Sudão: Guerra ofuscada, imperialismo e a solidariedade operária
Por: Cesar Neto
Introdução
A guerra no Sudão começou em abril de 2023. Para analistas sobre o tema de guerras, essa é mais violenta que a da Ucrânia ou de Gaza. Se é que há guerras mais ou menos violentas. De fato, o histórico dessa guerra remonta a 2001 e 2003 quando as mesmas forças agora enfrentadas foram responsáveis pelo genocídio em Darfur (zona ocidental do país) com mais de 200 mil mortos. Nesta atual guerra o número de mortos está na casa do 20 mil e os deslocados são por volta de nove milhões de pessoas. Segundo as Nações Unidas esta é uma das “maiores crises de deslocamento” do mundo.
Como em toda guerra na fase imperialista do capitalismo, a violência atinge quantidades e qualidade inimagináveis. Os homens adultos, jovens e crianças são obrigados a defenderem as migalhas que conseguiram acumular no capitalismo decadente. As casas, as pequenas plantações e alguma fonte de trabalho são defendidos como a própria fonte de existência. As mulheres, muitas vezes, humilhantemente são obrigadas oferecer seus corpos a troco de comida para os filhos. Os estupros, como sempre, são uma arma de guerra contra mulheres adultas, jovens e crianças. É a barbárie capitalista instalada e que necessita de nossa solidariedade operária e internacionalista.
O jornal Le Monde assim descreveu o número de mortos: O corpo chega, mas a sepultura ainda não está pronta. Os coveiros cavam como demônios para completar seu trabalho. A procissão já se aproxima, deslizando entre os túmulos que se estendem até onde a vista alcança, espaçados por alguns centímetros. Os funerais não acontecem dentro dos limites do cemitério Ahmed-Sharfi, mas fora dos seus muros. Dentro desta necrópole situada no coração de Omdurman, cidade que faz fronteira com Cartum, não há mais espaço. Dezoito meses de guerra encheram os cemitérios da capital do Sudão e dos seus subúrbios. Os enterros passaram a ser realizados junto ao muro de pedra, num terreno baldio onde jovens do bairro vinham jogar futebol”[1]
A importância econômica, política e geográfica
O Sudão é vizinho do Chad, ex aliado histórico da França e que há poucos dias rompeu essa aliança e está se juntando ao Emirados Árabes Unidos. Também faz fronteira com a Republica Centro Africano que foi o primeiro país a se aliar com os russos ainda nos tempos do Grupo Wagner. Também tem fronteira com a Etiópia que acaba de sair de uma guerra interna contra a população de Tigray e no conflito sudanês está do lado das Forças Armadas do Sudão. Além disso ocupa uma vasta faixa do Mar Vermelho. Do outro lado do Mar Vermelho, a Arábia Saudita está construindo uma mega cidade[2] para nove milhões de pessoas, com 170 quilômetros de extensão, quinhentos metros de altura e duzentos de largura. O projeto conhecido como The Line, já está em construção e qualquer conflito na região pode interferir nesse mega projeto. A distância de Porto Sudão à Jeddah é menos de 300 kms.
O território sudanês é importante por ser uma admirável rota de passagem do contrabando de ouro e diamante vindos do Mali, Burquina Faso, Republica Centro Africana e outros países, rumo aos Emirados Árabes Unidos.
O país tem excelentes terras para agricultura, banhada pelos Rio Nilo Branco e Nilo Azul, e também pelo grande Nilo. Antes da guerra começar, ainda na ditadura al-Bashir, foi concedido a Arabia Saudita, por 99 anos, 1 milhão de acres das terras mais férteis na região leste do país[4].
Ao sul do país há exploração de petróleo, refino e transporte com importante participação chinesa associada a empresas e ministérios controlados por militares sudaneses. A Khartoum Refinery Company, é uma joint venture entre o Ministério de Minas e Energia e a China National Petroleum Corporation-CNPC na qual cada um tem 50%. A Khartoum Petrochemical Co. 95% pertence à China National Petroleum Corporation-CNPC e 5% ao Ministério de Minas e Energia; A CNODC Petrochemical Trading Co. propriedade da CNPC controla os postos de abastecimento e depósitos de derivados de petróleo. A proteção dessas instalações é feita pela Sudanese Armed Force.
No Norte do país opera a empresa russa Al-Sawlaj Gold Mining Co. (ex Meroe Gold) com a proteção feita pelas tropas da Rapid Support Forces.
SAF e RSF: o monstro e sua criatura
A Sudanese Armed Force (SAF), – Forças Armadas Sudanesas – e a Rapid Support Forces (RSF) – Forças de Apoio Rápido – são heranças da ditadura de al-Bashir.
