A ofensiva em Kursk completa um mês
Em 6 de agosto de 2024, as forças armadas ucranianas realizaram uma incursão no território russo e, em poucos dias, tomaram cerca de 1200 km2 nos quais está a cidade fronteiriça de Sudja e cerca de 90 vilarejos na província de Kursk.
Por: Fábio Bosco
A explosão de pontes sobre o rio Sejm e a construção de trincheiras mostram que as forças ucranianas não tem intenção de avançar, mas possivelmente podem tomar outras faixas fronteiras nas províncias de Bryansk e Novgorod.
Até o momento, a ocupação de parte da província de Kursk, representou algumas ganhos importantes para a Ucrânia e expôs fragilidades do regime de Putin. Segundo o presidente ucraniano Volodymir Zelenskyi, a ocupação de território russo é temporária e tem como objetivo forçar Putin a negociar a paz.
De fato, a pressão dos países imperialistas ocidentais para uma “paz” negociada, com a partição da Ucrânia, aponta para a possibilidade de uma conferência de paz com a presença ucraniana e russa ainda este ano, bem como negociações diretas nas quais os territórios ocupados em Kursk possam ser uma moeda de troca.
A tomada deste território russo também o configurou como uma zona tampão (“buffer zone”) para evitar agressões russas à província ucraniana de Sumy e tornar mais difícil agressões contra a província ucraniana de Kharkiv, onde se encontra a segunda principal cidade do país.
O território tomado ainda serve de base para ataques à alvos econômicos russos como é o caso do centro de exportação de gás para a Europa na cidade de Sudja, e para eventual corte das linhas de provimento de energia da usina nuclear de Kursk para a região. Além disso pode servir de posto avançado para o envio de drones e mísseis contra refinarias e aeroportos militares russos.
Parte da população e dos militares ucranianos ainda veem com desconfiança a ofensiva sobre Kursk frente à falta de munições e soldados para defender o Donbass. Apesar disso, a manutenção do controle deste território russo, a avançada produção de drones aéreos e marítimos, os bombardeios sobre refinarias e campos de avião militar em território russo enchem de orgulho a população. A rejeição à cessão de qualquer território ucraniano à Putin se expressa em pesquisa entre os militares da ativa e da reserva. Apenas 18% concordam que a Ucrânia deve buscar um final negociado ao conflito. Mas 15% afirmam que se uniriam a protestos armados se o governo firmar um acordo com o qual não estejam de acordo.
As falhas das forças russas na fronteira apontam fragilidades
A incursão militar em Kursk apontou grandes desafios para o regime russo. Por um lado a fácil rendição de soldados russos, muitos dos quais recém recrutados, mostra a falta de disposição dos soldados em perder a vida em uma guerra que eles não percebem como sua. Cerca de 500 soldados russos foram presos e 135 já foram trocados por soldados ucranianos presos pela Rússia, o que foi motivo de comemoração pela população ucraniana.
Por outro lado, a reação da população russa mostra a continuidade de um distanciamento da maioria da população com os objetivos da guerra. Não houve um levante popular ou atos de sabotagem para se opor às tropas ucranianas. Também não houve uma onda nacionalista de alistamento militar em todo o país para expulsá-las. Aparentemente trata-se de uma oposição passiva à guerra, que uma parte importante da população russa não considera a guerra como sua devido aos estreitos laços familiares e culturais que tendem a ser mais intensos nas regiões fronteiriças e que existiam até 2014.
