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segunda-feira, junho 17, 2024

Chile: 3 anos após o 18 de outubro. Onde estamos? Como continuamos?

Em 9 de outubro de 2019, em uma entrevista a Mega (canal de televisão chileno), Piñera disse que o Chile era um “verdadeiro oásis” dentro de uma “América Latina convulsionada”. Naquele momento, o Equador vivia uma grande rebelião indígena, o Haiti estava em chamas, a Argentina e o Paraguai vinham saindo de importantes manifestações. Dez dias depois, o “oásis chileno” explodiu em uma convulsão ainda maior e mais violenta que a de todos os países vizinhos. A juventude foi a ponta de lança, mas milhões de nós saímos às ruas para dizer que já não aguentávamos tanta exploração e opressão. Sabíamos que o país moderno que os governantes apresentavam no exterior não era o que vivíamos cotidianamente. Os lindos edifícios de Vitacura ou as casas de Cachagua não são a realidade da maioria da população.

Por: MIT -Chile

O 18 de outubro foi a expressão de uma raiva acumulada durante décadas, depois de muitas lutas onde as respostas eram unicamente as promessas e a repressão, de ver como os escândalos de corrupção se multiplicavam; como os donos das AFPs roubavam nossas aposentadorias; como os jovens se endividavam por anos e décadas para pagar seus estudos. Em 18 de outubro dissemos: basta!

Esta edição de La Voz de los Trabajadores é um especial de balanço sobre os principais acontecimentos e conclusões do processo que se abriu em 18 de outubro de 2019.

Abre-se um processo revolucionário

Em nossa opinião, o 18 de outubro abriu um processo revolucionário no Chile. Por que não dizemos que foi uma simples explosão ou revolta? Pela profundidade dos fatos. Nós chilenos sabemos melhor do que ninguém como diferenciar um simples tremor de terra de um terremoto. Na política, também devemos ser capazes de fazê-lo.

Três características do 18 de outubro são fundamentais para caracterizá-lo como uma revolução: 1) a enorme massividade, transversalidade e permanência no tempo das manifestações; 2) o questionamento ao conjunto das instituições e ao “modelo econômico” implementado no país a partir da ditadura; 3) o alto grau de violência usado pelo movimento de massas para demonstrar sua raiva acumulada e defender-se da repressão estatal. Esta violência em muitos casos foi dirigida para os “símbolos” do capitalismo neoliberal chileno: monopólios farmacêuticos, bancos, AFPs, grandes empresas de varejo, instituições estatais, etc.

O 18 de outubro foi tão profundo que abriu todo um novo período, onde as massas passaram para a ofensiva e começaram a determinar, nas ruas, os rumos dos acontecimentos. Como dizia Lênin, o principal líder da Revolução Russa de 1917, “os de baixo não queriam continuar sendo governados como antes e tampouco os de cima podiam continuar governando como antes”. A maior mudança provocada pela “eclosão social” foi na consciência da classe trabalhadora e do povo em geral, que deu um basta a tantos abusos.

Entender que se abriu um processo revolucionário no Chile não significa dizer que essa revolução tenha triunfado. Nenhum dos problemas que gerou a “explosão social” foi resolvido e a possibilidade de uma nova explosão social (com características similares ou diferentes das de 18 de outubro) estará colocada enquanto o país continuar sob a dominação dos grandes empresários. Portanto, tirar as conclusões sobre o que está acontecendo agora tem um sentido: preparar-se para o futuro.

Por isso, tentaremos identificar, neste texto, os momentos mais decisivos dos últimos anos e as principais mudanças que ocorreram na realidade e na consciência das massas.

Foto: Chile, protestos 2019

12 e 15 de novembro de 2019

Uma das características mais importantes do 18 de outubro e das manifestações que o seguiram foi a ausência de uma condução ou direção. Não havia líderes, não haviam partidos ou movimentos sociais conduzindo a enorme massa na luta. Esse “espontaneísmo” teve dois aspectos, um positivo e outro negativo. O aspecto positivo é que os governantes, as instituições e os partidos tradicionais, não tinham como controlar a fúria popular ou prender um ou outro líder para destruir o movimento. Isso possibilitou que as massas continuassem nas ruas por vários meses, enfrentando o Estado, exigindo a saída de Piñera e profundas mudanças sociais.  O aspecto negativo, entretanto, é justamente a falta de uma direção que levasse a fundo a luta pela renúncia de Piñera e que pudesse conduzir o país à realização das demandas levantadas nas ruas. Assim, o próprio desgaste do movimento levou os velhos (e jovens) políticos a conduzirem o descontentamento popular para um Acordo para manter quase tudo igual. Entre os ativistas que estavam nas assembleias, conselhos e manifestações não havia clareza sobre qual caminho era necessário seguir para triunfar. Dessa forma, esse “vazio” foi ocupado por organizações que tinham uma estratégia e um programa político, os partidos políticos reformistas [principalmente Frente Ampla e PC] e as organizações sindicais e sociais dirigidas pelo reformismo [CUT, Colégio de Professores, Coordenadora 8M, Coord. NÃO + AFP, etc.]

