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quarta-feira, julho 24, 2024

Portugal: a crise social cada vez mais se torna a crise política do Governo de António Costa/PS

Faz agora 10 anos que Portugal e toda a Europa enfrentaram um período de profunda crise econômica, social e política fundamental para entender a situação em todo o continente europeu hoje. Por isso, começamos este artigo por enquadrar como surge o atual governo do PS (Partido Socialista) em Portugal e donde vimos, ao nível das lutas da classe trabalhadora, para entender melhor o que se passa hoje no país.

Por: Maria Silva – Em Luta/Portugal

Da Geringonça ao atual governo de António Costa

Entre 2011 e 2014, Portugal teve um governo de maioria de direita (PSD/CDS), liderado por Passos Coelho e Paulo Portas, que aplicou em Portugal duras medidas de austeridade que concretizavam orientações diretas da chamada Troika (BCE – Banco Central Europeu, UE – União Europeia e FMI – Fundo Monetário Internacional). Apesar das várias greves gerais e enormes mobilizações no país (as maiores desde a revolução de 1974-75), que reverteram algumas das medidas mais gravosas, os trabalhadores e população mais pobre não conseguiram derrotar o governo. De facto, tanto o Partido Comunista Português que dirigiu as lutas sindicais nesse momento, como o Bloco de Esquerda, que estava à frente dos principais movimentos sociais, canalizaram esse enorme processo para as eleições. Por isso, nas eleições de 2015, obtiveram uma estrondosa vitória, somando entre os dois partidos cerca de 20% dos votos.

Já o Partido Socialista, devido à má memória dos governos liderados até 2011 por José Sócrates, vinha numa crise tão grande, que não venceu as eleições em 2015. No entanto, o PS propôs ao PCP (Partido Comunista Português) e BE (Bloco de Esquerda) um acordo de Governação alternativo, que acabou por se concretizar na chamada “Geringonça”, em que o Partido Socialista, dirigido por António Costa, governou entre 2015-2019, apoiado pelo PCP e BE. Esta Geringonça foi incapaz de reverter a austeridade aplicada pela Troika e manteve Portugal como um país periférico e dependente, centrado na subserviência às multinacionais, a quem fornece acima de tudo mão-de-obra barata.

PCP e BE apoiaram vários orçamentos e alimentaram o discurso do mal menor e de que teriam conseguido conquistas, que nunca o foram. Apoiaram o Governo quando este reprimiu os trabalhadores em greve e quando aplicou estados de emergência, como no caso dos Motoristas de Matérias Perigosas, dos Estivadores de Setúbal ou dos Enfermeiros.

Em 2019, o PS recuperou da sua crise e ganhou as eleições. Deixou de querer uma Geringonça, fazendo acordos pontuais no parlamento à esquerda e à direita. PCP e BE ficaram reféns do discurso do mal menor que tinham construído esses anos: salvaram o PS, que se alimentou deles para posar de esquerda, enquanto governa para os patrões e para a UE como sempre fez.

Perante o desgaste da sua posição e a ausência de diálogo e concessões do PS, a partir de 2021, PCP e BE decidiram não votar mais os Orçamentos do PS e, por isso, deram-se novas eleições no país. Perante a hipótese de regresso de governos da direita, a falta de alternativas nítidas à esquerda e o crescimento da extrema-direita em Portugal desde 2019, o peso do voto útil foi grande e o PS de António Costa conseguiu uma impensável maioria absoluta, a segunda após o 25 de abril, e BE e PCP tiveram uma grande derrota eleitoral. A responsabilidade da esquerda parlamentar em ter falhado na defesa daqueles que diz defender, para esta vitória do PS, é incontornável.

Uma maioria absoluta em crise 

O novo governo do PS, liderado por António Costa, toma posse no final de março de 2022, mas o seu governo apresenta hoje mais instabilidade do que estabilidade. Porquê?