A oposição “passiva” de parcela da população russa é muito importante porque qualquer oposição à guerra pode ser punida com prisão por até 15 anos, ou até mesmo por mortes suspeitas, por envenenamento ou por queda de edifícios. O descontentamento contra a guerra continua entre setores da própria oligarquia russa. Desde 2022, Aven, Fridman, Abramovich, Timchenko e Deripaska já criticaram a “operação especial”. No início de agosto, o oligarca Oleg Deripaska voltou a afirmar que a “operação militar especial” é uma loucura que deve ser encerrada. (1)
A incursão ucraniana também levou a uma queda do valor do rublo que certamente trará um aumento da inflação e possivelmente um aumento da taxa de juros pelo Banco Central russo que já está num patamar elevado de 18% ao ano. O regime russo aplica uma economia de guerra, maximizando os recursos para o esforço de guerra e administrando seus efeitos negativos sobre a população. Mas os desafios são enormes. Por um lado começa a faltar mão de obra por causa dos baixos salários (2), da evasão de um milhão de jovens russos do país e do alistamento militar. As empresas e o governo são obrigados a aumentar o valor dos contratos com empresas terceirizadas.
As tropas russas tem sofrido cerca de mil baixas de soldados por dia no último mês, entre mortos e feridos, o que demandará novo alistamento militar que Putin tenta evitar. Além disso, esse nível de baixas é insustentável no longo prazo. Por outro lado, os ataques ucranianos às refinarias de petróleo reduziram a produção de derivados de petróleo em 5%, afetando as receitas com exportação, em um momento em que a desaceleração da economia mundial reduziu o preço do barril de petróleo.
Por fim, há dificuldades na produção de armamentos. A Rússia não consegue produzir todo o armamento que necessita para a guerra, e por isso importa drones Shaheed e mísseis Fathi do Irã, e muita munição de segunda mão da Coréia do Norte. Além disso, a Rússia, segunda maior potência militar e nuclear, não tem defesa antiaérea suficiente para impedir os ataques ucranianos com numerosos drones que tem como alvo importantes empresas e infraestrutura militares, e até mesmo contra a capital Moscou. O imperialismo chinês, principal parceiro do imperialismo russo, não entrega armamentos para Putin para evitar as sanções europeias e estadunidenses, limitando suas exportações à Rússia a partes que podem ser utilizadas na indústria armamentista e outras mercadorias, além de importar petróleo a preços inferiores aos do mercado mundial.
A resposta criminosa de Putin
Cerca de 30 mil soldados russos foram realocados para enfrentar os ucranianos em Kursk, o que é suficiente para estabilizar a frente de batalha mas é insuficiente para retomar Kursk. Putin corre contra o relógio da chegada do inverno no final de outubro para tomar mais território ucraniano no Donbass, em particular a estratégica cidade de Pokrovsk, onde ele mantém uma forte ofensiva com cerca de 100 mil soldados entre os quais cerca de mil são mortos ou feridos diariamente. Há estimativas de que Putin já perdeu 70 mil soldados, entre mortos e feridos, nos últimos três meses, o que supera o número de mortos estadunidenses na guerra do Vietnã.
Pokrovsk é um estratégico centro logístico para as tropas ucranianas na região, além de ser um importante centro de produção de carvão de coque cuja perda obrigaria o governo ucraniano a depender de carvão importado, com forte impacto sobre a indústria metalúrgica. No entanto, a eventual perda de Pokrovsk não implica na perda de todo o Donbass. Seria uma derrota ucraniana com alto custo para as forças russas, a perda de uma batalha mas não da guerra.
Além da realocação de tropas para Kursk e da intensificação da ofensiva sobre Pokrovsk, Putin ampliou o bombardeio contra as cidades ucranianas atingindo áreas residenciais e principalmente a infraestrutura de energia. Há estimativas de que a produção e distribuição de energia na Ucrânia esteja em 50% dos níveis anteriores a 2022. O bombardeio sobre Poltava, o mais letal até agora, causou 57 mortes e mais de 300 feridos. Os bombardeios sobre as cidades mostram a falta de baterias antiaéreas, deixando desprotegida a população.