Depois de mais 3 semanas de mobilizações, os dias 12 e 15 de novembro de 2019, foram decisivos para delimitar como a revolução continuaria.

Em 12 de novembro um amplo setor da classe trabalhadora respondeu ao chamado à “Greve Geral” realizado pela Mesa da Unidade Social, que agrupava diversos sindicatos do setor público, privado e organizações sociais. Naquele dia, em todo o país, houve paralisações de portos, metrôs, hospitais, colégios, atividades da construção, etc. Alguns sindicatos mineiros, o setor mais importante do proletariado do país, pelo seu peso econômico, se somaram às mobilizações, mas a grande maioria dos sindicatos mineiros se absteve, devido ao papel da burocracia sindical, inclusive quando a maioria dos trabalhadores queria paralisar as atividades. A enorme potência da classe trabalhadora organizada se combinou com a energia da juventude popular em diferentes cidades. Em Santiago, a grande marcha dos sindicatos se uniu às manifestações da juventude, que se manteve durante horas enfrentando a polícia nos arredores do Palácio de la Moneda.

Depois das manifestações e protestos de 12 de novembro, o governo ficou por um fio. Piñera ameaçou novamente colocar os militares nas ruas, mas não pode fazê-lo, já que os próprios generais não quiseram, pois sabiam que se saíssem novamente às ruas era para realizar um massacre, o que teria enormes consequências. A recusa dos oficiais em voltar às ruas não foi devido a nenhuma consideração moral. Pelo contrário, segundo contam algumas reportagens jornalísticas (ver o livro La Revuelta), os militares exigiam que Piñera assumisse a responsabilidade direta sobre a repressão; eles sabiam que se o povo vencesse e conseguisse derrubar o governo, eles seriam castigados, como aconteceu em outros países. O que queriam era passar a batuta para Piñera, que titubeou.

Com a recusa dos militares de voltar às ruas, as únicas opções que restavam ao governo eram: negociar um grande acordo nacional ou renunciar. Para a salvação de Piñera, a “esquerda” e a direita se uniram para dar uma saída à crise. Depois de intensas negociações, surgiu o Acordo pela Paz de 15 de novembro, que propôs canalizar a crise para uma Nova Constituição. Com isso, Piñera se manteve no governo, os generais em seus postos e as instituições em suas funções.

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O 12 de novembro foi o auge da nossa luta e mostrou que era possível derrubar Piñera, conquistar o julgamento e punição dos militares e políticos responsáveis pela repressão e iniciar um profundo processo de mudanças sociais. No entanto, as organizações que iam se delineando como direções do processo o canalizaram para o Acordo pela Paz e não para uma Greve geral por tempo indefinido e uma insurreição que pudesse abrir outro caminho para a revolução.

A partir daquele momento, se iniciou uma grande operação das organizações reformistas. O Partido Comunista, a Frente Ampla e o PS (um partido diretamente burguês, mas com peso no movimento social e sindical) começaram a desarmar o movimento social e conduzir tudo para o Processo Constituinte. Assim, a CUT e diferentes Federações e sindicatos dirigidos por esses partidos, foram diminuindo a intensidade de suas convocações e, apesar de seus chamados para novas Paralisações Nacionais, não houve construção nas bases e a demanda foi abandonada pela renúncia de Piñera. Esta situação chegou a ser patética quando, alguns meses depois, o bloco sindical da Mesa da Unidade Social (Colégio de Professores, ANEF, CUT, NÃO + AFP, etc) convocou uma “paralisação de 11 minutos” contra o governo de Piñera.

Junto com a desmobilização do movimento sindical, esses partidos disputavam cada assembleia popular, conselho e organização territorial ou popular. Grande parte das assembleias populares se dividiram frente ao Processo Constituinte e muitas começaram a escrever “por baixo” a Nova Constituição, deixando em segundo plano a organização para derrubar o governo. Um setor do movimento feminista separatista também teve um papel muito reacionário, dividindo muitos espaços de organização popular e formando organizações separatistas de mulheres, o que enfraqueceu a organização popular.

Depois do Acordo, amplos setores populares continuaram nas ruas. Muitos coletivos que desconfiavam dos políticos tradicionais diziam que era necessário continuar nas ruas, mas não tinham uma estratégia alternativa, nem peso suficiente dentro da classe trabalhadora e dos territórios para impor outra agenda.