Na disputa territorial em Darfur, envolvendo sudaneses negros e sudaneses árabes ou brancos, foram criados grupos de auto defesa e milícias. As milícias também conhecidas como Janjaweed, era uma frente de sudaneses árabes que praticaram diversos crimes de limpeza étnica, caracterizados como genocídio contra os sudaneses negros.
Ao Janjaweed, sua criação foi uma iniciativa da SAF a mando do ditador al-Bashir e sob comandado de Abdel Fattah al-Burhan. Ao longo dos anos se transformou em Rapid Support Forces sob comando de Mohamed Hamdan “Hemedti” Dagalo.
Assim podemos dizer que as Forças Armadas Sudanesas (SAF) foram os criadores das Forças de Apoio Rápido (RSF)
SAF e RSF: vão ao enfrentamento armado
Entre os vários acordos de “pacificação” do país estava a incorporação dos milicianos das Forças de Apoio Rápido (RSF) de Hemedti às Forças Armadas Sudanesas (SAF) controlado por al-Burham. Os militares aceitavam a incorporação das forças de Hemedti, mas estes deveriam aceitar a disciplina hierárquica da SAF. De fato, os militares não aceitavam que ex milicianos estivessem no mesmo nível hierárquico que eles. É razoável esse argumento, porém a discussão deve incluir os enormes interesses materiais em jogo. Vejamos o que representa cada um deles:
O General Abdel Fattah al-Burhan e os seus pares, herdaram todo o aparato militar do ditador al-Bashir, inclusive mais de 200 empresas nas quais os membros das Forças Armadas do Sudão têm controle total ou parcial.
Ao mesmo tempo al-Burham e o Sudão tem como seu aliado o Egito, ambos atualmente lutam contra a construção da Represa de Renascimento Etíope, pois consideram que milhões de agricultores em ambos os países dependem do rio Nilo para sua subsistência. Afirmam que a construção dos reservatórios da represa levará ao aumento da evaporação, reduzindo a quantidade de água disponível para agricultura. Além disso, o Egito considera que os fluxos de água serão reduzidos na hidroelétrica de Aswan.
O outro aliado é a China que tem importantes interesses materiais no país, em especial na área de petróleo, petroquímica e nas industrias militares.
A Arábia Saudita também é um importante aliado por dois motivos. Um é a segurança para a construção da cidade de Neon (The Line) e o outro motivo é a garantia da aplicação da lei aprovada pelo parlamento sudanês que permite a Arábia Saudita arrendar por 99 anos um milhão de acres das férteis terras de Setit e Upper Atbara.
O General Mohamed “Hemedti” Hamdan Dagalo, tem como grande aliado a Rússia. A relação do Estado Russo com Hemedti se originaram através das ações conjuntas do ex Grupo Wagner e as milícias das Forças de Apoio Rápido (RSF). Como são grupos de milicianos, obviamente, não são relações transparentes, são relações para delinquir, explorar, traficar e comercializar ilegalmente o ouro. Essa relação ganhou maior força após o Grupo Wagner iniciar suas operações na República Centro Africana e estender seus tentáculos no Sahel, em especial no Mali e Burkina Faso.
Os Emirados Árabes Unidos (EAU) têm longa história de colaboração com Hemedti. Foram os EAU que criaram e capitalizaram um banco de desenvolvimento em Darfur após o genocídio praticado na região pela então milícia Janjaweed e que permitiu a Hemedti comprar apoios regionais. Em troca os EAU se associaram na exploração do ouro na região.
A Etiópia é outro aliado de Hemedti na medida que al-Burham e os militares das Forças Armadas do Sudão junto com o Egito estão contra a construção da Represa de Renascimento Etíope, Hemedti se coloca ao lado da Etiópia para enfraquecer al-Burham.
Na condição de vice-presidente Hemedti esteve em quatro países e concidentemente são os que agora o apoiam. São eles: Rússia, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Sudão Sul.
O governo liderado pelas SAF e RSF reprimiu os trabalhadores, a juventude e setores populares
Tratar o conflito no Sudão e denunciar a situação de penúria e fome provocada pela guerra entre ambas facções é correto, mas é insuficiente. De 2019 a 2023, o Sudão viveu um processo revolucionário durante quatro anos de intensas mobilizações, insurreições e surgimento de embriões de organismos de tipo soviético como foram os Comitês de Resistência. Foi tentada uma saída através da criação de um regime democrático burguês depois da queda do Governo de al-Bashir. E esse fato nunca se consolidou.
