Os EUA querem recuperar seu “quintal”

Por: Redação
Em abril, Pete Hegseth, chefe do Pentágono (Departamento de Defesa dos EUA), se reuniu com autoridades panamenhas para discutir o uso do Canal do Panamá por embarcações militares dos EUA. Hegseth declarou que “a China tem muita influência sobre o Canal… não podemos permitir que ela controle nosso quintal… Vamos recuperá-lo[1]. O mesmo objetivo foi expresso por Donald Trump, que afirmou que os Estados Unidos têm o “direito histórico” de possuir o Canal[2]. Trump conseguirá atingir seu objetivo
Para responder a essa pergunta, é necessário fornecer um breve histórico da política dos EUA em relação à América Latina, ao Panamá e seu papel na construção do Canal. O termo “quintal” é uma derivação da Doutrina formulada pelo presidente dos EUA, James Monroe, em 1823: “América para os americanos”. Isso significava, na realidade, que o continente americano era o “ambiente natural” para a expansão e dominação da burguesia americana. A América Central e o Caribe deveriam ser o “quintal” dos EUA.
A dinâmica e agressiva burguesia americana teve que esperar até o final do século XIX para atingir esse objetivo. Entre essas duas datas, concentrou-se na expulsão dos povos nativos de suas terras, na guerra com o México para roubar a metade norte de seu território, na duríssima Guerra Civil que o dividiu entre 1861 e 1865 e, depois, na chamada Conquista do Oeste[3].
Tendo consolidado seu domínio do Atlântico à costa do Pacífico, e do Canadá ao norte ao rio Bravo no sul, a burguesia americana começou sua expansão para seu “quintal”. No final do século XIX, entrou em guerra com a Espanha para garantir a “independência” de Cuba (que se tornou uma semicolônia ianque). Depois dessa mesma guerra, transformou Porto Rico em um “estado livre associado”. Separou o Panamá da Colômbia para garantir a construção e o controle do primeiro canal interoceânico. Transformou outros países da América Central em “repúblicas bananeiras” dominadas pela United Fruit Company.
Em 1901, o presidente Theodore Roosevelt acrescentou a ideia do Big Stick (Grande Porrete): se os países não aceitassem a submissão ao imperialismo ianque “por bons meios”, os EUA a imporiam “por maus meios”. Foi isso que fez durante quase todo o século XX: realizou diversas invasões em países da América Central e promoveu inúmeros golpes de estado contra os governos que ofereceram alguma resistência ao seu domínio. Após a Segunda Guerra Mundial, a política do Big Stick se espalhou para o resto da América Latina e outras regiões do mundo[4].
Panamá
Este país tem um território de cerca de 75.000 km2 na parte mais meridional e estreita do istmo centro-americano. Desde a colonização espanhola, esse território sempre pertenceu às instituições políticas da atual Colômbia. Após a independência da Colômbia (1819), alguns setores burgueses panamenhos fizeram várias tentativas frustradas de se separar do Panamá e se estabelecer como país.
O território panamenho abriga a menor distância terrestre entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Portanto, é de grande importância no transporte de mercadorias entre os dois oceanos. Nesse sentido, em 1855, foi inaugurada no país a primeira linha ferroviária interoceânica, de propriedade da empresa norte-americana Panama Railroad Company.
Então começaram a planejar a construção de um canal através de seu território para que os navios mercantes pudessem passar de um oceano para o outro. A primeira tentativa foi feita pela Compagnie Universelle du Canal Interocéanique francesa em 1881.
Este projeto falhou, mas foi assumido pelos capitalistas americanos. Em janeiro de 1903, o Tratado Herrán-Hay foi assinado entre os Estados Unidos e a Colômbia para a construção do Canal. A Colômbia estava saindo de uma longa guerra civil entre liberais e conservadores (1899-1902). No mesmo ano, o Senado colombiano rejeitou o tratado.
Em resposta, os capitalistas americanos encorajaram os políticos panamenhos a organizar uma rebelião separatista. Em meio à grande crise colombiana, a rebelião triunfou e, em novembro de 1903, foi estabelecida uma Junta de Governo Provisório, presidida por José Agustín Arango, que declarou a independência do Panamá.
