sex maio 17, 2024
sexta-feira, maio 17, 2024

Sobre o julgamento de Trump

Nesse momento, um julgamento penal contra o ex -presidente estadunidense Donald Trump está ocorrendo em uma corte em Manhattan (Nova York) por várias acusações relacionadas à “compra do silêncio” de uma ex – atriz pornô com quem Trump teria mantido um relacionamento[1]. Este julgamento se soma a outro, de caráter civil (também nos tribunais de Nova York) por “falsificação de declarações financeiras”[2]. Qual é o contexto e o significado político desses julgamentos?

Por: Alejandro Iturbe

A primeira coisa que chama a atenção é que, tendo motivos de muito maior peso para processá-lo e prendê-lo, Trump acabe sendo julgado por causas que são, em última instância, menores. Vejamos.

Em primeiro lugar, durante sua presidência, ele abordou a pandemia da Covid19 com uma criminosa política negacionista (comparando-a com “uma gripe”). Isso fez com que nos EUA, um dos países com maiores recursos financeiros e médicos para enfrentá-la, houvesse os piores registros mundiais de contágios e mortes (o próprio Trump se contagiou) [3]. Apesar das terríveis consequências de sua política criminosa nunca foi julgado por isso, embora seguramente foi um dos fatores que mais influiu para perder a reeleição.

Em segundo lugar, uma vez derrotado nas eleições de dezembro de 2020, iniciou uma campanha de que “o haviam roubado” e foi o mentor ideológico da mobilização de 6 de janeiro de 2021 em Washington, da qual surgiu um setor de organizações de extrema direita que ocuparam o Capitólio e impediu a cerimônia de transferência de poder para Joe Biden[4].

Ou seja, quebrou as regras do jogo do regime democrático burguês. Neste caso, foi submetido a um julgamento político no Parlamento mas que “encalhou” no Senado, onde foi finalmente absolvido. Em outras palavras, o próprio sistema político contra o qual havia atentado garantiu-lhe a impunidade[5].

Da TV para a Casa Branca

Lembremos brevemente a história pessoal de Trump e seu surgimento como uma das figuras mais importantes da política estadunidense da última década. Ele era um poderoso empresário da construção e negócios imobiliários. Com uma personalidade arrogante, machista e egocêntrica, havia ganhado popularidade com o reality show The Apprentice (O Aprendiz), no qual doze pessoas disputavam uma vaga em suas empresas. Cunhou a famosa frase “you are fired” (você está despedido). Nesse quadro, aproveita audazmente uma combinação de fatores e venceu, de modo um tanto inesperado, as eleições presidenciais no final de 2016.

Em primeiro lugar, aproveita a profunda crise e o desprestígio do partido republicano depois do fracasso e derrota do projeto Bush. Em 2015, se candidata como pré-candidato republicano à presidência e vence confortavelmente as eleições primárias deste partido, com um estilo personalista e “fora da caixa”, discurso populista de direita que prometia recuperar a “grandeza” dos EUA frente a um mundo que “se aproveitava” dessa “debilidade”, críticas aos “políticos de Washington” e aos “parasitas de Wall Street” que “não sabem o que é trabalhar”, enquanto mantinha seu perfil machista, homofóbico e racista.

Nas eleições presidenciais, aproveita o desgaste minoritário que os democratas sofreram com Obama e sua política de salvar os bancos e as grandes empresas, na crise de 2008. Embora tenha menos votos populares que Hillary Clinton, acaba eleito pelo antidemocrático sistema do Colégio Eleitoral (eleição indireta), no qual obteve maioria.

No quadro da crise que arrastava, Trump “revive” o partido republicano já que amplia sua base: aos seus eleitores tradicionais da classe média urbana reacionária soma-se uma mobilização eleitoral muito maior dos setores agrários baixos do “interior profundo” e, essencialmente, o apoio de setores da velha classe operária branca, castigados pela redução das indústrias tradicionais. Ao mesmo tempo, “apostando” em cargos de governadores, prefeitos, senadores e deputados que são eleitos pelo seu impulso eleitoral e que deslocam a “velha guarda republicana”; o mesmo ocorre com numerosos cargos do aparato do Estado e nas cortes de Justiça. Dessa forma, estabeleceu as bases de uma nova corrente política: o trumpismo.

