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Economia

As receitas de Davos 2025: IA e ajuste

fevereiro 4, 2025

Por: Alejandro Iturbe |

Recentemente, foi realizada uma nova reunião anual do Fórum Econômico Mundial (FEM), mais conhecida como Fórum de Davos, devido à cidade suíça em que, em meio a um grande luxo, essas reuniões são realizadas. Junto com as novas estrelas da “nova burguesia tecnológica”, a participação de Donald Trump e do presidente argentino Javier Milei foram muito destacadas. O que aconteceu nesta reunião do FEM?

O FEM Davos foi fundado em 1971 por iniciativa do economista alemão Klaus Martin Schwab, para realizar reuniões anuais dos CEOs das grandes empresas e bancos do mundo, dos líderes políticos das principais potências, dos presidentes de organizações financeiras internacionais como o FMI, o Banco Mundial e o BCE. A eles se somavam economistas, analistas políticos e intelectuais.

Como diz um artigo que publicamos no ano passado, as elites mais ricas e poderosas do capitalismo mundial (La crème de la crème) se reuniram para analisar os problemas mais sérios enfrentados pelo sistema capitalista e elaborar propostas para respondê-los[1]. Uma informação mostra nitidamente esse conteúdo de classe do FEM: O Fórum é financiado com as contribuições de cerca de mil empresas associadas. A empresa membro típica é uma empresa global com mais de cinco bilhões de dólares em volume de negócios.”[2]

A crise econômico-financeira internacional que eclodiu em 2007-2008, e suas consequências, provocaram uma crise do próprio FEM Davos como um “farol” do capitalismo imperialista, devido à sua incapacidade de elaborar propostas viáveis e eficazes. Banqueiros, chefes de organizações financeiras internacionais e economistas ortodoxos deixaram de ser as “estrelas” que todos queriam ouvir e começaram a ser cercados de descrédito. As novas tecnologias e sua aplicação estavam ocupando o centro do palco. Essa mudança foi nitidamente evidenciada na reunião de 2010, onde o tema foi “Dominando a Quarta Revolução Industrial”.

O cenário continuou sendo o exclusivo e muito caro centro internacional de esqui. Mas o FEM se tornou uma espécie de Shark Tank[3] de luxo  no qual alguns “inovadores tecnológicos” economizaram por anos para pagar a taxa básica de inscrição de US $ 20.000 e o custo de um hotel de médio porte, bebidas, comida e roupas adequadas. Era um “investimento” para poder oferecer suas ideias e conseguir investidores entre grandes empresas. Os presidentes latino-americanos também participam para “oferecer” seus países a “grandes investidores” (Lula do Brasil o fez em 2010 e Macri da Argentina em 2018).

Davos aprofunda seu “giro tecnológico”

Não foi por acaso, então, que um dos pontos centrais das conferências e reuniões foi sobre Inteligência Artificial (IA).[4] Não só em termos de fabricação de chips e hardware e fabricação de novos produtos, mas, fundamentalmente, em sua aplicação, como ferramenta para reduzir empregos e aumentar a produtividade do trabalhador.

Por isso, uma das “estrelas tecnológicas” do FEM foi Marc Benioff, fundador e CEO da Salesfore, fundada em 1999 e atualmente a empresa mais importante no que se chama de CRM (Customer Relationship Management- Gestão de Relacionamento com o Cliente). Benioff realizou inúmeras reuniões em Davos, incluindo, como veremos, com Javier Milei.

Discurso de Trump

Há poucos dias, Donald Trump foi empossado novamente como presidente dos Estados Unidos. Antes disso, em seu estilo vociferante, havia anunciado que, durante seu mandato, seu país recuperaria a propriedade do Canal do Panamá, compraria a ilha da Groenlândia e que o Canadá deveria se tornar parte dos EUA.[5]. No entanto, sua ação internacional imediata foi “pressionar agressivamente” o governo israelense de Benjamin Netanyahu a aceitar um cessar-fogo em Gaza (algo que até agora Netanyahu se recusava terminantemente a assinar).[6] Ao mesmo tempo, já começou a implementar o plano de deportação de imigrantes que propôs em sua campanha.

Em Davos, Trump reafirmou sua disposição de se encontrar com Putin para acabar com a guerra na Ucrânia (um “campo de assassinatos absoluto”). Certamente, em sua cabeça está o plano já proposto por Biden: entregar a Putin a faixa oriental do país que ele agora domina (e assim dar-lhe uma “retirada digna” da guerra) e pressionar Zelensky e a burguesia ucraniana a aceitar essa divisão[7].