O Acordo pela Paz fecha o caminho para as mudanças profundas

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O Acordo pela Paz foi uma grande jogada do empresariado e seus partidos. Em primeiro lugar, porque colocava limites fundamentais à soberania da Convenção que redigiria a Nova Constituição. Proibia a Convenção de tocar nos Tratados de Livre Comércio (espinha dorsal do capitalismo neoliberal chileno); mantinha-a submetida à Corte Suprema e ao Parlamento; estabelecia o quórum de ⅔ para as votações, que os empresários sabiam que daria aos seus partidos o poder de bloquear as transformações que atingissem seus interesses.

Além de todos esses entraves, o Acordo incluía dois Plebiscitos, que seriam novas oportunidades para o grande empresariado de derrotar completamente a possibilidade de uma Nova Constituição redigida “democraticamente”, o que terminou acontecendo com a vitória do Rechaço.

Toda essa “anatomia” do Acordo tinha uma função: bloquear todas as mudanças sociais que significassem tocar nos privilégios dos donos do Chile: o grande empresariado chileno e as transnacionais. Boric e a Frente Ampla foram fundamentais para gerar essa “saída”. O Partido Comunista, embora não tenha assinado o Acordo, respaldou-o no dia seguinte com alguns “reparos”.

A partir daquele momento, a estratégia desses partidos foi a que conduziu o processo. Essa “esquerda institucional” começou a instalar a ideia de que era possível obter as demandas sociais sem romper com a direita, a ex Concertação e sem enfrentar o empresariado. Instalaram a ideia de que era possível conquistar as mudanças pacificamente e através de um Processo Constituinte sob controle do regime atual.

O Processo Constituinte e as forças políticas

No primeiro plebiscito, com o voto voluntário, mais de 78% dos votantes aprovou a necessidade de redigir uma Nova Constituição, inclusive um setor da direita e toda a ex Concertação, já que apostavam em conter as mudanças dentro da própria Constituição Constitucional. A direita mais dura (Republicanos, UDI-União Democrática Independente, e setores da RN-Renovação Nacional) foi a única que se manteve no Rechaço, mas foi duramente derrotada. A eleição dos constituintes também foi um grande golpe aos partidos tradicionais, com a entrada de dezenas de independentes na Convenção.

Por outro lado, enquanto o Processo Constituinte se desenvolvia, a situação da classe trabalhadora continuava piorando. A pandemia foi um penoso golpe para os trabalhadores e o povo. Tivemos milhares de mortes, muitos perderam seus empregos ou tiveram que trabalhar em condições ainda mais precárias. Devido ao temor de que houvesse uma nova explosão social, o Congresso foi obrigado a aprovar as retiradas das AFPs e alguns bônus. Entretanto, não houve nenhuma mudança que solucionasse os profundos problemas sociais. Assim, a Convenção continuou concentrada na discussão sobre o futuro do país. Com a diminuição das mobilizações, os constituintes passaram a ter um papel ainda mais importante.

Foram vários os fatores que levaram o Processo Constituinte ao fracasso. Houve uma verdadeira divisão de tarefas entre os diferentes partidos e os constituintes independentes para que chegássemos à proposta da Nova Constituição e à vitória do Rechaço.

A direita, principal representante do grande empresariado, sendo absoluta minoria na Convenção, a atacou por todos os lados. Os políticos e constituintes de direita usaram sua influência na mídia para deslegitimar a Convenção, organizando um verdadeiro boicote e aproveitando-se de cada fato político para atacar os constituintes e o movimento popular. O grande empresariado também atacou a Convenção através das organizações patronais, que durante todo o Processo geraram temor na população dizendo que se esta ou aquela proposta fosse aprovada, o país entraria em crise ou seria destruído (isto aconteceu com a proposta de nacionalização da grande mineração, a de acabar com os direitos de uso da água, as propostas sobre aposentadorias, saúde, educação, etc).

Por outro lado, o Partido Socialista (PS) e a Frente Ampla (FA) tiveram o papel de negociar permanentemente com os independentes para chegar aos ⅔ para aprovar as normas. O Partido Socialista também é um representante do grande empresariado, apesar da sua “cara” de esquerda. Assim, junto com a Frente Ampla, bloqueavam qualquer proposta que tocasse nos interesses dos empresários. Nas principais votações, direita, PS e FA votaram juntos, por exemplo contra a nacionalização da grande mineração do cobre, a libertação dos presos políticos chilenos e mapuche, o fim imediato dos direitos de uso da água, pela defesa da propriedade privada dos grandes grupos econômicos, etc.

