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Índia

Lula está ao lado de Modi

outubro 4, 2023

A reunião da cúpula do G20 em Delhi terminou, e após a passagem cerimonial do martelo da liderança, agora será Lula e o Brasil que serão os anfitriões da próxima conferência. A liderança desse grupo de nações, que controlam 85% do PIB mundial, a maioria do território e da população do planeta, agora está nas mãos do presidente Lula, cujo partido presidiu as preparações para a Copa do Mundo da FIFA, durante as quais policiais militares invadiram favelas e atiraram em crianças. Ele não denunciou os excessos da polícia na época e, agora na conferência, ele não poupou elogios para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e sua “liderança visionária”.

Delhi foi “preparada” para a reunião com remoções e despejos em massa nos bairros mais pobres, que foram cobertos com folhas verdes, coletas em massa de cachorros de rua que resultaram em inúmeros casos de crueldade animal, e gastos muito maiores que os da última reunião, com o governo Modi gastando mais do triplo do que a Alemanha tinha gasto. Parte desse dinheiro foi destinada a banquetes suntuosos para os convidados do G20, que foram servidos com talheres de ouro e prata. Nas palavras do próprio Lula, “A Índia mostra um novo caminho”, mas não em diplomacia ou liderança global, e sim em como se safar enquanto oprime seu próprio povo.

A Índia é considerada uma economia emergente. Nesse momento é a quinta maior economia do mundo, maior do que o Reino Unido, com um enorme mercado interno, gigantescos recursos minerais e agrários, e com suas próprias empresas multinacionais, como o grupo Tata. A liderança do G20 estava bem mais interessada nos lucros que podem vir da Índia do que na situação de seu povo. Estavam mais do que dispostos a ignorar os eventos no estado de Manipur, em que um processo violentíssimo de limpeza étnica contra o povo Kuki, com a região prestes a entrar em uma guerra civil; pouco se importam com a alta taxa de pobreza entre os indianos, ou com os ataques de Modi e seu partido, o Bharatiya Janata Party (BJP), às liberdades democráticas e contra várias minorias. Os líderes do mundo silenciaram, e o “herói” da classe trabalhadora brasileira, o presidente Lula, também silenciou.

A ficha corrida de Narendra Modi

Seria inocência achar que esses líderes não estão cientes da história do primeiro-ministro da Índia quando uma rápida busca no Google leva a diversas fontes expondo o papel que ele cumpriu na violência islamofóbica em Gujarat em 2002 que levou à morte de mais de mil pessoas. Se isso não fosse o bastante, o que aconteceu nos nove anos desde que assumiu seu cargo, em 2014, deveria falar por si só.

Desde o início do governo, a violência contras as minorias aumentou dramaticamente. A pior parte disso são os linchamentos por parte de justiceiros “protetores de vacas”, assim como um enorme pogrom antimuçulmano em 2020. Ministros e líderes do BJP, como T. Raja, repetidamente proferem discursos de ódio contra muçulmanos e cristãos, ao que Modi responde com silêncio. Houve ataques violentos contra igrejas e cristãos no sul da Índia, e Modi não condenou a violência, nem criticou quem atiçou as chamas. Entre 2010 e hoje houve 63 linchamentos que levaram à morte de 28 pessoas (das quais 24 eram muçulmanas), e só no pogrom de Delhi 50 vidas foram perdidas.  E hoje, enquanto Manipur arde, Modi não move um dedo contra o Ministro-Chefe do Estado, que é membro de seu partido. Até agora já são 200 mortos e milhares de refugiados em Manipur. 

Sob Modi, os ataques a jornalistas, ativistas e militantes de esquerda cresceram. Os assassinatos de Gauri Lankesh e Narendra Dhabolkar são bem conhecidos, assim como o infame caso do assassinato do ativista indígena Stan Swamy. Entre os presos após a onda de repressão que se seguiu aos protestos contra a CAA [uma lei que facilitava a concessão da cidadania indiana a refugiados de países vizinhos, exceto se eles fossem muçulmanos], muitos permanecem atrás das grades, como Umar Khalid. Sob seu governo, o espaço para a dissidência ficou cada vez menor. O governo usou software de espionagem ilegal para vigiar ativistas e críticos do regime. O escopo de leis como a Lei de Prevenção de Atividades Desordeiras foi ampliado. A democracia na Índia está lentamente morrendo, e Modi é o principal responsável.

