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terça-feira, outubro 8, 2024

Considerações sobre o acordo assinado pelo governo Lula com as comunidades quilombolas de Alcântara 

“Marquem o dia de 19 de setembro de 2024, porque a história de Alcântara mudou, e a história do povo de Alcântara vai mudar. Agora que nós conseguimos regularizar as centenas de comunidades, temos a obrigação de dar sequência à titularização assinada hoje”(trecho da fala do presidente Lula) 

“Se você enfia uma faca de 20cm em minhas costas e puxa 10cm para fora, isso não é progresso. Se você puxá-la inteira para fora, ainda não seria progresso. O progresso é curar a ferida que o golpe fez. Ainda nem consegui remover a faca. Eles nem admitem que a faca está lá” (Malcolm X)

Por: Hertz Dias

Duas fotos tiradas na cerimônia que marcou a assinatura do acordo de conciliação entre o Estado brasileiro e representantes das comunidades quilombolas de Alcântara (MA) estão circulando nas redes sociais. Na primeira, Lula posa para a selfie com várias crianças quilombolas de Alcântara. Já a segunda mostra Lula abraçando acaloradamente uma quilombola idosa. 

O semblante de Lula é de acolhimento e o da anciã de agradecimento. O governo Lula finalmente teria garantido a titulação dos territórios quilombolas de Alcântara depois de “mais de 40 anos de impasse”, como informa o site “agencia.gov”, do próprio governo federal, onde as referidas fotos foram postadas. A ministra Aniele Franco, em seu perfil no Instagram, anunciou, diretamente, de Alcântara: “É o governo federal trazendo o sonho de volta à essa comunidade, efetivando políticas públicas e fazendo entregas a quem mais precisa”.

Uma das poucas vozes dissonantes deste acordo foi a do advogado Danilo Serejo, quilombola, coordenador do Grupo de Assessoria Jurídica das Comunidades Quilombolas de Alcântara e membro do Movimento dos Atingidos pela Base (Mabe), que se opôs ao acordo e exige cautela na comemoração. “O Termo de Conciliação em si apresenta uma falsa sensação de solução, dada a fragilidade jurídica presente, mas, atende muito bem a interesses outros do que proteger efetivamente as comunidades” disse em sua página também no Instagram. 

 Um histórico de autoritarismo, racismo e acordos não compridos

Alcântara é um município do tamanho do Vietnã, mas que possui a maior quantidade de comunidades quilombolas do Brasil, 200 no total. Essas comunidades representam o que teve de mais legítimo na luta contra a escravidão. Já a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) é o produto do racismo vil e do autoritarismo da burguesia brasileira. O CLA começou a ser instalado em 1982, no governo Figueiredo, ainda sob o regime militar. Apenas no período de 1986 e 1989, uma equipe militar formada majoritariamente por pessoas negras removeram, de maneira sórdida e compulsória, 32 comunidades quilombolas com mais de 312 famílias que viviam à beira mar do município, de onde retiravam o sustento (peixes, frutos do mar, mariscos, caças, frutas, verduras, etc). 

O mesmo regime que negava a existência do racismo, aliciou e recrutou jovens e adolescentes das próprias comunidades para participar de cursos de formação militar em São Paulo. Foram 5 meses em São José dos Campos e um na capital paulista. Eram 30 meninos, entre analfabetos e semianalfabetos, que voltaram fortes, treinados, com dinheiro e empolgados por fazerem parte da Aeronáutica brasileira. No retorno, os chamados “30 de Alcântara” foram recepcionados com festa pelos moradores dos quilombos. Mal sabiam eles que iriam compor as equipes de remoção que transfeririam os próprios parentes para sete agrovilas construídas pela Aeronáutica. 

O que aconteceu em São Paulo não foi apenas uma formação militar, mas uma lavagem cerebral para transformar quilombolas em “capitães-do-mato”. As agrovilas para as quais essas famílias foram removidas embaixo de porretes, ficam a cerca de 20 quilômetros do litoral de Alcântara, ou a 4 horas de viagem a pé, trajeto que muitos quilombolas são obrigados a fazer para não morrerem de fome. O terreno para construção das agrovilas era inapropriado para erguer moradias- era um brejo- e a configuração arquitetônica das casas tem o formato militar, o símbolo do CLA e o brasão da Aeronáutica. Uma simbologia para dizer quem de fato manda no lugar, tal como a igreja católica fez com os povos indígenas no Brasil colonial. 