O Partido Comunista (PC), que ameaçou cercar a Convenção Constitucional com mobilizações, nunca cumpriu sua promessa. Dentro da Convenção, votavam a favor de algumas das propostas mais “radicais” para não perder o contato com os independentes e não se queimar diante da população. No entanto, o verdadeiro papel do PC era funcionar como “articulação” entre os setores mais radicais e o PS/FA. Quando as posições mais radicais eram derrotadas, o PC ajudava a conduzir as negociações entre independentes e partidos. E enquanto tinham um discurso radical na Convenção, faziam exatamente o contrário no governo. Enquanto votavam a favor da nacionalização do cobre, sua porta voz no governo, Camila Vallejo, dizia na televisão que não haveria nacionalização, tranquilizando o grande empresariado.

Por fim, os independentes também tiveram um importante papel, já que concentravam grande parte da expectativa popular e tinham muitos laços com os territórios e movimentos populares.

Por um lado, é importante reconhecer que várias das demandas sociais das manifestações foram defendidas pelos independentes no interior da Convenção e foram aprovadas, já que os partidos sabiam que deveriam entregar algo para conter o descontentamento popular. Assim, foram aprovadas medidas como a gratuidade da educação pública, o sistema de seguridade social público, o aborto, etc. Entretanto, os constituintes independentes tiveram uma grande oportunidade de apontar uma direção ao movimento social que passasse por fora do bloco PS/FA/PC e não o fizeram.

No início da Convenção, 34 constituintes independentes assinaram o Manifesto do Porta Voz dos Povos, que propunha 6 pontos fundamentais para o avanço do Processo Constituinte (libertação dos presos políticos, desmilitarização do Wallmapu, soberania da Convenção, etc).  Esse Manifesto foi assinado por mais de 600 organizações sociais e sindicais. Naquele momento, justo no início da Convenção, esses 34 constituintes deveriam ter convocado um Grande Encontro Nacional de todas essas organizações e preparado mobilizações para lutar por esses 6 eixos e as demais demandas de outubro. Esta foi a posição defendida por nossa companheira María Rivera no interior da Convenção e pelo MIT no movimento.1  No entanto, os independentes não a apoiaram. Depois da publicação do Manifesto, que foi um “escândalo nacional”, a imprensa burguesa começou a atacá-los de forma contundente. Assim, muitos começaram a desdizer seu apoio ao Manifesto. Poucas semanas depois, começada a Convenção, os independentes se adaptaram completamente à lógica parlamentar das negociações, priorizando totalmente as reuniões com a FA/PS/PC em detrimento da organização e mobilização nas ruas.  Assim, perderam a grande oportunidade de conduzir o movimento social e ultrapassar os limites da própria Convenção. Como consequência, depois de um início tumultuado, a Convenção Constitucional terminou sendo dirigida pelos partidos que hoje compõem o governo de Boric com o apoio ativo da maioria dos independentes.

O fracasso de um programa e uma estratégia para conquistar mudanças sociais

Aqui também é fundamental identificar outro elemento que conduziu ao fracasso do Processo Constituinte para gerar mudanças sociais.

Não é difícil identificar quais foram as principais demandas dos milhões que saímos às ruas. Moradia, saúde e educação públicas e de qualidade, melhores salários e aposentadorias, acabar com a contaminação, ter acesso à água, etc. No caso dos mapuche e outros povos originários, o respeito às suas terras e territórios e às suas culturas. Nenhuma dessas demandas era novidade e todos os partidos e organizações as reconhecem.

O problema começa justamente na pergunta: como solucionar essas demandas?

O setor que conduziu a revolução até agora tinha uma hipótese. Segundo esse setor, o maior problema do Chile era (e continua sendo) o neoliberalismo. Então, propunham aumentar a participação do Estado na economia e na oferta dos serviços públicos e fazer reformas na institucionalidade estatal para permitir que esta fosse mais democrática. Assim, chegaríamos a um capitalismo mais humano e menos desigual. Segundo esse setor, a Nova Constituição preparava o terreno para esse caminho. Para eles, era possível acabar com o neoliberalismo e ter um Chile mais justo sem nenhuma ruptura ou enfrentamento com os donos do país. Essa visão também ganhou a hegemonia dentro dos movimentos sociais, pela falta de uma estratégia e um projeto diferentes.

Pois bem, a proposta da Nova Constituição materializava esse projeto e o Processo Constituinte essa estratégia para conquistar mudanças.

Em nossa opinião, nem o Acordo pela Paz era a via para conquistar mudanças sociais, nem o projeto da Nova Constituição solucionaria as demandas sociais e ambientais. A Nova Constituição, ainda que contivesse algumas conquistas das lutas sociais, tinha duas grandes contradições: não tocava no domínio dessas 10 famílias e das transnacionais sobre o conjunto da economia chilena e não mudava as principais instituições estatais que são responsáveis por manter essa dominação (Parlamento, Justiça, FFAA, Polícia, etc).