Ao mesmo tempo, em comparação com seu estilo habitual, seu discurso para os grandes empresários do mundo foi “tranquilo”, mas muito nítido: “Minha mensagem é muito simples, venham fabricar seus produtos nos Estados Unidos”.[8] Para apoiar esse apelo para investir em seu país, Trump acrescentou que “lhes daremos alguns dos impostos mais baixos de qualquer nação da Terra”. Precisamente, um grande corte de impostos para as empresas é um ponto central da política econômica que Trump quer aplicar (ele já havia feito um corte significativo em seu primeiro mandato).

Ao mesmo tempo, anunciou que a partir de 1º de fevereiro aplicará uma política protecionista, com tarifas sobre todas as importações feitas por seu país, que atualmente é o principal importador do mundo e tem um déficit significativo em sua balança comercial. Por ordem de valor das importações, os principais países de origem são China, Canadá, Alemanha, México e Japão.

As importações da China têm um tratamento diferenciado. Até agora, os carros elétricos tinham uma tarifa de 100% e o aço e alumínio de 25%. Eletrônicos acabados, como telefones celulares, tablets, computadores pessoais e monitores, não pagavam tarifas. Tampouco pagavam os considerados “produtos manufaturados diversos” (joias, brinquedos, roupas esportivas e alguns eletrodomésticos).

Agora deverão pagar uma “tarifa geral” de 10%.[9] Isso aumentará os custos de empresas como Apple e Microsoft, que fabricam seus produtos na China e depois os “importam”. Também para a grande rede comercial WalMart que importa da China muitos dos produtos que vende, fabricados por empresas chinesas “cativas”. Essa tarifa geral de 10% também será aplicada às importações originárias da Alemanha, Japão e outros países.

Ao mesmo tempo, anunciou que aplicará uma tarifa de 25% sobre as importações originárias do Canadá e do México, que até agora não pagavam nada, dado o acordo de livre comércio com os Estados Unidos (NAFTA- Acordo de Livre Comércio da América do Norte), assinado em 1992. De qualquer forma, são países diferentes.

O Canadá é um país imperialista forte que desenvolveu sua economia associando-se ao “irmão mais velho”, acessando assim seu grande mercado interno, para o qual exporta petróleo bruto e refinado, gás natural, veículos leves e pesados e máquinas. Essa acumulação permitiu que sua burguesia se expandisse e se transformasse em uma das principais potências da mineração mundial com pesados investimentos em vários países semicoloniais (Argentina, México e Peru).

O México é um país semicolonial que “sofreu” as consequências do NAFTA. Por um lado, a agricultura tradicional baseada no milho, bombardeada pela produção subsidiada dos EUA, foi reduzida.  Ao mesmo tempo, sua indústria doméstica foi bastante reduzida e transformada em montadoras para empresas estadunidenses (especialmente no norte do país), cujos produtos são então “exportados para os EUA por essas empresas ou pelas empresas subsidiárias “nacionais”. Uma parte inteira da economia mexicana é baseada nessas montadoras. Mas, além de suas profundas diferenças, a medida de Trump representa um duro golpe para as economias do Canadá e do México.

Trump afirma que devolverá os EUA à sua “idade de ouro”, quando seu país se tornou a potência imperialista hegemônica e, nesse quadro, a principal potência industrial. Isso começou a mudar na década de 1980 com a chamada globalização, quando a burguesia imperialista estadunidense começou a transferir uma parte significativa de sua produção industrial para países com custos trabalhistas muito mais baixos (os Tigres Asiáticos, China e as montadoras no México e em outros países). A economia dos EUA se concentrou em dominar o sistema financeiro global e em controlar rigidamente as novas tecnologias.

Trump está tentando reverter esse processo e pressionar as empresas a voltarem a fazer investimentos industriais nos EUA. Por um lado, por meio de vantagens fiscais que compensem os custos trabalhistas domésticos mais altos, algo que a maioria da burguesia americana certamente apoiará (assim como fez em seu primeiro mandato). Por outro lado, por meio de tarifas que aumentam o preço desses produtos importados. Sobre este último ponto, Trump pretende “ir contra a vida”. Ou seja, contra as tendências objetivas da atual dinâmica de acumulação do capitalismo imperialista.    

O discurso de Milei e o “laboratório argentino”

A participação do presidente argentino Javier Milei foi uma das mais comentadas pela imprensa internacional. Na reunião central, Milei fez um discurso repugnante cheio de ódio contra a comunidade LGBTQ+ e negação da opressão e violência machista contra as mulheres. Em Davos, os participantes do FEM optaram por permanecer em silêncio e “fazer de conta que não ouviram”.

Mas, na Argentina, houve sim uma reação. Um grupo de ativistas da comunidade LGBTQ+ convocou uma assembleia em 27 de janeiro, que contou com a presença de milhares de pessoas. Nessa assembleia, além do repúdio a Milei, resolveu-se convocar uma Marcha Federal do Orgulho Antifascista e Antirracista para sábado, 1º de fevereiro, em Buenos Aires e em outras cidades do país. Um grande número de setores e organizações está aderindo e convocando a marcha, que pode se tornar uma expressão unificada de luta contra o governo Milei.