A presidência e as eleições de 2020

Trump não era o presidente que os setores centrais da burguesia estadunidense queriam. Mas o aceitam, procuram “domesticá-lo” e o “aproveitam”. Foi o caso da reforma tributária aprovada em 2017, com uma grande redução de impostos às empresas. Mas, “o armário começou a cair”: primeiro, com a dinâmica de freio e recessão da economia em 2019, que daria um salto muito grande com a pandemia, em 2020, e, depois, com uma gestão desastrosa da própria pandemia.

Um elemento essencial da dinâmica da situação foram as rebeliões antirracistas que explodiram em todo o país após o assassinato de George Floyd, que agravaram a crise do regime[6]. Nesse quadro, os setores centrais da burguesia estadunidense veem a necessidade de fazer uma mudança de rumo e, essencialmente, que é necessário “apagar o incêndio” e canalizá-lo para o processo eleitoral[7].

A manobra deu resultado: as eleições de 2020 registraram o mais alto índice de eleitores da história do país. Inicialmente, Trump colaborou com esta tarefa, atraindo uma grande quantidade de eleitores republicanos. Mas, à medida que as pesquisas o apontavam como perdedor contra Joe Biden e Kamala Harris, começou a “descarrilhar” com denúncias sobre a “fraude” que estava sendo preparada contra ele. Ao manter a posição de que “o estavam roubando” durante o escrutínio, começou a gerar a ruptura massiva da burguesia com ele. Porque a política central era recompor o regime democrático burguês através da confiança nas eleições e Trump estava “bombardeando” esta confiança. A ocupação do Capitólio foi “a gota d’água” e o fim do trumpismo como corrente política “séria” da burguesia imperialista estadunidense.

O trumpismo e o partido republicano

Dissemos que Trump ficou isolado em sua relação com os setores centrais da burguesia imperialista estadunidense, que romperam com ele. No entanto, se considerarmos a sociedade estadunidense como um todo, não está tão sozinho. Ele criou, objetivamente, uma nova corrente política (vamos chamá-la de trumpismo) com um peso social importante e que tem continuidade depois de sua derrota eleitoral e inclusive depois dos fatos do Capitólio.

Estima-se que essa corrente teria o respaldo de 45.000.000 de pessoas, cerca de 30% do eleitorado do país. Um respaldo minoritário para voltar a ser presidente, mas suficiente para ter um peso decisivo dentro do partido republicano. Aos setores que integram o trumpismo que já mencionamos, caberia agregar outros grupos conservadores, em especial os grupos religiosos que, através dessa corrente, expressam suas aspirações, como a de eliminar (ou reduzir ao mínimo) o direito ao aborto.

Aqui é necessário fazer uma observação: esta corrente trumpista é muito reacionária e se baseia nos setores sociais que analisamos. Mas não é fascista, pelo menos por ora, embora em sua extrema direita se localizem organizações, até hoje muito minoritárias, que podem ser um embrião de movimento fascista.

Entre as correntes “não trumpistas” do partido republicano está a “velha guarda”, a que foi deslocada da direção com o ascenso de Trump. Este setor estaria de acordo em “tirar Trump do caminho” e, com isso, recuperar o controle do partido e voltar a transformá-lo em uma “ferramenta útil” para o regime burguês bipartidário. Mas um número importante de governadores, prefeitos, senadores e deputados republicanos precisam do apoio de Trump e do trumpismo para elegerem-se ou reelegerem-se. Então, não entram nessa linha, ou recuam caso já a apoiaram. Por isso, a “velha guarda” continua sendo minoritária e até agora, mostra-se incapaz de combater seriamente o trumpismo dentro do partido.

A principal aposta republicana para substituir Trump como principal figura do partido é Ron DeSantis (um advogado de 45 anos), governador do Estado da Flórida, que foi reeleito por ampla margem sobre seu adversário democrata. Do ponto de vista de seu perfil ideológico, DeSantis quase não tem diferenças com Trump e suas posições ultrarreacionárias[8].