Jovens quilombolas treinados em SP retornam à Alcântara (Museu Histórico de Alcântara)

Os quilombolas ficaram proibidos de construir novas casas e quando fazem, as mesmas são derrubadas. Por isso, muitos desses quilombolas foram morar nas periferias de Alcântara ou São Luís, e é isso que explica o fato do quilombo Liberdade, localizado em São Luís, ser o maior quilombo urbano do Brasil, pois a maioria de seus moradores são alcantarenses removidos. 

Na época o Brasil ambicionava ter uma política espacial nacional forte e desenvolver a tecnologia do Veículo Lançador de Satélites (VLS), um foguete capaz de transportar satélites até a atmosfera. De lá pra cá foram 3 tentativas fracassadas e uma explosão ocorrida em 2003 que matou 21 pessoas. Depois disso, os reiterados governos adotaram a política de entregar a base para empresas nacionais e estrangeiras. Mas, se o projeto espacial foi um fracasso total, com gastos bilionários, o projeto de remoção das comunidades quilombolas, essencialmente racista, têm sido exitoso. 

Porém, em 2000 os movimentos sociais realizaram uma forte mobilização nacional que fez com que o projeto de entrega do CLA para os Estados Unidos, que previa a expansão da base por mais 12 mil hectares, fosse engavetado. Em 2020, em plena pandemia, o governo de Bolsonaro tentou reativar este famigerado projeto através da publicação da resolução nº 11, mas foi proibido por uma decisão liminar da Justiça Federal no Maranhão, que suspendeu qualquer ação de planejamento ou execução de realocação até a conclusão do processo de consulta prévia, livre e informada, das comunidades afetadas. 

O Ministério Público Federal, considerando a situação de pandemia, seguiu na mesma direção. Em nossa opinião, essas duas decisões foram motivadas por uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos ocorrida em 2019. Da mesma forma que o recente acordo super-festejado pelo governo Lula é também produto de uma decisão da Organização Internacional do Trabalho (OIT), porém com o agravante de tentar derrubá-la. É sobre isso que trataremos a seguir. 

Qual das decisões foi histórica: a do governo Lula ou Organização Internacional do Trabalho?

O que de fato ficou fora do radar do noticiário do governo e de seus satélites políticos foi a decisão tomada pela (OIT) no mês de julho deste ano, que recomendou que o Brasil respeitasse o direito de consulta Prévia, Livre e Informada previsto na Convenção nº 169 da OIT e titulasse os territórios quilombolas de Alcântara. Foi a primeira vez na história que a OIT tomou uma decisão dessa envergadura em favor de uma comunidade afrodescendente. Por isso, sim, esta foi uma decisão histórica. Já o acordo assinado pelo governo federal com representantes das comunidades quilombolas tem como principal objetivo derrubar essa decisão.

A decisão da OIT é uma resposta positiva à representação movida pelos sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Alcântara e pelo Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar  de Alcântara em 2019 junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo fato da Instalação da CLA ter descumprido o direito de Consulta Prévia, Livre e Informada, o que vem ocorrendo desde a década de 1980, bem como o acordo de Salvaguarda Tecnológica firmado entre os Estados Unidos e o Brasil para uso do CLA. 

Ou seja, o Estado brasileiro desrespeitou a Convenção 169 da OIT e o  art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitória da própria Constituição brasileira que diz “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Não só a OIT, mas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também chegou à mesma conclusão que era a seguinte: nenhum acordo entre as comunidades e o governo federal poderia ser feito se o Estado brasileiro não respeitasse o direito acima mencionado, que se resumia a titulação dos territórios de Alcântara. Em outras palavras, o acordo entre o Estado brasileiro e essas comunidades não acontece por uma iniciativa voluntária do governo Lula e da SEPIR, como Lula e Anielle Franco querem nos fazer acreditar, mas como produto de uma derrota fragorosa que o Estado brasileiro sofreu internacionalmente. 

Nos termos deste acordo, os processos de titulações só iniciarão daqui a 12 meses. O mais grave, entretanto, é a imposição de que essas comunidades se  “comprometem a não apresentar novos questionamentos quanto a esse tema, respeitando a destinação da área do CLA feita pela União”. Pelas letras deste acordo as coisas se inverteram, pois agora são as comunidades quilombolas que ficaram impedidas de denunciar internacionalmente o Estado brasileiro. Ora, todas as vezes que os quilombolas ingressaram na justiça contra o CLA foi porque tiveram seus direitos desrespeitados, nunca sem motivos. Já o Estado brasileiro tem o histórico de desrespeitar acordos celebrados com as comunidades de Alcântara, inclusive decisões judiciais. E o que, talvez, seja mais grave: este acordo implica a derrubada da decisão da OIT e da Corte IDH.