Ao mesmo tempo, Milei participou de muitas reuniões menores. Nelas, CEOs e outros participantes expressaram uma ideia formulada no ano passado pelo economista francês Robert Boyer: a Argentina é o laboratório de um experimento social sobre quanto ajuste uma sociedade pode suportar sem se rebelar ou explodir[10]. Ou seja, eles estão observando com expectativa a dinâmica argentina para ver até que ponto as políticas de “ajuste duro” podem ser aplicadas sem que isso leve a uma explosão.

É interessante notar que o governo Donald Trump pretende aplicar um forte ajuste do orçamento fiscal dos EUA, especialmente dos gastos sociais. Esse ajuste é essencial do ponto de vista burguês diante da diminuição da renda que a redução dos impostos sobre as empresas representará. Quem está planejando esse ajuste é Elon Musk, que elogia permanentemente Milei e seu ajuste brutal. Musk já alertou que a base mínima para esse ajuste será cortar despesas em 26%.[11] 

Procurando “investidores”

Uma vez que seu discurso de ódio foi proferido, Milei se dedicou ao objetivo central de sua viagem: procurar “investidores internacionais” para “vender-lhes o país”. Concretamente, conseguiu um investidor: Marc Benioff, fundador e CEO da Salesforce, que “se comprometeu a investir 500 milhões de dólares no país nos próximos cinco anos”.[12]

A Salesforce é uma grande empresa estadunidense de tecnologia, especializada em “inovação de IA, transformação digital e desenvolvimento da força de trabalho”. Seu projeto é criar um “polo tecnológico” na Argentina que será sua base na América Latina. No país, será a empresa que “digitalizará” o Departamento de Estado e atenderá empresas líderes como BBVA, Ford Argentina e Telecom[13].

Benioff está tentando seguir o caminho de Elon Musk, a quem Milei venderá a estatal ARSAT (com forte peso nas telecomunicações do país) e a esvaziará para privatizá-la[14]. Além disso, Milei emitiu um decreto “desregulamentando as comunicações no país”. Nesse campo, o projeto de Musk é que a Argentina se torne a base continental de sua empresa Starlink (especializada em internet de alta velocidade por meio de satélites).[15] Musk já havia anunciado que instalaria uma fábrica de carros elétricos da Tesla na Argentina, a primeira dessa empresa na América Latina. Musk aproveita assim a “mesa servida de benefícios” oferecida pelo amigo Milei.

A reunião com o FMI

Em Davos, Milei também se reuniu com Gita Gopinath, vice-presidente do FMI, organização financeira internacional que há décadas “supervisiona” a política econômica da Argentina nas sucessivas “renegociações” da dívida externa do país, para garantir seu pagamento. Desde sua posse, Milei e seu ministro da Economia, Dante Caputo, pedem ao FMI que, além de facilitar as renegociações, façam um empréstimo adicional de 10/15 bilhões de dólares para fortalecer as reservas do Banco Central e assim poder eliminar o “grampo cambial” (restrições à compra de dólares no sistema bancário oficial) que origina a existência de um mercado de câmbio oficial e paralelo.

Até agora, o FMI tem relutado em fornecer esse empréstimo adicional. Pouco depois da cúpula de Davos, uma missão dessa organização esteve em Buenos Aires: elogiou a política de ajuste de Milei e seus “avanços” na “estabilização macroeconômica”, mas não liberou um único dólar novo[16].  Nesse contexto, o governo de Milei emitirá um título para tentar obter esses fundos no setor financeiro privado[17].

Na reunião de Davos, Milei perguntou a Gospinath “o que seu governo deveria fazer para atrair investimentos estrangeiros?”[18]. Ela respondeu que deveria oferecer um entorno que gere investimento privado”.

Lembremos que o governo Milei já avançou muito em oferecer esse “entorno”: um ajuste fiscal feroz, ataques muito duros ao salário e às condições de trabalho dos trabalhadores e uma estrutura legal a serviço desses investimentos (o RIGI).[19] Mesmo assim, os investimentos estrangeiros diretos (IED) chegam à Argentina muito ocasionalmente. Os mais importantes visam a pilhagem de recursos naturais (petróleo, gás e minerais), e agora alguns podem chegar ao setor de tecnologia.

Diante disso, Gospinath aprofundou sua análise dos processos globais: “os investimentos [capitalistas] domésticos e o “entrada de capitais internacionais diminuíram nos últimos 25 anos”. Portanto, “não há vento favorável, o vento contra continua “. No caso da Argentina, devemos acrescentar a desconfiança dos “grandes investidores” e do próprio FMI de que conseguirá estabilizar a situação sem que a “sociedade” reaja com uma “explosão social”.