Por fim há movimentações de tropas da Belarus junto à fronteira ucraniana, além de ataques cibernéticos e da intensa e mentirosa propaganda russa em todo o mundo, expressa não apenas por uma rede de comunicação (sites, influenciadores, canais de rádio) mas também pelos governos da Hungria e Eslováquia, além de partidos políticos putinistas como é a caso da “Alternativa para a Alemanha” (AfD), partido de extrema-direita neonazista, que obteve cerca de 30% dos votos em duas províncias alemãs nas eleições de 1 de setembro, além do partido de “esquerda” ASW (Aliança Sahra Wagenknecht) liderada por uma agente de Putin, que obteve mais de 11% com uma campanha antiimigrantes e contrária à qualquer ajuda à Ucrânia.
A troca de ministério ucraniana
O presidente Zelenskyi anunciou a troca de nove ministros de seu gabinete sob argumento da necessidade de “nova energia”. A principal questão é o cansaço e o descontentamento da população ucraniana com o estado geral do país e com o governo: a falta de armamento por ação consciente do imperialismo ocidental; o empobrecimento da classe trabalhadora devido à inflação e à flexibilização dos direitos trabalhistas e sociais impostos pelo governo neoliberal; os cortes de energia elétrica; o favorecimento à oligarquia e a corrupção; o alistamento militar compulsório, entre outros pontos. Zelenskyi aproveitou o descontentamento para colocar novos ministros escolhidos entre seu círculo estreito de confiança para atravessar eventuais situações impopulares como a concessão de território em negociações de paz.
Além disso, a queda do ministro de relações exteriores Dmytro Kuleba, conhecido por algumas declarações duras cobrando armas dos países ocidentais, teve o objetivo de apaziguar seus aliados da OTAN, que seguem com sua política de subprover armamentos para evitar uma derrota de Putin. Desta forma, Kulema teve o mesmo destino do popular comandante das forças armadas Valerii Zaluzhnyi, um desafeto das potências ocidentais. O substituto de Kuleba, Andrii Sybiha, é visto com desconfiança pelas relações que teve com o serviço secreto russo no passado.
A hipocrisia do imperialismo ocidental
A Ucrânia enfrenta uma guerra desigual por conta da questão do armamento e também da facilidade que a ditadura putinista teve até agora para alistar soldados entre as nacionalidades mais empobrecidas da Federação Russa. A inédita entrega de 6 aviões F16 foi comemorada pelo governo ucraniano mas ficou muito aquém da necessária provisão de pelo menos 130 aviões F16 para fazer frente à hegemonia aérea russa baseada em mais de mil aviões.
Os ucranianos conseguiram uma solução para afastar todos os navios de guerra russos da frente de batalha com os drones marítimos que aterrorizaram a frota naval russa na Crimeia. Mas a hegemonia aérea russa continua por causa da política do imperialismo ocidental de impedir uma vitória ucraniana. Há especialistas que apontam que a Ucrânia necessita de cerca de USD 100 bilhões por ano em armamentos para fazer frente à Rússia. Com USD 150 bilhões por ano, a Rússia seria derrotada. Mas todas as potências ocidentais alegam dificuldades econômicas ou políticas para garantir o envio de armas para a Ucrânia. A solução aventada de expropriar os USD 330 bilhões de ativos russos congelados nos países ocidentais está engavetada.
Para além de evitar uma derrota militar de Putin, e trabalhar pela partição da Ucrânia, as potências ocidentais também tem como objetivo o controle das ricas terras agrícolas ucranianas, com a consequente reprimarização da economia nacional.
Economia de guerra
A política do governo Zelenskyi coloca todo o peso do esforço de guerra sobre as costas da classe trabalhadora. É necessário um plano de economia de guerra diferente, que priorize o esforço de guerra e as condições de vida da classe trabalhadora.
O desenvolvimento da indústria bélica se limitou à importante produção de drones aéreos e marítimos mas está muito atrasada na produção de munições, de baterias antiaéreas e de mísseis. A falta de produção armamentísta nacional submete a Ucrânia à chantagem das potências ocidentais, que conspiram contra a vitória ucraniana.