Depois da intervenção da Troika, Portugal saiu da crise anterior com um salto de qualidade na dependência da sua burguesia face ao imperialismo europeu e, portanto, sem grande margem de manobra face aos rumos do país. Exemplo disso foi a entrega a grupos estrangeiros dos principais setores da economia (como é o caso da energia – EDP, Galp, REN – ou da aviação, como a TAP) e da banca, tendo o seu ponto máximo no fim do último grande banco português: o Banco Espírito Santo. Em segundo lugar, Portugal saiu da intervenção da Troika com uma dívida milionária que se mantém, e cujo pagamento custa hoje mais de metade do Orçamento de Estado anual do país. Em terceiro lugar, o país alavancou o seu crescimento nos últimos anos no turismo (e em segundo plano nos serviços), um setor totalmente exposto às oscilações exteriores que, portanto, não dá qualquer garantia de estabilidade ou de proteção contra a crise internacional em curso.

É neste contexto que podemos entender como a crise econômica atual aprofunda os choques entre setores da burguesia no país. A disputa entre PS e PSD e o jogo de casos de corrupção que atualmente fazem entre si na imprensa expressa essa guerra surda entre quem se vai apropriar dos fundos da “bazuca europeia” /PRR para garantir os seus lucros numa situação de crise e de uma burguesia que não tem projeto próprio.

Mas acima de tudo é a situação atual de crise social que ao agravar as condições de vida da classe trabalhadora coloca na ordem do dia uma cada vez maior raiva social contra o governo.

A inflação e habitação: dois problemas centrais

O problema da inflação que afeta vários países, mas que, tendo em conta os baixos salários no país, tem consequências dramáticas. A alta de preços coloca cada vez mais na ordem do dia a carência alimentar ou a fome para as franjas mais pobres da população (cerca de 2 milhões vive abaixo do limiar da pobreza, mas se virmos o número de pessoas que vive com menos de 660€ esse número sobe até aos 2,6milhões, ou seja ¼ da população do país).

No âmbito da questão da inflação é de destacar a situação da Autoeuropa no final do ano de 2022. Apesar dos lucros milionários da Volkswagen em Portugal, a empresa tinha limitado a sua proposta a um prêmio de 400€. Os trabalhadores colocaram na ordem do dia a necessidade de atualização salarial contra a vontade empresa e para tal passaram por cima da sua direção tradicional. Apoiaram-se numa direção alternativa construída no ascenso anterior (em 2007), o STASA, que garantiu uma greve parcial; esta greve alavancou o ânimo dos trabalhadores, que acabaram por obrigar a empresa a fazer não só uma segunda como uma terceira proposta de atualização salarial, mostrando como a luta combativa é determinante para que os trabalhadores façam valer a sua vontade.

Também a habitação tem sido um tema de destaque no país. Para se ter uma ideia, em janeiro de 2015, o metro quadrado das casas e apartamento em Portugal custava 1056 euros em média, hoje custa 2467 euros (dados da Idealista), um aumento de 134%. Segundo o INE, cerca de 25% dos residentes em Portugal com 15 e mais anos têm um empréstimo de habitação, sendo que a taxa Euribor tem subido de forma acentuada nos últimos meses, graças à medida anti-inflacionária (!) do BCE, levando a um aumento significativo na taxa de esforço de grande parte das famílias. Já para os que vivem em casas arrendadas o drama é outro, uma vez que os despejos por não renovação de contrato para o aumento abusivo das rendas têm sido recorrentes. De repente estás sem casa e tens de arrendar uma casa numa cidade em que a opção mais barata é um T0 a 600 euros por mês. Se o salário mínimo tivesse aumentado 134% como o m2 das casas, hoje estaria no valor de 1181 euros e não 760€, valor que tem atualmente. O salário médio aumentou apenas 3% (descontada a inflação) desde 2010 e não os 133% do m2 das casas. O problema é evidente, a cada mês a taxa de esforço de um trabalhador ou trabalhadora para pagar a sua casa aumenta de forma absurda e viver com dignidade nas principais cidades de Portugal vai deixando de ser um direito para quem cá trabalha. A gestão Costa foi a grande impulsionadora destes resultados, uma vez que atuou para alimentar a especulação imobiliária, seja através do favorecimento do turismo (e alojamento local), seja concedendo benefícios fiscais aos fundos de investimento imobiliário, que, como bons investidores, preferem apostar no mercado da habitação de luxo do que em construir casas a preços acessíveis para a maioria das pessoas. Além disso, concedeu também benefícios fiscais aos residentes não habituais e aos nómadas digitais com rendimentos mais elevados, o que lhes permite pagar casas a preços impossíveis para os salários nacionais.