Inclusive, o início de sua carreira na “política grande” (quando foi eleito representante legislativo pela Flórida, em 2016) ocorreu como parte do trumpismo e, no Parlamento, foi um dos grandes defensores das políticas do então presidente. Nesse quadro, tem algumas notórias vantagens sobre Trump: é um político jovem e em ascenso, com uma vida pessoal e familiar muito mais “limpa” e tradicional (um elemento de peso para os setores conservadores dos EUA).

Entretanto, esta mudança não está decidida. DeSantis ainda não definiu publicamente que será pré-candidato presidencial nas primárias republicanas, nas quais, talvez, deva enfrentar-se com o próprio Trump, e isso deixa na ambiguidade o perfil que adota publicamente. Segundo um estudo, a metade da base que o apoia quer nitidamente que seja o homem que afaste Trump e seus métodos, enquanto que a outra metade defende o ex -presidente e reage negativamente a qualquer ataque contra ele [9]. Neste quadro, DeSantis escolheu caminhar “sobre o fio da navalha” nessa ambiguidade tão comum na política burguesa e, em especial, nos EUA.

Diante dos julgamentos, Trump se apresenta como “vítima de um ataque injusto” instrumentado por tribunais que estariam “a serviço dos democratas”. Seu objetivo parece ser usar o peso político que conserva para negociar sua impunidade, não apenas no terreno político, mas também para a fortuna que acumulou em várias décadas e assim poder deixar uma herança política e empresarial para seus filhos. Negociará seu futuro político em troca de conservar a fortuna? É algo que saberemos nospróximos meses.

O governo de Biden

No campo dos democratas, a situação é um pouco mais tranquila, mas também não é fácil. O governo de Joe Biden começou seu mandato com dois triunfos. O primeiro foi consolidar o desmonte do processo de rebeliões antirracistas com uma política que combinou a cooptação da direção do movimento BLM (Black Lives Matter) com a condenação judicial do policial que assassinou George Floyd[10]. O segundo foi acabar com o período mais agudo da pandemia da Covid19 através da vacinação em massa.

Foi no terreno econômico que ele enfrentou os maiores problemas. Os “pacotes” aprovados pelo governo conseguiram ajudar a sair da grande queda provocada pelas medidas contra a pandemia e limar os aspectos mais explosivos da situação social derivada. Mas não conseguiram muito mais: apenas promoveram uma recuperação “anêmica” e com muitos problemas, em especial uma elevada inflação[11].

Esta elevada inflação gerou inclusive uma incipiente onda de greves, inclusive durante a própria pandemia[12]. Embora esta onda não tenha se generalizado, manteve uma continuidade e se expressou em greves docentes e ferroviárias [13]. Uma amostra da insatisfação subjacente da classe operária estadunidense com a situação atual. Agora se soma uma tendência cada vez mais recessiva e persistente da economia e, ao mesmo tempo, uma incipiente crise bancária iniciada em bancos ligados a empresas de “novas tecnologias”, como o SVB (Silicon Valley Bank) da Califórnia.

Em outro âmbito, Biden teve que assumir o custo político de assinar a derrota na guerra do Afeganistão[14]. Ao mesmo tempo, seu governo deixou correr a ofensiva legislativa e judicial para restringir o direito ao aborto, que foi respondida com importantes mobilizações [15].

Tudo isto provocou um desgaste eleitoral dos democratas que, nas eleições de “meio de mandato” de 2021, ameaçava provocar uma forte derrota frente aos republicanos. Entretanto, os democratas conseguiram “contornar a tempestade” e o resultado foi uma espécie de “empate”, valorizado com “satisfação”.

O “melhor inimigo”

Em um ano que estará marcado pelo longo processo das eleições presidenciais, os democratas saíram na frente e Joe Biden (80 anos) anunciou “extraoficialmente” que se candidatará para sua reeleição[16]. Uma forma de evitar um complexo processo de eleições primárias para sua sucessão e manter o partido unido.

