares de quadros e militantes dos anos da revolução de 1917. Trotsky e seus seguidores combateram arduamente esse processo de burocratização e, por isso, foram duramente perseguidos. Trotsky foi expulso do partido, condenado ao exilio, e por fim assassinado no México, em 1940.

Quando falamos de burocratização nos referimos a dois processos intimamente ligados. Por um lado, o surgimento de um setor privilegiado e parasita que tinha um nível de vida muito superior ao do conjunto da classe trabalhadora e das massas da URSS. Por outro lado, que, para defender esses privilégios, construiu um aparato de repressão e controle político sobre as massas.

Mas o principal crime que cometeu a burocracia estalinista foi abandonar a luta pela revolução internacional e se dirigir de modo crescente para a “coexistência pacifica” com o imperialismo, com a reacionária teoria de que era possível construir o “socialismo em um só país”. Baseado nessa concepção, o estalinismo traiu inúmeras revoluções na Europa e no mundo.

O prognóstico alternativo

É no marco do triunfo da burocracia estalinista que Trotsky escreve A revolução traída para analisar o que havia acontecido, definir em que havia se transformado a URSS, e quais eram suas perspectivas.

A partir de uma análise muito profunda, conclui que a URSS ainda era um Estado operário porque as bases econômico-sociais que havia construído a Revolução de Outubro ainda existiam. Que a burocracia estalinista “a sua maneira e com seus métodos” ainda as defendia. Essas bases, ainda que não permitisse superar o imperialismo (como pretendia o estalinismo) geraram um importante desenvolvimento econômico, de ritmos superiores aos do imperialismo que, depois da reconstrução posterior à Segunda Guerra, fizeram com que chegasse a ser a segunda economia do mundo. Por isso, Trotsky começa seu livro referindo-se a estes avanços e conclui que a eficácia da economia estatal centralmente planificada havia demonstrado sua validez não nos livros, mas em uma experiência viva da realidade.

Porém, depois dessa constatação, Trotsky não se enganava com o significado destas cifras que o estalinismo exibia orgulhosamente em defesa de sua teoria. Por um lado, ele era consciente da profunda superioridade produtiva que mantinha o imperialismo. Por outro, analisava as profundas contradições e diferenças sociais que existiam e cresciam no interior da URSS: em especial, os privilégios da burocracia frente ao nível de vida da classe operária, mas também o surgimento de outros setores pequenos burgueses. Nesse contexto, considera que, se bem, a burocracia estalinista ainda defendia as bases econômico-sociais do Estado operário, ao mesmo tempo, com seus métodos e sua política, as corroía de modo constante e as ia debilitando.

DMITRII DEBABOV

Para definir esta combinação altamente contraditória da subsistência das bases econômico-sociais construídas pela Revolução de Outubro com uma superestrutura estatal controlada pela burocracia estalinista, Trotsky se vê obrigado a criar uma nova categoria: a URSS de Stalin era um Estado operário degenerado (ou doente).

Ele considerava que essa combinação era altamente instável e que seu destino (se avançaria rumo ao socialismo ou retrocederia ao capitalismo) não estava definido de antemão. A partir dessa base, Trotsky conclui afirmando um famoso prognóstico alternativo: ou a classe operária derrubava a burocracia estalinista do poder (ou seja, realizava uma revolução política) e reconstruía uma superestrutura estatal saudável, sem contradições com as bases econômico-sociais deste Estado e “abria o caminho ao socialismo”, ou a burocracia acabaria restaurando o capitalismo porque, para defender seus privilégios, queria dar um caráter permanente assegurado somente pelo “direito de propriedade privada”.

Foi um prognóstico genial que, lamentavelmente, se verificaria, décadas mais tarde, em sua variante mais negativa. Porque isso é o que aconteceu na China sob a direção de Deng Xiaoping, em 1978, com as “Quatro Modernizações”; na URSS com a Perestroika de Mijail Gorbachov, em 1986; e em Cuba, com o Período Especial levado adiante pela direção castrista, na década de 1990.