O primeiro passo jurídico para controlar o movimento foi a revisão da Constituição que preservou diversos elementos do regime bonapartista de al-Bashir e foi elaborada as portas fechadas pelo governo civil-militar. À época assim descrevemos a revisão constitucional: “Em uma sala cheia de altos cargos estrangeiros e sob fortes medidas de segurança, a oposição civil do Sudão e a junta militar que ocupa o poder no país ratificaram neste sábado a Constituição que servirá de roteiro para os próximos três anos e três meses de transição[5]”
A atuação conjunta das Forças de Apoio Rápido (RSF) e o exercito sudanês, também se colocaram na mesma trincheira al-Burhan e Hemedti na repressão militar contra trabalhadores. Após a queda de al-Bashir, foi criado o Governo Militar de Transição e este foi imediatamente repudiado pelas massas. O fato mais relevante nesse período foi o massacre contra manifestantes que acampavam em frente ao Exército exigindo um governo civil. As tropas das Forças de Apoio Rápido (RSF) chegaram na noite e fuzilaram mais de 100 pessoas. Algumas dezenas de pessoas foram assassinadas em outros locais e encontradas boiando no Rio Nilo.
Inúmeras greves, manifestações populares contra o aumento e escassez de alimentos, manifestações camponesas contra o aumento da energia elétrica, foram violentamente reprimidas pelas Forças de Apoio Rápido (RSF) e com o apoio do Exército sudanês.
A crise de direção preparou o caminho da derrota futura
A criação do Conselho Soberano de Transição, se deu logo após o massacre no acampamento em frente ao Exército e com as crescentes mobilizações e o fortalecimento e crescimento dos Comitês de Resistência.
O Conselho Soberano de Transição foi composto pelos dois bandos que agora estão em guerra, do civil Abdalla Hamdok e com a participação do Partido Comunista Sudanês e a mais importante organização social, Associação Sudanesa de Profissionais.
O núcleo dirigente da Assoc. Sudanesa de Profissionais era composto por médicos, advogados e jornalistas. Em um país com elevado número de desempregados, guerras e pobreza, esses profissionais representavam uma elite e seu programa pequeno burguês era alimentado pelo velho Partido Comunista Sudanês.
Um ascenso espetacular que construiu embriões de duplo poder
Há muitas formas de exemplificar um processo histórico. Fotos, musicas, livros que buscam expressar as experiencias das organizações politicas e sindicais, etc. No caso sudanês, um país onde a mutilação genital feminina, a inacreditável submissão da mulher ao homem e tantas outras violações contra as mulheres, nesse país a principal imagem do processo revolucionário aberto em 2019 é a foto de uma estudante de 22 anos, Alaa Salah, usando um thoub branco, seus brincos em formato de disco, falando do teto de um carro para centenas de pessoas que atentamente a escutavam. Ashura Nassor, descreve com riqueza de detalhes essa experiência da luta das mulheres em um processo revolucionário.[6]
Porém, estaríamos dizendo muito pouco se não avançássemos em outros exemplos do processo revolucionário vivido pelas massas sudaneses durante quatro anos, de inúmeras greves operárias com ocupações, sequestro por parte dos trabalhadores de um trem para transportar os manifestantes rumo à Cartum; mobilizações estudantis; motoristas de transporte alternativo que deixavam a cidade sem transporte, greve para a destituição de gerentes vinculados a ditadura de al-Bashir nas empresas estatais; enfim, um sem números de greves e mobilizações dos trabalhadores da cidade e do campo.
O ponto alto desse processo foi a criação dos COMITÊS DE RESISTÊNCIA que organizavam e controlavam as mobilizações. Esses Comitês de Resistência eram compostos por inúmeros sindicatos, organizações barriais e setores da juventude. A mais importante organização desse processo foi a Associação Sudanesa de Profissionais.
al-Burham e Hemedti atuaram contra o ascenso revolucionário e o massacraram
Há um importante debate entre aqueles que fizeram parte dos Comitês de Resistência que ainda estão no país ou na diáspora sobre o caráter de ambos bandos. Há um setor que diz que SAF é mais progressivo e as milícias de Hemedti é o que tem de pior desde o genocídio de Darfur em 2002-2003.
Esse tipo de raciocínio leva a esconder que ambos, Burhan e Hemedti são responsáveis do genocídio em Darfur e que al-Burhan nesse período era o principal homem do ditador al-Bashir, foi quem incentivou a união dos grupos de milicianos na região, que travavam uma luta de limpeza étnica dos sudaneses de origem árabe contra os sudaneses negros. O Hemedti que surge nesse processo é filho desse processo durante a ditadura de al-Bashir e sob o comando militar de al-Burhan.
Após o genocídio em Darfur, Hemedti, ganhou espaço, terceirizou seus soldados para guerras no Iêmen e na Líbia, traficou armas e ouro e construiu um império empresarial, incluindo mineradoras, construtoras e banco, sempre com apoio dos Emirados Árabes Unidos e da Rússia.