Neste contexto, os julgamentos de Trump aparecem como uma jogada para desgastar sua figura (e do partido republicano em geral) e obrigá-lo a negociar seu futuro. Entretanto, quando se olha para o conjunto do quadro, Trump seria o “melhor inimigo” eleitoral que os democratas poderiam enfrentar (Biden em particular).

Por um lado, porque, com seus 76 anos, Trump ajuda a dissimular a idade do próprio Biden (e a inevitável decadência de seu envelhecimento). Mas, o essencial é que o perfil de Trump é o melhor para afirmar novamente que a tarefa central é “derrotar o trumpismo” e tudo o que representa. Dessa forma, se evitariam (ou adiariam) as profundas contradições da coalizão democrata entre sua ala direita e conservadora e seus setores mais radicalizados, que expressam diversas minorias (negros, imigrantes, jovens e mulheres, etc) e que, em seu momento, tomaram como referência Bernie Sanders. Voltarão a dizer: “Agora é todos juntos contra Trump”, como pressão para que se mantenham dentro do partido.

Para os socialistas revolucionários, o conjunto da situação abre importantes possibilidades de acumular forças em sua construção. Por um lado, pela comprovação cada vez mais evidente de que “o sonho americano” morreu (aquele que prometia o progresso constante com “trabalho duro e honesto”)[17]. Uma realidade que se expressa em permanentes ataques às suas conquistas e nível de vida e que, como resposta, gera lutas operárias e populares em diversos setores. São todas lutas que devemos impulsionar e intervir ativamente nelas.

O próprio processo eleitoral abre grandes possibilidades de dialogar com todas essas faixas operárias e populares que ainda confiam nos democratas. É necessário explicar pacientemente como este partido burguês é um caminho sem saída que, inevitavelmente leva a figuras conservadoras como Joe Biden, e antes Hillary Clinton. Que, por isso, é necessário romper com ele e iniciar a construção de uma nova organização operária e popular, independente do partido democrata e sua direção burguesa, que lute consequentemente pelas reivindicações e necessidades destes setores. E que, após a “morte do sonho americano”, proponha nitidamente uma saída socialista.


[1] Trump: la acusación sin precedentes contra el expresidente por falsificar información para ocultar delitos – BBC News Mundo

[2] Trump declara en juicio civil de Nueva York sobre su imperio empresarial (cnn.com)

[3] https://litci.org/pt/2020/04/24/covid-19-trump-e-o-coveiro-dos-estados-unidos/ [4] Para onde vão os EUA (Parte 1) https://litci.org/pt/2021/02/03/62970-2/

[5] El expresidente Donald Trump es absuelto en el juicio político (cnn.com)

[6]  https://litci.org/es/un-proceso-revolucionario-sacude-estados-unidos/

[7] https://litci.org/pt/2020/10/02/estados-unidos-entre-a-rebeliao-negra-e-as-eleicoes

/[8] ¿Quién es Ron DeSantis, el gobernador de Florida? (cnn.com)

[9] Enigma en la base DeSantis: a favor y en contra de Trump (eltiempolatino.com)

[10] https://litci.org/pt/2021/05/04/eua-o-veredicto-de-culpado-do-policial-assassino-e-uma-vitoria-como-uma-gota-de-agua-doce-no-oceano/

[11] https://litci.org/pt/2021/10/02/64989-2/

[12] https://litci.org/pt/2021/11/12/grande-onda-de-greves-nos-estados-unidos/

[13] https://litci.org/pt/2022/12/03/solidariedade-com-os-trabalhadores-ferroviarios-nao-aos-ataques-de-biden-e-do-congresso-a-greve/

[14] https://litci.org/pt/2021/08/17/afeganistao-a-consumacao-da-derrota-do-imperialismo/

[15] https://litci.org/pt/2022/05/16/eua-vamos-as-ruas-para-defender-o-direito-ao-aborto/

[16] EEUU: Joe Biden confirmó que irá por la reelección (ambito.com)

[17] https://litci.org/pt/2021/03/31/o-sonho-americano-morreu-2/

Sobre o julgamento de Trump

Nesse momento, um julgamento penal contra o ex -presidente estadunidense Donald Trump está ocorrendo em uma corte em Manhattan (Nova York) por várias acusações relacionadas à “compra do silêncio” de uma ex – atriz pornô com quem Trump teria mantido um relacionamento[1]. Este julgamento se soma a outro, de caráter civil (também nos tribunais de Nova York) por “falsificação de declarações financeiras”[2]. Qual é o contexto e o significado político desses julgamentos?