 Antes desse acordo, o governo propôs, em 2023, uma conciliação voluntária, o que foi negada pelas autoras das ações que exigiram que o governo deixasse de blá blá blá e cumprisse com as recomendações da OIT e reparassem as comunidades pelos prejuízos causados nesses 40 anos de violação de direitos. O governo Lula está tentando transformar uma vitória histórica dessas comunidades em uma derrota estratégica para as comunidades tradicionais de toda a América Latina. Nas palavras do próprio Danilo Serejo “o objetivo do governo é livrar-se da decisão da Corte IDH, embora neguem veementemente, e nesse ponto o acordo é eficiente. Derruba uma estratégia de vinte anos e a possibilidade de se consolidar no Sistema Interamericano de Direitos Humanos a jurisprudência que seria uma das primeiras e mais importantes na América Latina de proteção de comunidades negras rurais quilombolas. A decisão desse Caso seria o grande referencial para o continente. Esqueçamos, acabou de cair essa possibilidade.” Para um bom entendedor, essas contundentes palavras bastam. 

Cercar de solidariedade à resistência quilombola de Alcântara e exigir do governo Lula o cumpra-se 

Ora, se o governo Lula estivesse, de fato, comprometido em titular os territórios quilombolas de Alcântara porque não faz isso imediatamente? E mais. Por que exigir que as comunidades se comprometam em não acionar mais a justiça? O correto não seria fazer o inverso, ou seja, garantir a estas comunidades o direito de denunciar o CLA caso desrespeitem as supostas titulações, já que as mesmas inviabilizariam novas expansões da CLA? Imagine o Estado colocar como condição para garantir proteção às mulheres, que as mesmas se comprometam a não acionar a justiça quando se sentirem ameaçadas pelos seus agressores?

Tanto a OIT quanto a Corte IDH tomaram decisões favoráveis aos quilombolas de Alcântara em razão da resistência histórica destas comunidades, que no mês de abril deste ano lançaram uma carta anunciando ruptura com o governo Lula e a saída do grupo interministerial criado para tratar do tema das titulações. Na verdade, este GTI foi criado de maneira autoritária, sem consulta aos assessores técnicos e jurídicos das comunidades alcantarense, inclusive os que entraram com ação contra o Estado brasileiro no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. 

Esse GTI foi hegemonizado pelo governo com treze representações, enquanto as comunidades ficaram com apenas quatro representações, e não ofereceu qualquer estrutura para que o processo de titulações avançasse. Eis aí as razões da ruptura com o governo. É preciso desconsiderar esse rol de casos para coroar com auréolas franciscanas as cabeças de Lula e Anielle Franco após a assinatura do acordo do dia 19 de setembro. É como se a faca enfiada nas costas destas comunidades não estivesse mais lá. 

Devemos lembrar que, de acordo com o Censo do IBGE 2022, o Maranhão tem a segunda maior população quilombola do Brasil. Só perde para a Bahia. São 269 mil pessoas distribuídas em 32 municípios. Mas o total das terras quilombolas tituladas no Maranhão somam apenas 74 comunidades, sendo que 71 delas foram tituladas pelo Estado do Maranhão e apenas três pelo INCRA. Em 2023, o estado do Maranhão suspendeu as titulações. E o governo federal não demarca nada há anos. Só com o PT governando já são quase 15 anos de promessas não cumpridas.

O governo Lula deve deixar de manobras e iniciar imediatamente as titulação desses territórios, respeitando a autodeterminação dessas comunidades, sem qualquer condicionamento. Se houver mais violações, os quilombolas têm o direito de se defender e de denunciar onde bem desejarem. O governo Lula e a SEPIR não podem restringir o direito destas comunidades se defenderem contra um enclave militar racista instalado arbitrariamente em seus territórios. 

Isso seria o mínimo que todas as organizações políticas que zelam pelos direitos democráticos e humanos deveriam exigir e não sair por aí vendendo gato como se fosse lebre. É preciso cercar de solidariedade a resistência dos quilombolas de Alcântara, mantendo a decisão que foi tomada na OIT e na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Conforme afirmou Danilo Serejo, se esta decisão se materializar não seria apenas uma vitória dos quilombolas alcantarenses, mas uma vitória de centenas de comunidades tradicionais de todo o continente latino-americano que enfrentam situações similares. É isso que está em jogo e neste jogo devemos nos colocar incondicionalmente ao lado dessas comunidades.

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