Para sermos muito específicos no que queremos dizer: quando se discutiu a questão das aposentadorias, a maioria da Convenção Constitucional se negou a acabar com as AFPs e transferir os fundos controlados por essas instituições para uma entidade estatal que fosse administrada pelos trabalhadores ativos e aposentados. Na educação, a Convenção rejeitou acabar com o financiamento público ao setor privado. Na habitação, a Convenção se negou a estabelecer regras especiais que permitissem expropriar grandes terrenos improdutivos para a construção de moradias. Em relação ao financiamento dos direitos sociais, a Convenção rejeitou a nacionalização da grande mineração do cobre, o que permitiria financiá-los. Em relação à natureza, a Convenção aprovou medidas gerais, mas rejeitou as que se chocavam mais diretamente com o grande empresariado, como a participação obrigatória das comunidades em decisões sobre grandes projetos de mineração ou industriais. Em relação à institucionalidade política, as mudanças também foram superficiais.  As Forças Armadas ficaram intactas. Não foram aprovadas medidas reais de julgamento e punição aos que assassinaram e mutilaram o povo. A estrutura das FFAA ou Carabineiros não foi democratizada e não foram gerados mecanismos para um efetivo controle popular das “forças da ordem”. Em relação aos Tratados de Livre Comércio, a Convenção manteve um enorme poder nas mãos da figura do Presidente e rejeitou todas as medidas que exigiam plebiscitos populares para sua aprovação. E, o mais importante, a Convenção manteve a proteção aos grandes grupos econômicos através dos artigos sobre a propriedade privada. Assim, ainda que a Nova Constituição tivesse sido aprovada, o país continuaria nas mãos dos grandes monopólios.

Enquanto a Nova Constituição saía do forno, os que conduziam o Processo Constituinte entraram no governo e sua estratégia para as mudanças foi colocada à prova. Com o passar das semanas, ficou evidente que o governo se preocupava mais em negociar suas reformas com os donos do país do que em melhorar as condições de vida das massas trabalhadoras. Assim, a maioria da população, descontente com o governo, com a Convenção e influenciada pela propaganda da direita, acabou por votar Rechaço à Nova Constituição.

Do nosso ponto de vista (e isto temos defendido desde o início do processo revolucionário e no interior da Convenção) é impossível solucionar as demandas populares se não enfrentarmos o grande empresariado chileno e as transnacionais imperialistas. Os governos da ex Concertação demonstram claramente que a estratégia de realizar reformas pactuando com o grande empresariado inviabiliza completamente as transformações sociais. Essa estratégia foi justamente o que fracassou com o Processo Constituinte e agora com o governo de Boric. Ainda que a Frente Ampla e o PC dizem ter a intenção de mudar o país, já é evidente que sua estratégia não leva a isso. Eles se renderam completamente ao grande empresariado.

Nossa intervenção na Convenção Constitucional

Foto: María Rivera ex constituinte e dirigente do MIT-Chile

Desde o início fomos críticos do Acordo pela Paz e alertamos os trabalhadores para que não tivessem grandes expectativas na Convenção Constitucional (CC). Isto porque havia muitos obstáculos para obter conquistas reais. Por isso, já no início, propusemos que a Convenção fosse declarada soberana e tomasse medidas imediatas que beneficiasse a maioria da classe trabalhadora.

No segundo dia da Convenção, a maioria dos constituintes aprovaram uma declaração exigindo do Parlamento que aprovasse o projeto de indulto aos presos políticos da revolução e mapuche e algumas outras medidas. Nossa companheira María Rivera não votou a favor dessa resolução e propôs outra, que propunha que a Convenção deveria dar um prazo de 15 dias ao Parlamento para votar o Projeto de Indulto e uma anistia para todos os presos políticos chilenos e mapuche.2  Se o Parlamento não as aprovasse, a Convenção, de forma soberana, deveria aprovar essas medidas e convocar grandes manifestações populares. Esta proposta nem chegou à votação, já que a mesa da Convenção (Elisa Loncón e Jaime Bassa) instalaram uma medida totalmente antidemocrática de que somente propostas com 32 assinaturas poderiam ser votadas. Hoje fica mais do que evidente que a proposta votada pela Convenção não teve nenhum efeito na realidade, como já alertávamos naquele momento.3

Já em agosto (segundo mês), propusemos que a Convenção se declarasse soberana e tomasse o poder em suas mãos para adotar “medidas extraordinárias para garantir a vida no contexto da emergência sanitária. Aumento geral de salários e aposentadorias, finalização do atual sistema de aposentadorias/pensões, proibição da demissão por necessidade das empresas, redução da jornada de trabalho sem redução salarial”.4

Para aproximar a Convenção da população, propusemos também que a CC exigisse do Parlamento: “a aprovação imediata de uma Lei para implementar em cada local de trabalho um tempo protegido de 10 horas semanais para os trabalhadores e trabalhadoras de tempo integral (e proporcional ao tempo de trabalho), sem desconto de suas remunerações, com o propósito de poderem se organizar e discutir suas necessidades e as alterações correspondentes na futura Constituição…”

Nenhuma dessas medidas sequer chegou à votação, devido à regra mencionada acima.