Por: Alejandro Iturbe

A primeira coisa que chama a atenção é que, tendo motivos de muito maior peso para processá-lo e prendê-lo, Trump acabe sendo julgado por causas que são, em última instância, menores. Vejamos.

Em primeiro lugar, durante sua presidência, ele abordou a pandemia da Covid19 com uma criminosa política negacionista (comparando-a com “uma gripe”). Isso fez com que nos EUA, um dos países com maiores recursos financeiros e médicos para enfrentá-la, houvesse os piores registros mundiais de contágios e mortes (o próprio Trump se contagiou) [3]. Apesar das terríveis consequências de sua política criminosa nunca foi julgado por isso, embora seguramente foi um dos fatores que mais influiu para perder a reeleição.

Em segundo lugar, uma vez derrotado nas eleições de dezembro de 2020, iniciou uma campanha de que “o haviam roubado” e foi o mentor ideológico da mobilização de 6 de janeiro de 2021 em Washington, da qual surgiu um setor de organizações de extrema direita que ocuparam o Capitólio e impediu a cerimônia de transferência de poder para Joe Biden[4].

Ou seja, quebrou as regras do jogo do regime democrático burguês. Neste caso, foi submetido a um julgamento político no Parlamento mas que “encalhou” no Senado, onde foi finalmente absolvido. Em outras palavras, o próprio sistema político contra o qual havia atentado garantiu-lhe a impunidade[5].

Da TV para a Casa Branca

Lembremos brevemente a história pessoal de Trump e seu surgimento como uma das figuras mais importantes da política estadunidense da última década. Ele era um poderoso empresário da construção e negócios imobiliários. Com uma personalidade arrogante, machista e egocêntrica, havia ganhado popularidade com o reality show The Apprentice (O Aprendiz), no qual doze pessoas disputavam uma vaga em suas empresas. Cunhou a famosa frase “you are fired” (você está despedido). Nesse quadro, aproveita audazmente uma combinação de fatores e venceu, de modo um tanto inesperado, as eleições presidenciais no final de 2016.

Em primeiro lugar, aproveita a profunda crise e o desprestígio do partido republicano depois do fracasso e derrota do projeto Bush. Em 2015, se candidata como pré-candidato republicano à presidência e vence confortavelmente as eleições primárias deste partido, com um estilo personalista e “fora da caixa”, discurso populista de direita que prometia recuperar a “grandeza” dos EUA frente a um mundo que “se aproveitava” dessa “debilidade”, críticas aos “políticos de Washington” e aos “parasitas de Wall Street” que “não sabem o que é trabalhar”, enquanto mantinha seu perfil machista, homofóbico e racista.

Nas eleições presidenciais, aproveita o desgaste minoritário que os democratas sofreram com Obama e sua política de salvar os bancos e as grandes empresas, na crise de 2008. Embora tenha menos votos populares que Hillary Clinton, acaba eleito pelo antidemocrático sistema do Colégio Eleitoral (eleição indireta), no qual obteve maioria.

No quadro da crise que arrastava, Trump “revive” o partido republicano já que amplia sua base: aos seus eleitores tradicionais da classe média urbana reacionária soma-se uma mobilização eleitoral muito maior dos setores agrários baixos do “interior profundo” e, essencialmente, o apoio de setores da velha classe operária branca, castigados pela redução das indústrias tradicionais. Ao mesmo tempo, “apostando” em cargos de governadores, prefeitos, senadores e deputados que são eleitos pelo seu impulso eleitoral e que deslocam a “velha guarda republicana”; o mesmo ocorre com numerosos cargos do aparato do Estado e nas cortes de Justiça. Dessa forma, estabeleceu as bases de uma nova corrente política: o trumpismo.