Algumas considerações finais

Em numerosos artigos sobre os fóruns de Davos em anos anteriores, expressamos que este think tank (laboratório de ideias) do capitalismo imperialista vivia uma crise porque tinha “poucas respostas” para muitos problemas mundiais graves, como guerras, crise econômica, aumento crescente da pobreza, fome e destruição.

O último FEM também não forneceu respostas para esses problemas. No entanto, ao contrário dos anteriores, deu uma “receita” sobre o que se propõe a fazer nesse quadro convulsionado. Resumimos no título deste artigo: aplicação intensiva de IA e duríssimos ajustes.

A maneira como o capitalismo usa a IA e os ajustes brutais tornam a situação dos trabalhadores e das massas cada vez pior. De certa forma, isso é inevitável: o mesmo capitalismo imperialista e seus governos que nos levaram a essa realidade não podem ser os que irão resolvê-la e superá-la.

Por isso, nós trabalhadores e as massas devemos realizar nosso próprio encontro internacional que, a curto prazo, nos permita coordenar, unificar e fortalecer as lutas na perspectiva da imprescindível batalha global contra o capitalismo imperialista e seus governos.


[1] https://es.weforum.org/events/world-economic-forum-annual-meeting-2023

[2] http://news.bbc.co.uk/2/hi/business/7201300.stm

[3] Reality show de TV dos EUA, iniciado em 2009.

[4] https://www.perfil.com/noticias/canal-e/la-ia-empieza-a-tomar-relevancia-en-la-transformacion-economica-global-es-una-tecnologia-aceptada-como-una-realidad-ineludible.phtml

[5] https://www.youtube.com/watch?v=abuOVNz12vM

[6] https://www.eltiempo.com/mundo/eeuu-y-canada/asi-fue-la-presion-agresiva-de-donald-trump-para-que-netanyahu-e-israel-aceptaran-una-tregua-en-gaza-3417869

[7] https://litci.org/es/el-imperialismo-acepta-repartir-ucrania-con-putin/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

 [9] https://cnnespanol.cnn.com/2025/01/22/eeuu/productos-caros-trump-arancel-productos-chinos-trax

[10] Ver https://www.ihu.unisinos.br/categorias/640145-a-argentina-vai-se-tornar-o-laboratorio-social-do-futuro-entrevista-com-robert-boyer

[11] https://www.cronista.com/usa/economia-y-finanzas/el-primer-despedido-elon-musk-reconocio-su-derrota-y-admitio-no-podra-cumplir-lo-que-le-prometio-donald-trump-fui-demasiado-optimista/

[12] https://www.salesforce.com/mx/blog/2025-01-22-argentina-investment/#:~:text=SAN%20FRANCISCO%20y%20DAVOS%20%E2%80%93%2022,Foro%20Econ%C3%B3mico%20Mundial%20en%20Davos.

[13] https://www.infobae.com/economia/2025/01/22/convertir-a-la-argentina-en-un-hub-global-de-ia-y-digitalizar-el-sector-publico-como-es-el-proyecto-de-salesforce/#:~:text=Salesforce%2C%20el%20CRM%20 (empresa% 20dedicada, durante% 20 a% 20 pr % C3 % B3 ximos % 20 cinco % 20 a % C3 % B1os.

[14] https://www.pagina12.com.ar/776403-el-gobierno-pone-de-remate-a-arsat-y-le-deja-la-mesa-servida

[15] https://tn.com.ar/tecno/novedades/2023/12/20/que-es-starlink-el-sistema-de-internet-satelital-de-elon-musk-del-que-hablo-milei-en-la-cadena-nacional/?gad_source=1&gclid=Cj0KCQiAhvK8BhDfARIsABsPy4hGMemmI-2pWbkGhHLQWM4P5mc6Ygpog8BxSKPLDiRSuxQoeqRB9CMaAl7GEALw_wcB

[16] https://www.ambito.com/economia/silenzio-stampa-del-fmi-se-fue-la-mision-y-el-gobierno-gana-tiempo-las-presiones-dolar-y-reservas-n6107796

[17] https://www.ambito.com/economia/deuda-el-gobierno-javier-milei-emitira-un-nuevo-bono-del-tesoro-pesos-n6086977

[18] https://aaaci.org.ar/mensaje-del-fmi-que-necesita-la-argentina-para-atraer-inversion/

[19] https://litci.org/es/argentina-el-regimen-de-incentivo-a-las-grandes-inversiones-rigi-es-una-mesa-servida-para-el-imperialismo/?utm_source=copylink&utm_medium=browser

Tradução: Lílian Enck

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