No discurso inaugural, nossa companheira resgatou a tradição histórica de luta do movimento operário, popular e mapuche, propondo que a única saída para os problemas do Chile e do Wallmapu é que a classe trabalhadora, aliada com os povos originários, lute pelo poder para acabar com a dominação das 10 famílias mais ricas e o imperialismo, visando uma sociedade socialista. Também criticamos os chamados países socialistas ou comunistas, demonstrando que em todos eles existem governos autoritários ou ditaduras a serviço das burguesias nacionais ou internacionais e de seus militares, como é o caso da Venezuela ou Cuba.

Posteriormente, passamos a denunciar que a Nova Constituição seria letra morta se não fosse aprovada a nacionalização da grande mineração do cobre, a maior riqueza do país, proposta que defendemos durante vários meses e foi rejeitada com votos contrários da direita, ex Concertação e Frente Ampla. Além disso, muitas das propostas de nossa companheira que significariam mudanças substantivas para a população foram rejeitadas, como o fim da subcontratação, a possibilidade de expropriar grandes extensões de terras sem pagamento de indenizações aos grandes latifundiários, o direito à retirada total das AFPs, o fim do financiamento público à educação privada, etc.

Outras duas medidas propostas pela nossa companheira permitiriam mudar de fundo a realidade chilena, colocando toda a economia do país e as instituições estatais a serviço da grande maioria da população e não de uma ínfima minoria que tem a propriedade das grandes empresas e bancos.

A primeira delas gerou “escândalo” entre a mídia, os intelectuais burgueses e a maioria dos partidos políticos (e inclusive dos independentes): a proposta de dissolver os atuais poderes do Estado e substituí-los por uma Assembleia Plurinacional das e dos trabalhadores e dos povos, com representantes eleitos em todos os locais de trabalho, moradia e na suboficialidade das FFAA, com cargos revogáveis e salários de um trabalhador. Muitos políticos e intelectuais da burguesia qualificaram nossa proposta como uma “loucura”, como algo “fora das margens culturais do país”. Acreditamos justamente no contrário. Uma proposta de poder verdadeiramente democrático passa por demolir todas as instituições atuais, que estão totalmente a serviço dos grandes grupos econômicos e corrompidas até o pescoço. A cada semana vemos um novo escândalo de corrupção envolvendo políticos, oficiais das FFAA e Carabineiros, ministros, subsecretários, etc. Isto não tem nada a ver com um problema ético dos políticos, tem a ver com o controle dos grandes grupos econômicos e do dinheiro sobre as instituições estatais.  Não há forma de mudar esta situação que não seja passando o poder diretamente aos que produzem a riqueza do nosso país, a classe trabalhadora, organizada democraticamente.  Esta proposta teve zero votos na Comissão de Sistemas Políticos. Nenhum constituinte (nem os independentes da esquerda que falavam de “poder popular”) se atreveram a votar a favor.

A segunda proposta, que ia no mesmo sentido, propunha estatizar todas as grandes empresas estratégicas (mineração, florestais, portos, bancos, AFPs, etc) e colocá-las sob controle da classe trabalhadora organizada. Com essa medida, seria possível planificar a economia para satisfazer as necessidades de moradia, saúde, educação, trabalho e aposentadorias da maioria da população. Esta proposta obteve 6 votos a favor na Comissão do Meio Ambiente, sendo rejeitada pela maioria da Comissão.

Por fim, no último discurso de nossa companheira María Rivera, denunciamos que a Convenção havia fracassado em mudar estruturalmente o país e que tanto a direita como a esquerda (inclusive os independentes) eram responsáveis por essa situação. O MIT chamou a votar Aprovo no Plebiscito de saída e acreditamos que essa posição estava correta. Isto porque avaliávamos que a vitória do Rechaço significaria uma derrota para o movimento de massas e um retrocesso inclusive nas mais mínimas medidas democráticas que foram aprovadas pela Convenção, o que poderia levar à desmoralização de milhares ou milhões de pessoas que lutaram nos últimos anos. Esta análise vem sendo confirmada hoje, já que o grande empresariado se sente encorajado para aprovar medidas ainda mais violentas contra o povo, como o TPP11(Tratado Integral e Progressista de Associação Transpacífico), que acabará com o que resta de soberania nacional e há um grande setor do ativismo desorientado e desmoralizado pela derrota.

Em que situação estamos hoje?