A presidência e as eleições de 2020

Trump não era o presidente que os setores centrais da burguesia estadunidense queriam. Mas o aceitam, procuram “domesticá-lo” e o “aproveitam”. Foi o caso da reforma tributária aprovada em 2017, com uma grande redução de impostos às empresas. Mas, “o armário começou a cair”: primeiro, com a dinâmica de freio e recessão da economia em 2019, que daria um salto muito grande com a pandemia, em 2020, e, depois, com uma gestão desastrosa da própria pandemia.

Um elemento essencial da dinâmica da situação foram as rebeliões antirracistas que explodiram em todo o país após o assassinato de George Floyd, que agravaram a crise do regime[6]. Nesse quadro, os setores centrais da burguesia estadunidense veem a necessidade de fazer uma mudança de rumo e, essencialmente, que é necessário “apagar o incêndio” e canalizá-lo para o processo eleitoral[7].

A manobra deu resultado: as eleições de 2020 registraram o mais alto índice de eleitores da história do país. Inicialmente, Trump colaborou com esta tarefa, atraindo uma grande quantidade de eleitores republicanos. Mas, à medida que as pesquisas o apontavam como perdedor contra Joe Biden e Kamala Harris, começou a “descarrilhar” com denúncias sobre a “fraude” que estava sendo preparada contra ele. Ao manter a posição de que “o estavam roubando” durante o escrutínio, começou a gerar a ruptura massiva da burguesia com ele. Porque a política central era recompor o regime democrático burguês através da confiança nas eleições e Trump estava “bombardeando” esta confiança. A ocupação do Capitólio foi “a gota d’água” e o fim do trumpismo como corrente política “séria” da burguesia imperialista estadunidense.

O trumpismo e o partido republicano

Dissemos que Trump ficou isolado em sua relação com os setores centrais da burguesia imperialista estadunidense, que romperam com ele. No entanto, se considerarmos a sociedade estadunidense como um todo, não está tão sozinho. Ele criou, objetivamente, uma nova corrente política (vamos chamá-la de trumpismo) com um peso social importante e que tem continuidade depois de sua derrota eleitoral e inclusive depois dos fatos do Capitólio.

Estima-se que essa corrente teria o respaldo de 45.000.000 de pessoas, cerca de 30% do eleitorado do país. Um respaldo minoritário para voltar a ser presidente, mas suficiente para ter um peso decisivo dentro do partido republicano. Aos setores que integram o trumpismo que já mencionamos, caberia agregar outros grupos conservadores, em especial os grupos religiosos que, através dessa corrente, expressam suas aspirações, como a de eliminar (ou reduzir ao mínimo) o direito ao aborto.

Aqui é necessário fazer uma observação: esta corrente trumpista é muito reacionária e se baseia nos setores sociais que analisamos. Mas não é fascista, pelo menos por ora, embora em sua extrema direita se localizem organizações, até hoje muito minoritárias, que podem ser um embrião de movimento fascista.

Entre as correntes “não trumpistas” do partido republicano está a “velha guarda”, a que foi deslocada da direção com o ascenso de Trump. Este setor estaria de acordo em “tirar Trump do caminho” e, com isso, recuperar o controle do partido e voltar a transformá-lo em uma “ferramenta útil” para o regime burguês bipartidário. Mas um número importante de governadores, prefeitos, senadores e deputados republicanos precisam do apoio de Trump e do trumpismo para elegerem-se ou reelegerem-se. Então, não entram nessa linha, ou recuam caso já a apoiaram. Por isso, a “velha guarda” continua sendo minoritária e até agora, mostra-se incapaz de combater seriamente o trumpismo dentro do partido.

A principal aposta republicana para substituir Trump como principal figura do partido é Ron DeSantis (um advogado de 45 anos), governador do Estado da Flórida, que foi reeleito por ampla margem sobre seu adversário democrata. Do ponto de vista de seu perfil ideológico, DeSantis quase não tem diferenças com Trump e suas posições ultrarreacionárias[8].