Talvez o “maior” momento de Modi tenha sido a forma grosseiramente errada como agiu contra a pandemia em 2020 e 2021 Oficialmente a Índia perdeu cerca de 500.000 mil pessoas para o vírus, mas extra-oficialmente o número pode chegar a três milhões. Durante a pandemia, o governo foi pego completamente despreparado, e conseqüentemente milhões dos mais pobres do país foram empurrados para um caos infernal. Os lockdowns impostos paralisaram trens e serviços essenciais, trabalhadores migrantes ficaram sem ter como sair dos lugares em que trabalhavam, e muitos indianos pobres, especialmente da classe trabalhadora, que dependiam de trens e ônibus, acabaram tendo que fazer a viagem de volta para casa a pé. Houve casos trágicos de famílias inteiras morrendo nas linhas de trem, de homens desesperados lambendo leite derramado para tentar saciar a fome. E como se a primeira onda não tivesse sido ruim o suficiente, durante a segunda onda o governo deliberadamente atrasou os lockdowns e outras medidas preventivas, exclusivamente para conseguir fazer suas campanhas eleitorais em paz – esse foi o ano em que houve eleições para o legislativo do estado de Bengala Ocidental, por exemplo.

O BJP sofreu uma derrota humilhante naquela eleição, mas isso custou muitas vidas e meios de sobrevivência ao povo do estado e do país como um todo conforme a pandemia se espalhava. E foi dessa maneira que a Índia foi governada durante a pandemia: uma combinação de tolice e violenta apatia em relações aos pobres. 

Mesmo se ignorarmos tudo isso, os anos sob Modi mostram que ele está resolutamente ao lado dos grandes capitalistas. Desde sua chegada ao poder leis ambientais foram enfraquecidas, apesar da “transição verde” indiana que recebe parabéns de regimes capitalistas hipócritas. Alterações em leis como a Lei Florestal, redesenho de fronteiras, retirando selvas da lista de áreas protegidas… ao escolher entre o destino do planeta e os lucros das corporações, Modi escolhe estes, e abertamente. Seu pensamento é muito mais próximo ao de Bolsonaro nesse aspecto, mas ainda assim, Lula está ao lado de Modi.

O legado de Lula

O nome do presidente Lula é visto com simpatia pelos indianos de esquerda. Ele é mostrado como uma das figuras chaves da “revolução rosa” da América Latina, um dos opositores da hegemonia do imperialismo dos EUA no hemisfério ocidental, e como um líder da classe operária brasileira que tirou milhões da miséria. Essa é uma leitura romantizada, que freqüentemente é reproduzida por stalinistas que enxergam o mundo em termos de campos ao invés de classes. Eles ignoram conscientemente a realidade brutal do Brasil capitalista que Lula presidiu.

Lula iniciou seu mandato de presidente em 2003, logo após a ONU organizar a MINUSTAH, uma missão para estabilizar o Haiti: uma intervenção militar massiva, cujo objetivo oficial era garantir a ordem no Haiti após o golpe de Estado de 2004. Na realidade, essa era uma missão militar requisitada pelos principais países imperialistas, centralmente os EUA e a França, para garantir a dominação imperialista sobre a nação insular, permanentemente atacada pelo imperialismo desde seu surgimento e até antes.

O Brasil sob Lula serviu fielmente a esses desígnios imperialistas, presidindo uma das missões mais violentas e controversas da ONE. O Haiti ainda enfrenta as consequências negativas dessa intervenção. Lula, o “grande amigo da classe trabalhadora”, tem seu nome escrito com destaque na lista daqueles que violentaram o Haiti. 