O Canal do Panamá
Em 1907, Arango viajou para os Estados Unidos e assinou o Protocolo Taft-Argango, que atualizava o Tratado Herrán-Hay para a construção do Canal do Panamá. A construção tinha iniciado em 1904 e foi concluída em 1914, utilizando a mais moderna tecnologia da época. Os EUA não apenas ganharam o controle do Canal, mas também uma área de 8 km de cada lado.
Era um enclave imperialista em território panamenho controlado por forças militares dos EUA. Por outras palavras, a emergência do Panamá como país está intimamente relacionada com a submissão semicolonial aos EUA e com a rendição de parte da sua da sua soberania.
Como fato adicional: entre 1946 e 1982, a infame Escola das Américas operou na Zona do Canal. Nela, “professores” americanos instruíam militares latino-americanos em doutrinas e táticas de contrainsurgência, execução de golpes de estado, métodos de tortura e formação de “esquadrões da morte”[5].
Em 9 de janeiro de 1964, uma onda de protestos populares começou contra o status do Canal do Panamá e sua Zona. Eles foram duramente reprimidos pela polícia panamenha e pelas tropas norte-americanas. A repressão matou 18 pessoas e feriu 324.
Esses eventos iniciaram uma profunda crise no regime político panamenho. Em 1968, o mando intermediário da Guarda Nacional (exército) realizou um golpe de estado, derrubando o presidente Arnulfo Arias Madrid e instalando uma ditadura militar. Após a ascensão do General Omar Torrijos como líder da Guarda Nacional e chefe de Estado, este regime iniciou uma mudança em direção ao nacionalismo burguês populista (semelhante ao peronismo argentino).
Panamá recupera soberania sobre o Canal
Nesse contexto, em 1977, foram assinados os Tratados Torrijos-Carter, que estabeleceram um cronograma para a transferência da administração do Canal às autoridades panamenhas e o abandono gradual pelos EUA das instituições e infraestrutura civil e militar na Zona do Canal.
Torrijos morreu em 1981. Em 1983, o general Manuel Noriega assumiu o comando da Guarda Nacional. Sob ele, o regime militar assumiu um caráter duramente repressivo e iniciou uma reaproximação com os EUA, embora mantivesse uma retórica anti-imperialista e relações com Fidel Castro. Ao mesmo tempo, inseriu o Panamá na rota do narcotráfico internacional[6]. Finalmente, em dezembro de 1989, o governo de George W. Bush (pai) invadiu o Panamá, derrubou o governo, prendeu Noriega e o transportou para os EUA, onde foi julgado e condenado.
Noriega foi substituído por um governo civil liderado por Guillermo Endara, que em 1992 aprovou uma nova constituição que dissolveu a Guarda Nacional e a substituiu por um bloco de forças policiais. Dessa forma, consolidou-se um regime democrático burguês baseado em eleições, que perdura até os dias de hoje. Este regime foi promovido pelo imperialismo norte-americano e está profundamente ligado a ele.
O Canal novamente
Em 1999, por meio do Tratado Torrijos-Carter, o Panamá assumiu o controle definitivo do Canal. Por outro lado, isso estava começando a se tornar obsoleto devido ao tamanho gigantesco dos navios NeoPanamax atualmente usados para transporte internacional de cargas. Em 2006, o governo panamenho abriu uma licitação para as obras de expansão, que foi vencida pela empresa espanhola Sacyr. As obras foram concluídas em 2016 e dobraram a capacidade do Canal. Houve muitas reclamações sobre o impacto ambiental desta obra.
Entretanto, essa capacidade é excedida pela demanda atual do transporte internacional. Por isso, as vagas são reservadas com antecedência e há uma longa lista de espera. Esse atraso pode ser reduzido pagando um adicional de 15% da tarifa básica.
Embora o papel do Canal do Panamá no transporte marítimo internacional tenha diminuído (atualmente 5% do total), ele continua muito importante. Navios de dois países respondem pela maior parte desse fluxo: os EUA com 67% e a China com 23%. Há diferenças entre eles: uma parcela significativa do que os navios americanos transportam é, na verdade, comércio doméstico, enquanto os navios chineses transportam mais da metade de suas exportações (produtos industriais destinados aos EUA).