A atuação dos distintos imperialismos no conflito sudanês
No conflito sudanês encontramos um intrincado jogo de interesses que vamos tentar explicar. A União Europeia e a Grã Bretanha tem uma responsabilidade histórica no conflito na medida que a União Europeia forneceu armas para a RSF e reforçou as armas da SAF desde os tempos da ditadura de al-Bashir. Hoje as armas dos EUA, Grã Bretanha e União Europeia circulam por vários países interessados no massacre do Sudão, entre eles, o Egito, Emirados Árabes Unidos, Israel e Arábia Saudita. O Irã também participa desta festa macabra com o apoio a SAF.
EUA, Israel e os Emirados Árabes Unidos
A intervenção dos EUA e Israel no conflito no Sudão se dá através dos Emirados Árabes Unidos. Os acordo árabe-israelense foram assinados inicialmente entre Israel e Emirados Árabes Unidos em 2020 na Casa Branca ao final do governo Trump. Em seguida foi assinado entre Israel e Bahrein. Foi denominado de Acordo de Abraão pois este profeta é reivindicado pelo cristianismo, judaísmo e islamismo. Nesse acordo os Emirados Árabes Unidos e Bahrein reconheceram a soberania do Estado de Israel.
Em 2021, durante o governo do Conselho Soberano de Transição, o primeiro ministro, o civil Abdalla Hamdok, promoveu a assinatura do Acordo de Abraão no qual se normalizavam as relações Israel e Sudão, os EUA retiravam o país da lista de patrocinadores do terrorismo e deram um empréstimo de US$ 1,2 bilhão.
Os Emirados Árabes Unidos desde então se transformou em um grande parceiro do Sudão, com apoio dos EUA e Israel. Todos os acordos e recursos relacionados ao Sudão eram tratados diretamente com Hemedti e as Forças de Apoio Rápido (RSF). A ligação histórica entre os traficantes de ouro e diamantes de Hemedti, o Grupo Wagner, ganhou um novo aliado com os Emirados Árabes Unidos que como vimos no gráfico acima é o grande centro receptor de ouro e diamante contrabandeado da África. Hoje se transformaram em grandes fornecedores de armas e financiadores das Forças de Apoio Rápido (RSF).
Em 2018, Uganda, Ruanda e Burundi, declaram ter produzido 3,7 toneladas de Ouro. Ao mesmo tempo o Banco Central dos Emirados Árabes Unidos declarou que comprou desses países 51 toneladas de ouro, ou seja foram contrabandeados 47,3 tonelada somente naquele ano[7]
Israel ainda que não desempenhe um papel central no conflito em si, os sionistas tem o seu próprio interesse no conflito. Israel não tem preferência por al-Burham ou Hemedti, mas tem interesse que o Sudão seja governado por ditaduras militares. Isto por que a maioria da população sudanesa é contra a normalização das relações com Israel e governos não ditatoriais são mais permeáveis as pressões populares.
A China e seu pragmatismo comercial: armas para ambos os bandos
A China ao longo das duas últimas décadas vem diversificando seus investimentos na África, através de empréstimos bancários, infraestrutura e exploração dos recursos naturais. Especificamente no Sudão, aproveitando dos dez anos em que os EUA não nomearam um só Embaixador no país e o fato dos norte americanos considerarem o Estado sudanês como patrocinadores do terrorismo, a China diversificou seus investimentos, primeiro na exploração do petróleo na região sul do país e na construção de um oleoduto saindo do Sudão Sul, atravessando o Sudão e saindo pelo mar Vermelho. Ao mesmo tempo investiu, forneceu tecnologia ou diretamente se associou com joint ventures nas empresas quase 200 empresas controladas pelos militares.
Essa relação chinesa com a extração e transporte de petróleo e com as empresas militares controladas pelas Forças Armadas do Sudão (SAF) se previa que naturalmente se tornassem aliados. Mas, não é bem assim. O pragmatismo falou mais alto e as Forças de Apoio Rápido (RSF), assim como as Forças Armadas do Sudão se utilizam de armas compradas junto aos chineses.
No começo de dezembro al-Burham fez sua quarta viagem ao Sudão Sul desde o inicio dos conflitos com a RSF. É bom lembrar que o Sudão Sul tem sido aliado das Forças de Apoio Rápido. Esta visita coincide com o aumento dos enfrentamentos entre a SAF e a RSF na fronteira entre os dois países, em especial nas regiões de Babnis, Joda e El Jabalein, e também na área de exploração petroleira de Heglig (Hejlij) e Abyei. As duas últimas regiões são reivindicadas pelo Sudão e pelo Sudão do Sul.
Além das áreas de exploração petroleira estará em discussão o oleoduto que transporta petróleo bruto do Sudão do Sul para o Porto de Bashayer, no estado do Mar Vermelho.