A situação da classe trabalhadora é cada dia pior. A inflação corrói os salários, as AFPs continuam existindo e seus donos continuam ganhando milhões com nossas aposentadorias. As mineradoras transnacionais continuam levando gratuitamente nosso cobre. E o pior, hoje vemos um governo completamente controlado pelos partidos dos 30 anos e consequentemente pelos grandes empresários. A esperança de mudança com Boric se desvanece rapidamente.

A direita se fortaleceu depois dos primeiros golpes que sofreram com a “explosão social”. Já durante o governo de Piñera, os setores mais duros da direita se diferenciaram do governo, exigindo maior repressão ao movimento social e mão mais firme contra os imigrantes e os grupos mapuche autonomistas no sul. A crise migratória no norte do país, que aprofundou os problemas sociais em Arica, Iquique e outras cidades, fez com que a direita se fortalecesse estimulando um discurso xenofóbico, que aponta os imigrantes como os responsáveis pela situação de pobreza da população chilena. Assim, vimos cenas lamentáveis de marchas de chilenos contra a migração onde até barracas de venezuelanos foram queimadas.

O aumento da violência nas grandes cidades, fruto do aumento da pobreza, também é usado pela direita para exigir maior investimento nos Carabineiros, Estados de Exceção e maior violência contra a população pobre e trabalhadora.

Por outro lado, com a vitória do Rechaço no Plebiscito, a direita, os intelectuais da burguesia e inclusive do reformismo, dizem que o que fracassou foi o “outubrismo” e “as propostas mais radicais”. Querem deslegitimar as mobilizações sociais que explodiram em 2019 e convencer os trabalhadores de que são os políticos e os “especialistas”, os mesmos de sempre, que resolverão os problemas sociais.  Como sempre, mentem ao povo para manter os privilégios dos grandes empresários e os seus próprios.

Em nossa opinião, o fracasso do Processo Constituinte e do Rechaço à Nova Constituição demonstra o fracasso do projeto reformista da Frente Ampla/PC para conquistar mudanças sociais negociando com a direita, a ex Concertação e o grande empresariado e não o fracasso das mobilizações sociais como uma via para conquistar transformações.

Estamos convencidos de que se em 2019, tivéssemos conseguido derrubar o governo de Piñera poderíamos ter conquistado uma Assembleia Constituinte muito mais democrática que tivesse o poder em suas mãos para tomar medidas imediatas a serviço do povo. Como discutiremos em outro artigo, a conquista de uma AC “livre e soberana” deveria ser somente um passo para formar um projeto de poder da classe trabalhadora e do povo, porque só assim será possível acabar de vez com a exploração capitalista e construir outra sociedade.

Hoje o grande empresariado se sente fortalecido com a vitória do Rechaço. O governo de Gabriel Boric não solucionará nenhuma das demandas sociais e piorará ainda mais as condições de vida da maioria da população, já que seu projeto é defender o capitalismo e o grande empresariado. Se antes o governo tinha a intenção de fazer algumas tímidas reformas para retirar algumas migalhas do grande empresariado e entregá-las à população mais pobre, agora nem isso será possível, já que seu governo está totalmente controlado pela ex Concertação. Podemos esperar também um aumento da repressão às lutas do povo trabalhador, da juventude e do povo mapuche.

Mas ainda é cedo para determinar se a vitória do Rechaço significou um golpe tão duro (a ponto de acabar) que feche o processo revolucionário iniciado em 2019. Como já dissemos anteriormente, as condições materiais de vida da classe trabalhadora continuam piorando e é muito provável que isto gere lutas sociais, independentemente se são trabalhadores que votaram “rechaço” ou “aprovo”.

O que fazer?

O novo Processo Constituinte que está sendo negociado pelos partidos será ainda menos democrático que o anterior, já que, pelo que tudo indica, os partidos do regime controlarão todos os espaços da Nova Convenção (se é que chegarão a um acordo de ter uma Nova Convenção). Assim, a classe trabalhadora, a juventude e o povo não podem esperar nada desse Processo.

Tudo isso não significa que devemos ficar paralisados, pelo contrário. O descontentamento do nosso povo é igual ou maior que antes e é muito possível que se expresse em diferentes mobilizações por demandas econômicas, sociais, ambientais, etc. Devemos superar a luta entre “os que votaram aprovo e os que votaram rechaço”. A maioria da classe trabalhadora votou rechaço e isso não significa que são reacionários ou estejam com a direita.

Os dirigentes sindicais comprometidos com a luta social, os jovens ativistas, as mulheres, etc, devemos voltar às bases e dialogar com cada vizinho, familiar e amigo para explicar-lhes que somente o povo organizado e mobilizado poderá conseguir mudanças sociais.