Inclusive, o início de sua carreira na “política grande” (quando foi eleito representante legislativo pela Flórida, em 2016) ocorreu como parte do trumpismo e, no Parlamento, foi um dos grandes defensores das políticas do então presidente. Nesse quadro, tem algumas notórias vantagens sobre Trump: é um político jovem e em ascenso, com uma vida pessoal e familiar muito mais “limpa” e tradicional (um elemento de peso para os setores conservadores dos EUA).

Entretanto, esta mudança não está decidida. DeSantis ainda não definiu publicamente que será pré-candidato presidencial nas primárias republicanas, nas quais, talvez, deva enfrentar-se com o próprio Trump, e isso deixa na ambiguidade o perfil que adota publicamente. Segundo um estudo, a metade da base que o apoia quer nitidamente que seja o homem que afaste Trump e seus métodos, enquanto que a outra metade defende o ex -presidente e reage negativamente a qualquer ataque contra ele [9]. Neste quadro, DeSantis escolheu caminhar “sobre o fio da navalha” nessa ambiguidade tão comum na política burguesa e, em especial, nos EUA.

Diante dos julgamentos, Trump se apresenta como “vítima de um ataque injusto” instrumentado por tribunais que estariam “a serviço dos democratas”. Seu objetivo parece ser usar o peso político que conserva para negociar sua impunidade, não apenas no terreno político, mas também para a fortuna que acumulou em várias décadas e assim poder deixar uma herança política e empresarial para seus filhos. Negociará seu futuro político em troca de conservar a fortuna? É algo que saberemos nospróximos meses.

O governo de Biden

No campo dos democratas, a situação é um pouco mais tranquila, mas também não é fácil. O governo de Joe Biden começou seu mandato com dois triunfos. O primeiro foi consolidar o desmonte do processo de rebeliões antirracistas com uma política que combinou a cooptação da direção do movimento BLM (Black Lives Matter) com a condenação judicial do policial que assassinou George Floyd[10]. O segundo foi acabar com o período mais agudo da pandemia da Covid19 através da vacinação em massa.

Foi no terreno econômico que ele enfrentou os maiores problemas. Os “pacotes” aprovados pelo governo conseguiram ajudar a sair da grande queda provocada pelas medidas contra a pandemia e limar os aspectos mais explosivos da situação social derivada. Mas não conseguiram muito mais: apenas promoveram uma recuperação “anêmica” e com muitos problemas, em especial uma elevada inflação[11].

Esta elevada inflação gerou inclusive uma incipiente onda de greves, inclusive durante a própria pandemia[12]. Embora esta onda não tenha se generalizado, manteve uma continuidade e se expressou em greves docentes e ferroviárias [13]. Uma amostra da insatisfação subjacente da classe operária estadunidense com a situação atual. Agora se soma uma tendência cada vez mais recessiva e persistente da economia e, ao mesmo tempo, uma incipiente crise bancária iniciada em bancos ligados a empresas de “novas tecnologias”, como o SVB (Silicon Valley Bank) da Califórnia.

Em outro âmbito, Biden teve que assumir o custo político de assinar a derrota na guerra do Afeganistão[14]. Ao mesmo tempo, seu governo deixou correr a ofensiva legislativa e judicial para restringir o direito ao aborto, que foi respondida com importantes mobilizações [15].

Tudo isto provocou um desgaste eleitoral dos democratas que, nas eleições de “meio de mandato” de 2021, ameaçava provocar uma forte derrota frente aos republicanos. Entretanto, os democratas conseguiram “contornar a tempestade” e o resultado foi uma espécie de “empate”, valorizado com “satisfação”.

O “melhor inimigo”

Em um ano que estará marcado pelo longo processo das eleições presidenciais, os democratas saíram na frente e Joe Biden (80 anos) anunciou “extraoficialmente” que se candidatará para sua reeleição[16]. Uma forma de evitar um complexo processo de eleições primárias para sua sucessão e manter o partido unido.