O Sudão do Sul, um país sem litoral, exporta seu petróleo, uma fonte vital de receita, através do oleoduto no Sudão, com o governo sudanês recebendo uma parte em taxas de trânsito. Desde fevereiro o transporte está interrompido por problemas de manutenção e os enfrentamentos entre RSF e SAF.
O petróleo representa mais de 90% dos gastos governamentais do Sudão Sul. O Sudão Sul perde mais de 100 milhões de dólares por mês e o Sudão também tem perdas pois recebe 24 dólares por cada um dos 150 mil barris que é transportado diariamente.
Os dois Sudão perdem, mas muito mais perde a China que é quem controla a exploração e o transporte através do oleoduto de sua propriedade. Assim, a China busca a normalização dos conflitos na região para seguir explorando e transportando petróleo desde o Sudão Sul.
A viagem de al-Burham e suas reuniões com as autoridades do Sudão Sul[8], aliados de Hemedti, é para construir um acordo localizado de paz para que os chineses possam seguir saqueando o petróleo da região.
A Rússia do apoio ao RSF às negociações com SAF
Em fevereiro de 2023, portanto dois meses antes do início do conflito militar o Conselho Soberano de Transição e a Rússia, concluíram a revisão do acordo para uma futura base russa no Mar Vermelho. O acordo estava pendente da formação de um governo civil e estabilização do país após a queda de al-Bashir e suas consequências. A legitimidade do referido acordo deveria ser através do futuro Congresso, onde seria ratificado e entraria em vigor. Porém em abril de 2023 começaram os enfrentamentos entre a SAF e a RSF. Os avanços foram interrompidos na medida que deveria ser encaminhado por al-Burham que está enfrentado com Hemedti do RSF e que é apoiado pela Rússia.
Em uma matéria mais recente, junho deste ano, o Deutsch Weller, anunciou: “Presença militar da Rússia no Sudão impulsiona estratégia para África[9]” e informava:
O Sudão está de fato interessado em reativar um acordo sobre a construção de um centro naval russo no Mar Vermelho, disse Agar, de acordo com o diário sudanês Sudan Tribune.
O Sudão e a Rússia vêm discutindo tal acordo há anos. De acordo com um relatório do Institute for the Study of War, já em 2017, o então presidente do Sudão, Omar al-Bashir, e o presidente russo, Vladimir Putin, chegaram a um acordo sobre a construção de uma base russa com espaço para várias centenas de soldados e quatro navios.
No entanto, devido à instabilidade política que então se seguiu no Sudão, seu parlamento não conseguiu ratificar o contrato. Mas as discussões foram retomadas recentemente — aparentemente com mais sucesso.
No final de maio, o comandante-chefe adjunto do exército sudanês (SAF), Yasser al-Atta, anunciou que o Sudão e a Rússia assinariam uma série de acordos militares e econômicos nas próximas semanas.
A estratégia da Rússia para o Sudão passava por suas relações com Hemedti e a RSF desde os tempos do Grupo Wagner. Ainda segundo o DW: “Kremlin inicialmente apoiou as RSF, particularmente porque o semiestatal Grupo Wagner havia conquistado anteriormente os direitos de mineração dos depósitos de ouro do sudanês. Esses direitos são uma fonte constante de moeda estrangeira para a Rússia, enquanto ela trabalha sob sanções ocidentais impostas após sua invasão em grande escala da Ucrânia em 2022”.
Fica evidente que a Rússia busca ampliar seus acordos políticos e militares no Sudão. Porto Sudão está localizado na área controlada pela SAF. Se a Rússia quiser uma base naval lá, precisa conversar com a SAF. A grande dúvida é: será que a Rússia estará disposta a sacrificar as relações com seu antigo aliado na exploração e trafico de ouro através do Sahel e do próprio Sudão.
Ao mesmo tempo que busca ampliar seus acordos políticos e militares no Sudão, no 18 de novembro de 2024, o Conselho de Segurança da ONU tentou votar um projeto de resolução que pedia maior proteção dos civis no conflito no Sudão e um cessar-fogo[10]. A Rússia vetou a proposta. Para a Rússia, quanto mais a guerra desordenar o Estado sudanês, melhor é para o transporte de ouro oriundo do Sahel e que precisa ser contrabandeado via terrestre ou aérea para o Mar Vermelho.
Quem fornece armas e para quem?
Uma visão superficial sobre os apoiadores das duas forças em guerra, poderíamos concluir que Hemedti e a RSF são apoiados pela Rússia e Emirados Árabes Unidos dado os interesses de ambos países na exploração e trafico de outro. E que al-Burham e a SAF teriam o apoio da China dado que as empresas do Exército sudanês são associadas em diversos níveis com empresas chinesas e acima de tudo na exploração petroleira ao sul do país e no oleoduto do Sudão Sul, via Sudão, rumo ao Mar Vermelho.