Devemos explicar-lhes pacientemente que todos os problemas do Chile vêm de uma origem comum: o domínio do país pelas 10 famílias e algumas transnacionais, que levam toda a riqueza produzida pelos trabalhadores. O saque do cobre tem importância especial, já que se trata da principal riqueza que nosso país produz. Por isso, a luta pela nacionalização da grande mineração do cobre sob controle dos trabalhadores e comunidades permitiria solucionar grande parte das demandas sociais e iniciar uma transição para outra matriz produtiva, que não dependa da exportação de matérias primas e não seja tão destrutiva para a natureza. É fundamental que estudemos para podermos fazer essas discussões, que conheçamos dados e informações, organizemos palestras, etc. O MIT está à disposição para apoiar nesse processo.

Devemos explicar também que o fracasso do Processo Constituinte é uma vitória do grande empresariado e uma derrota do projeto da Frente Ampla e do PC para mudar a sociedade. Não podemos repetir a mesma experiência nem confiar no novo Processo Constituinte, que será ainda mais distante do povo trabalhador e controlado pelos empresários. Por outro lado, é fundamental que nós trabalhadores tenhamos nítido que o governo de Gabriel Boric está contra a classe trabalhadora e a serviço do grande empresariado. Hoje, Boric, Marcel, Carolina Tohá e Camila Vallejo são os representantes do grande capital no governo do Chile.  Por isso, é fundamental que nossa luta seja independente do governo. Os dirigentes sociais e sindicais devem dar especial atenção a este ponto, já que o governo tentará cooptá-los para levá-los para a via morta das negociações, comissões parlamentares, etc, o mesmo que a ex Concertação fez durante os últimos 30 anos.

Durante o novo Processo Constituinte, é fundamental que continuemos organizados e mobilizados, lutando pelas demandas sociais que já havíamos conquistado no projeto anterior da Constituição e buscando ir além. Entretanto, isto só será possível se organizarmos a classe trabalhadora a partir de baixo, partindo de suas necessidades imediatas como emprego, salário, moradia, água, a luta contra a opressão machista e xenofóbica, etc. Os dirigentes sindicais combativos e democráticos devem começar a se articular para construir um projeto para recuperar a CUT, tirá-la das mãos dos partidos dos 30 anos e reconstruir uma organização verdadeiramente democrática e que defenda os interesses dos trabalhadores e não dos patrões. Devemos recuperar a estratégia da CUT de Clotario Blest de 1953, que levantou a necessidade de acabar com o capitalismo e construir uma sociedade socialista. Em cada local de trabalho, devemos recuperar os sindicatos para as mãos dos trabalhadores, que organizem assembleias para lutar por suas condições de trabalho, melhores salários, etc. Junto a isso, os trabalhadores mais conscientes devem levantar a necessidade de lutar pelas bandeiras históricas do movimento operário, como a negociação por ramo, o fim da subcontratação, a criação de um sistema de seguridade social público e controlado pelos trabalhadores, etc.

No 12 de novembro de 2019 a classe trabalhadora demonstrou que quando entra em movimento é uma força muito potente, capaz de conquistar enormes mudanças sociais. Por isso, temos o dever de reconstruir a organização e consciência das e dos trabalhadores para que sejamos nós que dirijamos uma próxima explosão social que inevitavelmente ocorrerá, porque a vida da classe trabalhadora não vai melhorar neste sistema e nem sob este Estado.

Por último, também queremos discutir com os milhares de ativistas e lutadores/as sociais porque é necessário organizar-se politicamente para levar a cabo esse projeto. O Movimento Internacional dos Trabalhadores é uma organização política com um programa para realizar uma mudança profunda na sociedade. Queremos levar estas propostas à classe trabalhadora, à juventude, às mulheres, aos migrantes, para que construamos uma grande força social capaz de enfrentar os grandes empresários, as transnacionais e caminhar para um poder da classe trabalhadora e do povo. Esse foi o projeto que defendemos na Convenção Constitucional e é o projeto que defendemos em cada luta sindical, territorial e popular. Fazemos um convite fraterno a todos os ativistas que lutaram nos últimos anos e décadas para que conheçam este projeto e venham construir o MIT.

1https://www.vozdelostrabajadores.cl/el-manifiesto-de-la-voceria-de-los-pueblos-y-la-lucha-por-la-soberania

2https://www.vozdelostrabajadores.cl/constituyente-maria-rivera-presenta-mocion-por-amnistia-a-todos-los-presos-politicos-chilenos-y-mapuche

3https://www.vozdelostrabajadores.cl/sobre-la-declaracion-aprobada-por-la-convencion-en-relacion-a-los-presos-politicos

4https://www.vozdelostrabajadores.cl/maria-rivera-presenta-propuestas-por-soberania-presos-politicos-reparacion-castigo-y-participacion-popular

Tradução: Lilian Enck

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