A esta inicial disposição para não aceitar a conta da inflação e do descontentamento crescente com os problemas de habitação, junta-se o facto de os casos de corrupção ou mesmo os de favorecimento “legal” em empresas como a TAP colocarem de forma visível os dois pesos e duas medidas da política do Governo: para os de baixo “contas certas” e sacrifícios, para ricos e gestores apenas privilégios. É isto que tem feito explodir a raiva dos trabalhadores.

A luta dos professores e a necessidade da unificação das lutas e da greve geral contra o governo

Todavia, o grande facto político que marcou a conjuntura desde dezembro foi a greve de professores. O anúncio do Governo de que a contratação e gestão de professores passaria a ser feita por um Conselho Local de Diretores, substituindo assim o critério atual e objetivo da graduação profissional e apontando para um processo de municipalização do ensino, foi o que fez transbordar o copo do descontentamento dos professores desde dezembro de 2022. Esta proposta do governo combina-se com a acumulação de medidas aplicadas pelos governos PS, PSD e Troika que têm em comum dificultar a efetivação dos professores e colocar impedimentos para os efetivos não poderem subir na carreira. Além disso, os professores não viram reconhecido todo o tempo de serviço congelado entre 2011 e 2017, tendo ainda em falta mais de 6 anos trabalhados. Finalmente, a precariedade que obriga os professores a percorrer o país e mudar de local de trabalho todos os anos, é agravada pelo enorme impacto do aumento da inflação e da especulação no setor imobiliário.

Também aqui o descontentamento dos professores transbordou a sua direção tradicional (FENPROF), tendo encontrado espaço na proposta de luta do STOP, um sindicato alternativo e combativo surgido em 2018. A sua proposta de “greve por tempo indeterminado” acabou por ser uma greve organizada em cada escola, por comissões de greve, onde se decide democraticamente o modelo de realização de greve na própria escola. A partir de janeiro, o STOP integrou também as reivindicações do pessoal não docente, tornando-se, assim, uma luta global pela Escola Pública.

Estes elementos, aliados à enorme raiva acumulada no setor, permitiram dar um caráter extremamente combativo a esta luta, obrigando a FENPROF e outros setores sindicais a entrar na luta, a partir de janeiro, convocando greves distritais e uma manifestação nacional, com mais 150mil pessoas. A FENPROF, apesar de apelar à unidade, sempre se pautou por recusar a simples unidade da luta de todos os professores, cumprindo apenas a sua agenda. Prepara-se ainda para culpar o STOP por uma possível derrota, quando o acusa de enfraquecer o sindicalismo “responsável” e de dar argumentos ao Governo.

A resposta do Ministro da Educação foi reprimir o direito à greve, impondo serviços mínimos num serviço não essencial da economia, o que levou à perda de efetividade da greve e levou à mudança para outras formas de luta, como acampamentos e protestos regionais.

Ao mesmo tempo, o Ministro manteve total inflexibilidade, não recuando em nenhuma das suas propostas, apesar do apoio massivo da sociedade e da classe trabalhadora à luta dos professores. Acima de tudo combativa faltou uma frente única de todos os setores sindicais, que fizesse uma greve geral unificada da educação que encostasse o governo verdadeiramente à parede.