Porém a realidade não expressa exatamente esse esquema. Tomando em conta algumas resoluções do Conselho de Segurança da ONU, documentos do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute) e documentos da Humans Right Watch e Amnisty International, verificamos que no período 2004 a 2023, as armas em geral têm origem na China, Sérvia, Ucrânia, Bielorrússia, Rússia, Irã, União Europeia, Inglaterra, EUA, Israel e EAU. Esse período de 20 anos, corresponde inclusive aos anos anteriores a queda de al-Bashir em 2019. Isso indica que ambos bandos já tinham armas estrangeiras antes do início do conflito. E também armas produzidas pela Military Industrie Co. uma empresa da SAF.
E hoje? A partir de abril de 2023 novas e modernas armas foram anexadas ao arsenal de ambos lados, incluindo aí diferentes tipos de drones, lançadores de foguetes multi-cano montados em caminhões, bloqueadores de drones e mísseis guiados antitanque, produzidos na China, Irã, Rússia, Sérvia e Emirados Árabes Unidos.
Dados apresentados pela Anistia Internacional mostram que os bloqueadores de drones fabricados em 2024 na China são utilizados por ambos bandos em guerra.
Bloqueador de drones SkyFend Hunter, 2024 – Fabricante: SkyFend – País: China –
utilizados pela SAF e pelo RSF
As principais armas da RSF e sua fabricação: RSF tem usado mísseis guiados antitanque Kornet 9M133M, um tipo não identificado de drone de ataque que lança munições termobáricas Yugoimport de 120 mm de fabricação sérvia, drones de ataque unidirecionais (que detonam ao atingir um alvo), drones fabricados comercialmente, normalmente disponíveis para civis, mas adaptados para lançar munições de morteiro, munições para morteiro de fabricação chinesa produzidas em 2023 e bloqueadores de drones de fabricação chinesa.
Documentos mostram caixas de munições Yugoimport com marcações indicando que foram fabricadas em 2020, essas munições são acopladas a drone. Inicialmente foram adquiridas pelas forças armadas dos Emirados Árabes Unidos no contexto de um contrato com a Adasi, uma subsidiária do fabricante de armas Edge Group, sediado nos Emirados Árabes Unidos, especializado em tecnologia de drones.
Tudo indica que foram usados pelo governo etíope durante o conflito na Etiópia em 2021 e contra as forças Houthi no Iêmen naquele mesmo ano. Pode ser que a mesma fonte tenha fornecido o drone para todas as três forças, incluindo a RSF.
As principais armas da SAF e sua fabricação: Combatentes da SAF possuem e/ou utilizam drones de ataque Mohajer-6 fornecidos pelo Irã, bloqueadores de drones fabricados na China. Esse modelo de drone comercial são modificados para lançar munições de 120 mm.
A Anistia Internacional documentou aquisição de armas de fogo de fabricação turca pelo exército sudanês e a aquisição de armas de fogo de fabricação turca e russa por traficantes de armas com fortes ligações às SAF. Segundo a Amnistia Intl: “Empresas na Turquia e na Rússia exportaram variantes de armas de pequeno porte, como rifles de atirador designados Tigr (DMR) ou rifles Saiga-MK, fabricados pela Kalashnikov Concern e normalmente comercializados para proprietários de armas civis, para revendedores de armas com fortes ligações com o Exército Sudanês. O principal fabricante de armas da Turquia, Sarsilmaz, fornece para as Forças Armadas Sudanesas, enquanto espingardas e rifles de caça turcos normalmente feitos para o mercado civil e fabricados por pequenas empresas como Derya Arms, BRG Defense ou Dağlıoğlu Silah, escapam amplamente das regulamentações de controle de exportação e foram exportados em massa para o Sudão nos últimos anos”. [11]
Os países imperialistas e suas submetrópoles se juntam e se separam de acordo com seus interesses contra o Sudão
Um observador não muito atento poderia concluir que China e Rússia estariam enfrentados na medida em que cada um apoia um dos lados. E que os EUA, a União Europeia, Israel e outros não participavam diretamente do processo. Ao longo da pesquisa fomos descobrindo uma riqueza de detalhes e contradições que nos faz lembrar do Vietnã em 1945. É importante voltar a discussão do Vietnã pois nos leva luz a essa dúvida dos ativistas e revolucionários
“A península Indochina formou parte do outrora poderoso império colonial francês. Com a derrota de 1940, se instaurou na parte sul da França – o norte ficou diretamente sob ocupação das tropas alemãs – o governo de Vichy encabeçado pelo marechal Petain, títere do imperialismo alemão. A administração colonial francesa na Indochina respondia a dito governo e se alinhava, por tanto, junto ao Eixo, como aliada de Alemanha e Japão. Este ultimo tinha invadido a Indochina, porém conservou intacta a administração colonial francesa, pelo menos enquanto ela manteve seu caráter de aliada[12]”
O Chad, o mais importante aliado francês no Sahel, acaba de romper os acordos militares com a França e ceder uma parte de seu território para que os Emirados Árabes Unidos construam uma base que eles dizem ser para fins humanitários. Emirados Árabes Unidos, faz parte do Acordo de Abrão com Israel e com as bençãos dos EUA. A novidade neste aspecto é que os Emirados Árabes Unidos, assim como a Rússia, são apoiadores da RSF de Hemedti. Portanto, aqui temos uma aliança da Rússia, Emirados Árabes Unidos, Israel, EEUU e do Chad.