Neste contexto, os julgamentos de Trump aparecem como uma jogada para desgastar sua figura (e do partido republicano em geral) e obrigá-lo a negociar seu futuro. Entretanto, quando se olha para o conjunto do quadro, Trump seria o “melhor inimigo” eleitoral que os democratas poderiam enfrentar (Biden em particular).

Por um lado, porque, com seus 76 anos, Trump ajuda a dissimular a idade do próprio Biden (e a inevitável decadência de seu envelhecimento). Mas, o essencial é que o perfil de Trump é o melhor para afirmar novamente que a tarefa central é “derrotar o trumpismo” e tudo o que representa. Dessa forma, se evitariam (ou adiariam) as profundas contradições da coalizão democrata entre sua ala direita e conservadora e seus setores mais radicalizados, que expressam diversas minorias (negros, imigrantes, jovens e mulheres, etc) e que, em seu momento, tomaram como referência Bernie Sanders. Voltarão a dizer: “Agora é todos juntos contra Trump”, como pressão para que se mantenham dentro do partido.

Para os socialistas revolucionários, o conjunto da situação abre importantes possibilidades de acumular forças em sua construção. Por um lado, pela comprovação cada vez mais evidente de que “o sonho americano” morreu (aquele que prometia o progresso constante com “trabalho duro e honesto”)[17]. Uma realidade que se expressa em permanentes ataques às suas conquistas e nível de vida e que, como resposta, gera lutas operárias e populares em diversos setores. São todas lutas que devemos impulsionar e intervir ativamente nelas.

O próprio processo eleitoral abre grandes possibilidades de dialogar com todas essas faixas operárias e populares que ainda confiam nos democratas. É necessário explicar pacientemente como este partido burguês é um caminho sem saída que, inevitavelmente leva a figuras conservadoras como Joe Biden, e antes Hillary Clinton. Que, por isso, é necessário romper com ele e iniciar a construção de uma nova organização operária e popular, independente do partido democrata e sua direção burguesa, que lute consequentemente pelas reivindicações e necessidades destes setores. E que, após a “morte do sonho americano”, proponha nitidamente uma saída socialista.


[1] Trump: la acusación sin precedentes contra el expresidente por falsificar información para ocultar delitos – BBC News Mundo

[2] Trump declara en juicio civil de Nueva York sobre su imperio empresarial (cnn.com)

[3] https://litci.org/pt/2020/04/24/covid-19-trump-e-o-coveiro-dos-estados-unidos/ [4] Para onde vão os EUA (Parte 1) https://litci.org/pt/2021/02/03/62970-2/

[5] El expresidente Donald Trump es absuelto en el juicio político (cnn.com)

[6]  https://litci.org/es/un-proceso-revolucionario-sacude-estados-unidos/

[7] https://litci.org/pt/2020/10/02/estados-unidos-entre-a-rebeliao-negra-e-as-eleicoes

/[8] ¿Quién es Ron DeSantis, el gobernador de Florida? (cnn.com)

[9] Enigma en la base DeSantis: a favor y en contra de Trump (eltiempolatino.com)

[10] https://litci.org/pt/2021/05/04/eua-o-veredicto-de-culpado-do-policial-assassino-e-uma-vitoria-como-uma-gota-de-agua-doce-no-oceano/

[11] https://litci.org/pt/2021/10/02/64989-2/

[12] https://litci.org/pt/2021/11/12/grande-onda-de-greves-nos-estados-unidos/

[13] https://litci.org/pt/2022/12/03/solidariedade-com-os-trabalhadores-ferroviarios-nao-aos-ataques-de-biden-e-do-congresso-a-greve/

[14] https://litci.org/pt/2021/08/17/afeganistao-a-consumacao-da-derrota-do-imperialismo/

[15] https://litci.org/pt/2022/05/16/eua-vamos-as-ruas-para-defender-o-direito-ao-aborto/

[16] EEUU: Joe Biden confirmó que irá por la reelección (ambito.com)

[17] https://litci.org/pt/2021/03/31/o-sonho-americano-morreu-2/

tradução: Lílian Enck

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