Essa é só uma das coisas que ele fez. Durante seus governos, entre 2004 e 2011, a economia cresceu muito e o país se tornou um dos principais países em desenvolvimento… um título adquirido com o início do desmatamento em larga escala da Amazônia, com a violência contra os povos indígenas, e com o aprofundamento da presença do capital estadunidense. O Brasil, embora tenha tentado ter neutralidade, ou pelo menos fingido isso, jamais desafiou o status quo da América Latina. O que o Brasil fez foi agir, como age até hoje, como o caudilho local, garantindo a dominação do imperialismo dos EUA na América do Sul. O papel de Lula nisso foi o de abrir mais a porta para que os imperialistas da Europa também tivessem sua fatia do bolo.

Um legado duradouro é a odiada Copa do Mundo da FIFA que ocorreu no Brasil em 2014, em que a presidente Dilma Rousseff, sucessora de Lula e líder de seu partido, ordenou a entrada da polícia em bairros pobres, onde eles mataram inclusive crianças, para limpar o terreno para as preparações para o megaevento. No meio de uma crise financeira violentíssima em todo o mundo, inclusive no Brasil, a Copa não foi nada mais do que uma capitulação aos interesses do grande capital que investe na mercantilização do esporte, capital esse que organizações como a FIFA cada vez mais representam.

A morte de crianças nessas chacinas em favelas pela polícia militar do Brasil será pra sempre lembrada como um legado do Partido dos Trabalhadores e a culminação da liderança de Lula, que colaborava com o imperialismo enquanto fingia ser um amigo da classe trabalhadora.

Lula é um proponente da “revolução rosa” na América Latina. Modi é um líder contra-revolucionário direitista que defende a “contra-revolução açafrão” na Índia. Numa olhada superficial, parecem estar em pólos diferentes, mas em um nível muito fundamental, ambos cumprem o mesmo papel no que se refere à defesa do capitalismo.

No fim das contas, ambos são ferramentas da burguesia, e ambas as ferramentas para a manutenção do sistema capitalista. Enquanto Lula faz isso enganando a classe trabalhadora ao posar como um socialista, Modi o faz com políticas abertamente contra-revolucionárias, dividindo e jogando uns contra os outros hindus e muçulmanos para conseguir governar a todos.

A cúpula do G20 foi um encontro de todas essas ferramentas capitalistas, algumas fingindo estarem mais ao lado do povo, outras mais abertamente antioperárias. No espectro em que de um lado há Modi e Meloni (da Itália) , e o presidente Lula do outro, temos diferentes tons de governos capitalistas, e a única linha correta para os revolucionários e refutar ambos esses lados.

Os resultados da cúpula do G20

A mídia indiana, famosa por seu papel de capacho do governo, se juntou ao coro e afirma que a conferência foi um grande sucesso. A resolução aprovada foi ampla e contou com o consenso de todos os lados, apesar da divisão entre os poderes ocidentais e o campo pró-Rússia acerca da questão da Ucrânia.

O Brasil, a Indonésia e a Índia trabalharam para que a resolução não mencionasse a Ucrânia, e os países ocidentais basicamente ignoraram o tema da guerra. Essa esnobada com a Ucrânia e suas preocupações ocorreu em grande parte porque a Índia tende ao lado russo, mas também indica claramente que o apoio do Ocidente à Ucrânia não tem nenhum princípio e é apenas uma movimentação cínica para conseguir mais poder. Os Estados Unidos da América usaram a guerra da Ucrânia para enriquecer suas próprias indústrias armamentistas e expandiram a OTAN para os países nórdicos, ao mesmo tempo em que tornam impossível qualquer poder independente na Europa. Também se garantiu outro mercado para o petróleo do Oriente Médio, que é ligado ao dólar, assim garantindo o poder dessa moeda pelo tempo em que for possível manter a Rússia isolada do restante do continente. 