Os interesses russos no Mar Vermelho estão sendo negociados com a SAF que é apoiado pela China. Esse acordo só será possível, se previamente, houver um acordo militar de não agressão entre a SAF e a RSF. A possibilidade de construir incialmente uma base naval no Mar Vermelho e no futuro uma base militar de maiores proporções, tem colocado uma polêmica muito importante sobre se a Rússia estaria deixando de lado a RSF e começando apoiar as forças da SAF. Há aqueles que dizem que é uma readequação tática dos russos, em função da possível base naval, mas que não alteraria os acordos históricos com a RSF para o trafico de ouro ao longo do Sahel. Como é um processo em desenvolvimento, há muitas lacunas na analise e que deveremos estudar no próximo período.
Ao sul do Sudão estão os campos petroleiros e oleoduto controlados maioritariamente pela China. As forças armadas tem participação nos negócios com os chineses. O general al-Burhan acaba de realizar sua quarta viagem ao Sudão Sul (que apoia a RSF) para discutir uma zona de exclusão que está sendo negociada entre a SAF e a RSF.
Entre RSF e a SAF não há escolha possível
Há um importante debate na vanguarda sudanesa que vive no país e também os que estão na diáspora sobre se é possível escolher e apoiar a um dos bandos. Há uma linha de pensamento que afirma que o correto seria apoiar a SAF contra as milicias de Hemedti, isto é, a RSF.
Esses companheiros, em geral, de matriz reformista e alguns estalinistas, tratam de encontrar um campo burguês progressista no meio da guerra. Porém, essa visão vergonhosamente capituladora não toma em conta que os trinta anos da ditadura militar de al-Bashir, tiveram alguns comandantes militares, mas o mais importante é que neste ciclo histórico foi chefiado por al-Burham, vinculado a Irmandade Muculmana. A SAF sob a direção de al-Burham unificou as milícias de sudaneses árabes contra os sudaneses negros em Darfur e tem sido cúmplice desses crimes, impondo um sistema de desigualdade e opressão que beneficiou apenas as elites.. A milicia Janjaweed foi criada por iniciativa de al-Bashir e desde sempre dirigida por Hemedti.
Então na conta de al-Burham e Hemedti temos que colocar mais de 200 mil mortos em Darfur; conspiração permanente durante o final da ditadura de al-Bashir contra o processo revolucionário que derrubou al-Bashir, conspiraram para impor um novo governo militar e que foi derrotado pelas mobilizações. Hemedti e al-Burham são responsáveis por fuzilar mais de 100 ativistas acampados em frente ao Exercito na luta contra o Governo Militar de Transição, além disso reprimiram inúmeras greves.
Os dois comandantes da SAF e do RSF, foram derrotados pelos ascenso revolucionário das massas sudanesas e foram obrigados a taticamente aceitar o Conselho de Transição Soberano. Aceitaram taticamente e estrategicamente trataram de derrotar, primeiro com inúmeros casos de repressão as mobilizações e depois a partir do enfrentamento militar entre ambos sufocaram pelo terror as organizações e iniciativas da classe trabalhadoras, estudantes, camponeses e setores populares. “Esta guerra pode parecer uma batalha entre duas facções militares rivais, mas é muito mais profunda: é uma guerra entre dois grupos de opressores contra os oprimidos, um choque entre duas forças contrarrevolucionárias e as aspirações revolucionárias do povo sudanês. As raízes desta guerra não estão em rivalidades pessoais, mas na contradição cada vez mais profunda entre a revolução de 2018, que buscava derrubar décadas de ditadura, e as forças contrarrevolucionárias que sequestraram o aparato estatal, apoiadas por potências externas para esmagar essa mesma revolução.[13]”
Aqueles que dizem que é preciso apoiar a SAF partem da ideia que a vitória da SAF é a melhor forma de preservar a unidade do Sudão e impedir que a RSF destrua o país com fez em Darfur. Há aqueles que reconhecem a SAF como uma instituição corrupta, mas que poderá se reformar e revitalizar depois de derrotar a RSF. Esses argumentos em nenhum momento tratam do caráter de classe do SAF que junto com a RSF, sempre, reprimiram a luta dos trabalhadores durante a luta contra a ditadura de al-Bashir, contra o Governo Militar de Transição e depois no próprio Governo Soberano de Transição que era conformado por SAF, RSF, Partido Comunista e Associação de Profissionais.