A burocracia havia deixado de defender as bases econômico-sociais a que nos referimos e começava o processo de restauração do capitalismo. Segundo os próprios critérios assinalados por Trotsky nos materiais citados (o caráter de classe de um Estado se define pelo tipo de propriedade que defende”), esses países haviam deixado de ser Estados operários e tinham se transformado em Estados capitalistas, ainda que o regime político controlado pelos PCs seguisse sendo o mesmo. Por isso dissemos que esta elaboração central de Trotsky passou na prova da história.

Em resumo, não foi a ação das massas, mas a burocracia estalinista encabeçada por Gorbachov (associada ao imperialismo) que iniciou a restauração do capitalismo, em 1986.

Isso significa que quando, anos depois, a superestrutura política da URSS foi dissolvida, ela não era mais um Estado operário, mas um Estado capitalista, embora tanto a explicação do imperialismo quanto a do stalinismo unifiquem o significado de ambos marcos do processo.

Um erro de Trotsky

Porém, junto com sua brilhante analise, para nós Trotsky incorre em um erro de prognóstico quando afirma que para restaurar o capitalismo a burocracia estalinista deveria levar adiante necessariamente uma contrarrevolução contra as massas, porque estas sairiam para defender as bases econômico-sociais do Estado operário e as conquistas que representavam. A realidade, evidentemente não foi assim.

Para nós, esse erro de prognóstico se deve a que Trotsky não tirou a conclusão de que –dado que a contrarrevolução estalinista realizada entre a segunda metade da década de 1920 e 1936 (ano em que escreveu A Revolução Traída) havia significado uma dura derrota para os trabalhadores e as massas soviéticas- a burocracia tinha a correlação de forças necessária para restaurar o capitalismo, se assim definisse.

Desde esse ano (1936) até 1986 se produziram diversos acontecimentos e processos, como a invasão dos exércitos da Alemanha nazi e outros países do Eixo, na Segunda Guerra Mundial (uma contrarrevolução que, se houvesse triunfado, teria destruído a URSS), e a resposta heroica em defesa do Estado operário por parte das tropas e as massas soviéticas, apesar de que toda a política prévia de Stalin levava a uma terrível derrota. Depois houve um período de reconstrução.

Depois da morte de Stalin (1953), com Nikita Kruschov, a burocracia ameaçou algumas mudanças no regime político, que logo ficaram no esquecimento. Com seu sucessor, Leonid Brezhnev, ficou nítido que a política aplicada era o que alguns analistas definiram como “imobilismo”[3]. Imobilismo do qual, com a subida de Gorbachov, a burocracia sairia com a política de restaurar o capitalismo.

Em todo o processo, o aparato repressivo e de controle político do movimento das massas criado pelo estalinismo se mantinha essencialmente intacto. Ao mesmo tempo, nas fábricas e empresas se desenvolveram uma permanente negociação entre os diretores e os trabalhadores para o cumprimento dos planos, por um lado, e a obtenção de alguns benefícios adicionais se esses se cumprissem, por outro.

Os trabalhadores e as massas compreendiam que as bases econômico-sociais se expressavam em determinadas conquistas que não existiam no capitalismo, como o direito a ter um trabalho ou os bons níveis de saúde e educação públicas e gratuitas. Em troca, toleravam a falta de democracia e os privilégios da burocracia, mais ainda depois da derrota dos processos de revolução política no Leste Europeu (Berlin, 1963; Hungria, 1956; Tchecoslováquia, 1968; Polônia na década de 1970). Esta combinação é o que vários autores denominaram o homo sovieticus[4].

Nesse marco, os trabalhadores consideravam com total justiça, que o aparato estatal da burocracia lhes era alheio: um lugar “lá em cima” onde se decidiam os planos e as diretrizes que depois eles veriam como refletiria em seu trabalho e em sua vida cotidiana. Estavam acostumados que, de tempos em tempos esses planos e diretivas sofriam reviravoltas. A seus olhos, a Perestroika de Gorbachov aparecia então como mais uma dessas reviravoltas lá de cima, sem perceber que se tratava de algo muito mais profundo: uma mudança do caráter de classe do Estado e o início do processo de restauração.