Não houve qualquer medida para mitigar os efeitos da destruição russa: não há distribuição de baterias para cada residência poder minimizar os efeitos dos cortes de energia elétrica; não há distribuição de alimentos essenciais baratos para toda a população; não há um salário mínimo real que impeça que as famílias da classe trabalhadora caiam na pobreza; não há um auxílio econômico para as centenas de milhares de famílias deslocadas; não há um plano de moradias baratas para os deslocados; falta medicamentos e material hospitalar básico.
Nem toda a população ucraniana está em situação de pobreza. A velha oligarquia teve perdas com a guerra, mas continua se beneficiando da exploração da população e com fundos bilionários no exterior, recursos que faltam para garantir um mínimo de dignidade para a população em tempos de guerra. A ela se junta uma nova oligarquia ligada ao governo Zelenskyi, beneficiária dos negócios de guerra. A desigualdade social é brutal. Os oligarcas e os ricos circulam em carros de luxo, e frequentam lojas e restaurantes caríssimos em Kyiv enquanto a classe trabalhadora afunda na pobreza.
Apesar da política consciente das potências ocidentais de impedir uma vitória ucraniana, é possível derrotar e expulsar as tropas de Putin. No entanto o governo Zelenskyi, ao se subordinar às ordens ocidentais, também se transformou em um obstáculo para a vitória ucraniana. A demissão de Zaluzhnyi e a explosão do gasoduto Nordstream são exemplos dessa subordinação. (3)
É necessário que a classe trabalhadora se auto-organize para assumir o poder e impor um plano de economia de guerra antioligarquico que fortaleça o esforço de guerra e que garanta as condições de vida da classe trabalhadora até a derrota de Putin, a partir da socialização dos bens da oligarquia, no país e no exterior, e do cancelamento da dívida externa. (4) Além disso, cabe à classe trabalhadora internacional exigir de seus governos o envio do armamento necessário para que a classe trabalhadora ucraniana possa se defender e expulsar as tropas russas. Para isso é necessário desmascarar não apenas os amigos de Putin na extrema-direita e na “esquerda”, mas também os “aliados” hipócritas da Ucrânia.
NOTAS:
(1) https://www.moscowtimes.ru/2024/08/08/milliarder-deripaska-nazval-voinu-putina-v-ukraine-bezumiem-i-prizval-nemedlenno-ee-ostanovit-a138992
(2) Segundo um canal de Telegram putinista, a população russa posterga ou abandona planos de ter filhos devido à situação política e a dificuldades financeiras. Um estudo da Escola Superior de Economia da Universidade Nacional de Investigação publicou um estudo que aponta mudanças nos planos reprodutivos da população residente no país em 2022 e 2023. Cerca de 21% decidiram postergar seus planos de ter filhos e 9,5% desistiram por completo. A taxa de natalidade se encontra em um mínimo histórico neste primeiro semestre de 2024.
(3) Os jornais Wall Street Journal e Washington Post publicaram uma versão sobre a explosão do gasoduto Nordstream em 2022. Esse gasoduto exportava gás russo diretamente à Alemanha através das profundezas do mar báltico. Segundo essa versão, uma pequena equipe de seis ucranianos (4 mergulhadores profissionais), sob a orientação do comandante militar Zaluzhnyi, plantaram os explosivos no gasoduto a 80 metros de profundidade que, acionados, abriram fendas que o inundaram e inviabilizaram sua utilização. A reportagem explica que, antes da explosão, o serviço secreto holandês obteve, através de espionagem, informações sobre o plano e informou o governo americano, que pressionou Zelenskyi a abandoná-lo. Zaluzhnyi, no entanto, implementou o plano a revelia. Apesar do governo ucraniano negar qualquer envolvimento com a explosão, o relato mostra a subserviência do governo.
(4) Segundo a imprensa, a Ucrânia se encontra inadimplente (default) em relação à sua dívida externa.