Cinco grandes tarefas para os revolucionários sudaneses
Com toda a humildade de quem escreve desde longe, mas com o olhar para outros processos parecidos, nos parece que há cinco grandes tarefas que são:
- Combater a ilusão de que haja um lado progressista na guerra
A ilusão no caráter agregador do SAF e a retirada de seu caráter de classe e também a serviço do imperialismo chinês deve ser combatida como passo inicial para disputa programática com o reformismo e as diferentes variantes estalinistas.
- Reconstruir pela base os Comitês de Resistencia
Os Comitês de Resistencia, verdadeiros embriões de duplo poder como foram os sovietes e precisam ser reconstruídos desde abaixo. A SAF e a RSF sempre viram os Comitês de Resistencia como o inimigo a ser derrotado.
- Como no R. D. Congo construir embriões de organismo de auto defesa independente da SAF
A guerra e os sucessivos massacres militares, mortalidade de por falta de hospitais e médicos sequestrados ou diretamente assassinados, impõe a necessidade de construir organismos de auto defesa como os que estão surgindo na Rep. Democrática do Congo.
- Apesar da situação defensiva, formar e organizar quadros revolucionários para o pós guerra
A luta pela sobrevivência frente aos ataques militares, à fome e a falta de atenção médica, coloca o movimento de massas na defensiva e as vezes sem esperanças imediatas. Com todas as dificuldades que sabemos, mesmo assim, é preciso retomar a formação e organização de quadros revolucionários tal qual fizeram os trotskistas alemães no interior do exército nazista.
- Construir comitês de solidariedade com os trabalhadores do mundo
Por uma grande campanha internacional de solidariedade aos trabalhadores, jovens e a população do Sudão. Fazer valer a celebre frase: proletários do mundo uni-vos!
[1] Guerre au Soudan : à Khartoum, capitale dévastée, la mort frappe à chaque coin de rue – https://www.lemonde.fr/afrique/article/2024/11/11/guerre-au-soudan-a-khartoum-capitale-devastee-la-mort-frappe-a-chaque-coin-de-rue_6388428_3212.html?lmd_medium=email&lmd_campaign=trf_newsletters_lmfr&lmd_creation=afrique&lmd_send_date=20241116&lmd_email_link=call_titre_1&M_BT=129636131219501
[2] Vídeo mostra construção impressionante de cidade futurista com 170 km no deserto – https://olhardigital.com.br/2024/02/27/ciencia-e-espaco/video-mostra-construcao-impressionante-de-cidade-futurista-com-170-km-no-deserto/#:~:text=Um%20projeto%20extremamente%20ambicioso%20est%C3%A1,do%20pa%C3%ADs%2C%20chamado%20The%20Line.
[3] INTERPOL – Enhancing Africa’s response to transnational organized crime – https://enactafrica.org/research/interpol-reports/illegal-gold-mining-in-central-africa
[4] Bill allows Saudi Arabia to cultivate Sudan lands – https://www.dabangasudan.org/en/all-news/article/bill-allows-saudi-arabia-to-cultivate-sudan-lands
[5] O governo de al-Bashir caiu, mas a ditadura continua viva. Abaixo a ditadura e sua constituição – https://litci.org/pt/2022/01/31/65926-2/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[6] Sudão: A luta das mulheres em uma revolução inacabada – https://litci.org/pt/2020/12/08/62649-2/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[7] INTERPOL – Enhancing Africa’s response to transnational organized crime – https://enactafrica.org/research/interpol-reports/illegal-gold-mining-in-central-africa
[8] El Burhan visits South Sudan ‘to discuss four critical files’ – https://www.dabangasudan.org/en/all-news/article/el-burhan-visits-south-sudan-to-discuss-four-critical-files
[9] Russia’s military presence in Sudan boosts Africa strategy – https://www.dw.com/en/russias-military-presence-in-sudan-boosts-africa-strategy/a-69354272
[10] Resolução para conter a guerra no Sudão é vetada no Conselho de Segurança – https://news.un.org/pt/story/2024/11/1840866
[11] New weapons fuelling the sudan conflict – https://www.amnesty.org/en/latest/research/2024/07/new-weapons-fuelling-the-sudan-conflict/
[12] GRECO, Eugenio. Crónica Política de la guerra de Indochina. Revista de América, nᵒ3, mayo de 1975
[13] The Illusion of Choice: Why People Should Reject Both Sides of the War in Sudan – https://menasolidaritynetwork.com/2024/11/21/the-illusion-of-choice-why-people-should-reject-both-sides-of-the-war-in-sudan/