China e Panamá
Um dos argumentos de Trump é que o Panamá e o Canal são atualmente “controlados pela China”, um país que os EUA apontaram como seu principal adversário. É indiscutível que a China aumentou sua influência no Panamá nos últimos anos. Vamos analisar mais profundamente a natureza e a extensão dessa influência.
O imperialismo norte-americano é hegemônico no mundo, assim como na América Latina. Mas o emergente imperialismo chinês está crescendo no continente sul-americano e já é o principal parceiro comercial de vários de seus países.
Com o desenvolvimento significativo de sua indústria, a China se tornou o maior exportador mundial, especialmente de produtos industriais e componentes. A grande maioria dessas exportações é realizada por transporte marítimo. Para apoiar esse transporte marítimo, por um lado, a China se tornou a principal fabricante de navios do mundo.
Por outro lado, lançou o “Cinturão Econômico da Rota da Seda”, que inclui acordos de livre comércio com outros países e a construção de uma “cadeia” de portos neles, fornecendo uma base física para a Rota. A construção (ou reforma) desses portos é financiada e realizada por empresas chinesas que os administram. Um exemplo na América Latina é o grande porto peruano de Chancay, inaugurado no ano passado.
Pelo que já analisamos, foi muito importante para a China integrar o Canal do Panamá à Rota da Seda, e ela trabalhou duro para conseguir isso: em 2018, o Panamá se tornou o primeiro país latino-americano a aderir. Em troca, a China concordou em investir em infraestrutura para manter e melhorar o Canal, bem como o que hoje é a Zona Franca de Colón[7].
Especificamente, a China controla dois dos cinco portos adjacentes ao Canal (Balboa no Pacífico e Cristóbal no Atlântico) operados por uma subsidiária da empresa CK Hutchison Holdings, de propriedade do empresário de Hong Kong Li Ka-shing, embora também participem capitais britânicos[8].
O artigo acima mencionado, publicado pela BBC britânica, um veículo imperialista muito sério, nos oferece uma análise equilibrada da verdadeira extensão da influência chinesa no Canal e no Panamá. Entre outras coisas, destaca que não há presença militar chinesa no Canal ou no país.
EUA e Panamá
Vimos que o próprio surgimento do Panamá como país foi impulsionado pelo imperialismo norte-americano e sempre esteve completamente subordinado a ele, exceto pelo breve período do experimento nacionalista burguês de Torrijos. Mas após a queda de Noriega, a situação voltou essencialmente à mesma: uma subjugação semicolonial muito forte.
Em primeiro lugar, na esfera econômica e financeira: a moeda oficial do Panamá é o dólar americano, uma característica diretamente colonial, já que o país não tem soberania monetária. Ao mesmo tempo, o Panamá se tornou um paraíso fiscal e bancário, onde capitais que fugiam de muitos países ao redor do mundo buscavam refúgio e se escondiam. Uma realidade que veio à tona com os Panama Papers[9].
Nesse contexto, quem mais aproveita esse paraíso é a burguesia e até mesmo a classe média alta dos EUA, que investem no Panamá, considerando os benefícios do atrativo turístico da Cidade do Panamá. Dessa forma, a cidade passou a ser vista como “a Miami da América Latina”, recebendo inúmeros investimentos imobiliários, principalmente dos EUA, e vivenciando um desenvolvimento significativo nesse setor[10].
Passemos agora à questão militar: após o acordo Torrijos-Carter, não houve mais presença de tropas americanas no país. No entanto, isso mudará em breve: como parte do acordo de “cooperação bilateral de defesa” assinado por Hegseth e o presidente panamenho José Raúl Mulino, o Panamá “autorizou a presença de tropas e contratados dos EUA em áreas adjacentes e de acesso ao Canal do Panamá”[11]. Ao mesmo tempo, na região, mantém uma base militar permanente em Honduras, a base naval da Baía de Guantánamo, em Cuba, e realiza exercícios navais contínuos em todo o Caribe por meio de sua 4ª Frota.