No fim da conferência, vimos uma mudança nos laços da Índia com alguns países ocidentais, particularmente o Canadá, acerca do assassinato de um ativista Sikh pró-Khalistão que era cidadão canadense. Enquanto o Canadá protestava contra o assassinato por parte da Índia de um cidadão canadense em seu território, o Reino Unido se mostrou disposto a trabalhar contra os elementos “anti-indianos”. Desde sua ascensão Modi se mostrou intolerante contra qualquer dissidência, e após os gigantescos movimentos dos trabalhadores rurais em 2020-21, seu governo tem se dedicado a usar como espantalho o movimento pelo Khalistão, que estava basicamente morto – um movimento separatista dos membros da religião Sikh na região do Punjab que surge como resultado da operação contra o Templo Dourado, centro da religião Sikh, ordenada pela então primeira-ministra Indira Gandhi em 1984 para destruir uma insurreição liderada por um extremista Sikh chamado Bindranwale, levando à morte de pelo menos 400 pessoas. Muitos apoiadores do movimento pró-Khalistão emigraram para o Canadá, que se tornou um abrigo seguro para o movimento no exílio.

No entanto, a verdadeira intenção aqui não é atacar esse movimento, que praticamente não tem mais nenhuma força no Punjab, e sim atacar os ativistas Sikhs que apoiaram o movimento dos fazendeiros e são críticos a Modi. Muitos Sikhs de ordens religiosas participaram do movimento, que teve sua força maior nas regiões do Punjab e de Haryana, e a solidariedade entre Sikhs, hindus e muçulmanos deu força ao movimento. O governo Modi está tentando destruir essa força com o velho jogo do dividir para conquistar, e o Reino Unido está feliz em colaborar, ao contrário do Canadá.

Outro momento alto da conferência foi a inclusão da União Africana no G20, basicamente por esforços da Índia. Isso acontece em uma época em que a demanda por recursos oriundos do continente africano é crescente, já que são necessários para suprir a demanda por eletrônicos e pela assim chamada tecnologia “verde”. Recursos como coltan e cobalto, assim como combustíveis fósseis convencionais como petróleo e combustíveis minerais não-fósseis como o urânio, são abundantes na África. A exploração da África mantém o imperialismo europeu relevante e poderoso, mas o continente também está emergindo como um campo para a expansão dos capitalistas em ascensão da China e da Índia, que buscam os mercados e recursos de uma África “emergente”. A movimentação da Índia a posiciona como “líder” do chamado “Sul global”, mas não nos enganemos: essa é uma artimanha cínica pelo mais fraco dos poderes mundiais para fortalecer sua posição econômica e diplomática. No fim das contas, a Índia quer a África e sua riqueza para si, assim como a Rússia age através do Grupo Wagner e suas ações no Sahel, e a China com investimentos e empréstimos. A burguesia pode comemorar essas movimentações o quanto quiser, mas da nossa parte não há motivo para celebração; temos, sim, que nos preparar para uma nova corrida imperialista para a África.

Campismo não, política revolucionária sim

Para alguns da esquerda, a vitória dos poderes ascendentes, do “Sul global”, é mais importante do que a vitória da classe trabalhadora. Isso não é política revolucionária, mas apenas uma cobertura para um grupo de estados capitalistas, e por extensão de seus próprios capitalistas.

Se de alguma forma os BRICS ganhassem hegemonia no mundo e deslocassem os atuais poderes imperialistas dominantes, os EUA e a Europa, isso não levaria a uma melhora na qualidade de vida da classe trabalhadora, que dirá ao fim da exploração de nossa classe. Só quem se beneficiaria com isso seriam os capitalistas e líderes políticos dessas nações, que crescerão em riqueza e poder.

A burguesia não precisa ser defendida. Mesmo quando defendemos países semi-coloniais da agressão do imperialismo, não o fazemos defendendo a burguesia desses países nem se submetendo à sua liderança, e sim nos colocando ao lado de sua classe trabalhadora. É dessa classe que vem nossa força, e lutamos consistentemente pelos seus interesses.

Leitura adicional :

https://www.youtube.com/watch?v=HjGbRPl3AWs

https://www.siasat.com/destroying-madrasas-will-do-half-the-job-for-hindutva-raja-singh-2688422/

https://www.weforum.org/agenda/2023/09/african-union-g20-world-leaders/

https://edition.cnn.com/2023/09/21/india/india-canada-travel-advisory-assassination-row-intl-hnk/index.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Khalistan_movement

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