É preciso uma luta política que questione o modelo da democracia dos ricos

Ao mesmo tempo, a inflexibilidade do governo transformou a luta de professores numa luta política contra o Governo, que não se pode vencer isoladamente.

Mas não basta falar dos vários problemas que enfrentam os trabalhadores de forma separada. A classe trabalhadora e a povo pobre precisam de fortalecer e unificar as lutas e desenvolver um processo de mobilização que derrote o governo de António Costa de conjunto. Por isso consideramos fundamental que a CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses)  convoque uma grande greve geral no país, enquanto esta opta por organizar processos de luta separados diluindo a nossa força. 

Mas isso seria apenas o primeiro passo, pois dentro da democracia dos ricos não há alternativa para a crise social. 49 anos depois do 25 de abril, é preciso questionar este modelo de país em que vivemos.

PS e PSD-CDS, com mais ou menos medidas sociais, beneficiando mais um ou outro setor capitalista, partilham a responsabilidade da construção deste país de serviços e turismo, assente nos baixos salários e na destruição ambiental.

O Chega (de extrema-direita) quer afirmar-se como alternativa antissistema, colocando como centro a questão da corrupção, enquanto de forma oportunista diz estar com os professores ou outros setores que lutam. No entanto, o seu programa é a privatização de todos os serviços públicos, os ataques ao direito à greve e o reforço do poder autoritário do Estado, bem de acordo à sua simpatia com o salazarismo. Propõe ainda uma sociedade que se baseia na discriminação racial e étnica (como é o caso dos ciganos), enquanto protege os grandes capitalistas e garante a manutenção de Portugal dentro da UE. Também a Iniciativa Liberal aprofunda o caminho de submissão à UE, propondo ao mesmo tempo que o Estado sustente os privados, um modelo que a História já provou beneficiar apenas uma minoria privilegiada. Nada disto é a saída para os trabalhadores.

Já o PCP e BE criticam hoje o governo PS, mas a sua alternativa são novas Geringonças. Não querem novas eleições pois temem aprofundar as suas crises eleitorais. Estão presos aos seus privilégios no parlamento, mas acima de tudo à falta de um projeto alternativo à democracia dos ricos. Limitam-se, por isso, a atuar como conselheiros do PS. Embora reivindiquem as conquistas do 25 de Abril, não questionam hoje nem a democracia dos ricos que se instituiu 49 anos depois, nem o modelo de país submisso à UE. Querem tratar as feridas mais graves, mas recusam-se a curar a doença. 

Aceitar a democracia dos ricos e cumprir as regras da UE significa ficar de mãos atadas frente aos grandes problemas sociais e ecológicos do país, cujo preço é a desgraça e miséria da maioria da população. 

Por isso, é preciso levantar a saída da União Europeia, a nacionalização da banca e dos setores estratégicos da economia, a tomada do problema da habitação e da transição energética e ambiental nas mãos do estado, entre outras medidas sociais e ambientais. Só um governo que não esteja amarrado com os interesses dos patrões e da UE pode cumprir este programa, por isso é preciso um governo dos trabalhadores que construa uma verdadeira democracia.

Para levar avante esse programa que enfrente verdadeiramente a crise social e ecológica que é a barbárie do capitalismo, é preciso fazer uma nova revolução. Só assim será possível garantir verdadeiramente a defesa de direitos democráticos para os trabalhadores que estão cada vez mais questionados hoje, como o direito à greve. Mas acima de tudo que retomar a tarefa que ficou inacabada há 49 anos: acabar com o capitalismo e construir o socialismo, uma sociedade sem exploração e opressão, sustentável social e ecologicamente. Só assim poderemos falar de uma verdadeira democracia para os trabalhadores.

Para isso temos de tirar as lições do passado e construir uma organização revolucionária, que represente os trabalhadores e os seus setores mais oprimidos, como mulheres e negros. É ao serviço desse projeto nacional, mas também internacional, que está o Em Luta hoje, como grupo português da Liga Internacional dos Trabalhadores.

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