Esta não foi a única concessão que Mulino fez aos EUA em seu encontro com Hegseth: também foi acordado que “navios, embarcações militares e embarcações auxiliares (dos EUA) passarão primeiro e[12] livremente pelo Canal do Panamá”.
Por fim, completando o quadro da ofensiva dos EUA, em fevereiro deste ano, o Panamá abandonou a Rota da Seda[13]. Em março foi anunciado que “Um consórcio de investidores liderado pela gigante BlackRock concordou em comprar os portos de Balboa e Cristobal no Canal do Panamá que pertencem à empresa chinesa CK Hutchison, sediada em Hong Kong”[14].
Trump não precisou invadir o Panamá
Em suma, além do tom belicoso e ameaçador, o governo Trump não precisou disparar um único tiro para atingir todos os seus objetivos no Panamá e no Canal. Ele conseguiu isso pacificamente graças à servilidade semicolonial do governo panamenho e ao “afastamento” da empresa chinesa.
Neste contexto, nós da LIT-QI repudiamos suas declarações e o conceito de que “o Canal pertence aos EUA”. Defendemos que ele pertence ao povo panamenho e que sempre apoiaremos sua luta para exercer plena soberania sobre o Canal ou defendê-lo caso seja atacado pelos EUA[15]. O que já está acontecendo: Esta semana, uma greve nacional liderada pela SUNTRACS (trabalhadores da construção civil) incorporou ao seu programa original de luta (contra as medidas de austeridade do governo Mulino e a construção de uma mina e uma barragem que destruiriam o meio ambiente natural de muitas comunidades rurais) a denúncia da “entrega da soberania do Panamá ao presidente Trump”[16].
[1] https://actualidad.rt.com/actualidad/546407-jefe-pentagono-chinos-controlar-patio-trasero
[2] https://www.youtube.com/watch?v=G4qydusWdck
[3] La independencia de los Estados Unidos – Liga Internacional de los TrabajadoresLiga Internacional de los Trabajadores
[4] America’s backyard : the United States and Latin America from the Monroe Doctrine to the War on Terror : Livingstone, Grace : Free Download, Borrow, and Streaming : Internet Archive.
[5] https://abcnews.go.com/International/story?id=81917&page=1
[6] https://www.lanacion.com.ar/el-mundo/manuel-noriega-aliado-y-a-la-vez-enemigo-de-eeuu-hundio-a-panama-en-el-terror-nid2028841/?gad_source=1&gbraid=0AAAAAD3X_xjk6EcMNEe4But9JjNFgBv4t&gclid=CjwKCAjw8IfABhBXEiwAxRHlsE0DtvNjfCEefEmV2cnMPfipBwlj_mGA9O7jBEE9dWWMX_eyaOzkexoCND8QAvD_BwE
[7] https://www.nodal.am/2018/12/panama-recibe-al-presidente-chino-y-es-el-primer-pais-latinoamericano-en-adherirse-a-la-ruta-de-la-seda/
[8] https://www.bbc.com/mundo/articles/c3vp9rw5rero#:~:text=De%20octubre%20de%202023%20a,y%20terminales%20cerca%20del%20canal.
[9] https://litci.org/es/panama-papers-la-evidencia-de-un-sistema-intrinsecamente-corrupto/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[10] http://swissinfo.ch/spa/panam%C3%A1-busca-posicionarse-como-destino-de-inversi%C3%B3n-inmobiliaria-frente-a-urbes-como-miami/73378346
[11] https://www.infobae.com/america/america-latina/2025/04/11/panama-autorizo-el-despliegue-de-fuerzas-militares-de-estados-unidos-en-areas-estrategicas-proximas-al-canal/
[12] https://actualidad.rt.com/actualidad/546407-jefe-pentagono-chinos-controlar-patio-trasero
[13] https://elmercantil.com/2025/02/04/panama-se-arruga-ante-trump-y-abandona-la-ruta-de-la-seda-de-china/
[14] https://www.bbc.com/mundo/articles/c93k90wev2eo
[15] https://litci.org/es/el-canal-es-de-panama/?utm_source=copylink&utm_medium=browser
[16] https://www.telesurtv.net/huelga-nacional-panamenos-denuncian-medidas-del-gobierno-de-mulino/