Quando compreenderam que essa mudança os prejudicava e que, ao mesmo tempo, o regime político repressivo seguia intacto, saíram a lutar contra ele, em especial depois da queda do Muro de Berlim (1989). Esse processo de luta derrubou o regime político construído pelo estalinismo, mas não pode reverter a restauração do capitalismo.

Nossa confusão

O erro parcial no prognostico de Trotsky gerou uma confusão nas organizações trotskistas, a partir do final da década de 1970: havia começado a se produzir mudanças no caráter de classe dos Estado chamados “socialistas” e processos de restauração do capitalismo que não se percebeu porque não estava acompanhado por uma contrarrevolução contra as massas por parte da burocracia.

A LIT-QI também sofreu essa confusão durante vários anos, inclusive em vida de seu fundador Nahuel Moreno. Não compreendemos, por exemplo, o significado das Quatro Modernizações aplicadas por Deng Xiao Ping na China, a partir de 1978, e a definimos como “Uma NEP dirigida por Bukarin[5]. Esta interpretação logo se estendeu também à Perestroika de Gorbachov.

Este erro nos levou a outra confusão política posterior. Quando se produziu as mobilizações que derrubaram o Muro de Berlim e a rebelião da Praça Tiananmen (ambas em 1989), caracterizamos como o início das revoluções políticas contra os regimes burocráticos dos Estados Operários (prevista por Trotsky) e não como o que realmente eram: uma luta contra as ditaduras capitalistas.

Desde o final da década de 1990, se realizaram diversas elaborações que superaram esta confusão e nos permitiram compreender o que havia ocorrido e ajustar nossa posição política ante a realidade atual de países como a Rússia, a China e Cuba[6].

Mas, inclusive com a consideração desse erro parcial (e da confusão que tivemos ao mantê-lo), reafirmamos que a elaboração e os prognósticos de Trotsky na Revolução Traída é a única analise marxista, científica e ajustada aos fatos da realidade sobre o que aconteceu.

Notas:

[1] Ver, por exemplo o documentário “La caída de la URSS: el mito del colapso económico”

[2] Sobre este livro, em especial o seu capítulo IX (Que é a URSS?), tomamos a versão de https://www.fundacionfedericoengels.net/images/PDF/La%20revolucion%20traicionada.pdf.  É interessante também ler o artigo Um estado não operário e não burguês em https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1937/11/25.htm

[3] Ver, por exemplo, La Dinámica del Inmovilismo. El Sistema Soviético entre Crisis y Reforma, de Peter W. Schulze, en https://static.nuso.org/media/articles/downloads/1331_1.pdf

[4] Ver, entre outros materiais, (1986). Homo sovieticus de Aleksandr Zinóviev (Ed. Grove/Atlantic, 1986) y El fin del Homo sovieticus de Svetlana Aleksiévich (Ed. Acantilado, 2015).

[5] A NEP (sigla em russo para Nova Política Econômica) foi aplicada na URSS, a partir de 1921, por proposta de Lênin. Consistia na autorização de funcionamento de critérios capitalistas de propriedade no campo, no comércio e na pequena indústria. A partir de 1923, se foram surgindo alas no partido bolchevique sobre sua aplicação. A esquerda, liderada por Trotsky, era favorável à sua continuidade, mas alertava para os riscos profundos que isso implicava, especialmente o enriquecimento dos proprietários rurais (os kulaks). A direita, expressa por Nicolai Bukharin, ao contrário, era a favor de promovê-la com o slogan “kulaks enriquecei-vos”.

[6] Ver, por exemplo o artigo “China, mito y realidad” (2001) en https://litci.org/es/china-mito-y-realidad/; o “Debate com os dirigentes cubanos” (2001) em https://litci.org/pt/debate-com-os-dirigentes-cubanos-no-forum-social-mundial/ e o libro O veredicto da Historia, de Martín Hernández (Ed. Sundermann, Brasil, 2008).

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