Sobre os protestos contra o apagão em Cuba
No final de setembro passado, centenas de pessoas saíram para protestar em vários distritos e bairros de Havana (capital de Cuba) e em outras cidades do país, contra um apagão generalizado de vários dias, em toda a Ilha. A pouco mais de um ano das manifestações de 11 de julho de 2021 (11J), qual é o significado destes novos protestos?
Por: Alejandro Iturbe
Em primeiro lugar, vejamos os fatos recentes. Desde 23 de setembro passado, Cuba foi atravessada pelo furacão Ian que assolou o país e depois atingiu o Estado da Flórida, nos EUA. As usinas produtoras e a rede de distribuição de eletricidade deixaram de funcionar e houve um apagão total durante um dia. Segundo uma informação da agência oficial britânica: “Nos dias seguintes, algumas das usinas elétricas distribuídas por toda a Ilha começaram a funcionar de novo e o fornecimento em algumas zonas foi sendo pouco a pouco restabelecido. Entretanto, a maioria dos 11,1 milhões de cubanos ainda não têm eletricidade ou só recebem energia durante algumas poucas horas ao dia”[1]. O governo do presidente Miguel Díaz-Canel atribuiu totalmente a situação da continuidade de cortes de energia aos efeitos do furacão e “fez um pedido inusitado de ajuda à Casa Branca pela emergência que a Ilha vive após a passagem do furacão Ian”.
É evidente que a ação desta catástrofe natural teve seu impacto, mas a explicação do governo cubano sobre as restrições permanentes ao fornecimento de energia nega a realidade de que esses cortes já existiam habitualmente antes do furacão Ian. Uma notícia de julho passado, da mesma agência britânica, informava: “Os apagões se tornaram um problema diário para milhões de cubanos, que observam resignados como a energia se apaga cada vez mais e durante mais horas”[2].
Esta situação se deve ao fato de que “O sistema elétrico cubano enfrenta dois problemas fundamentais: a falta de combustível e as avarias cada vez mais frequentes. A maioria das usinas elétricas cubanas funciona com petróleo, que escasseia no país. Por outro lado, a deterioração das centrais elétricas é cada vez mais difícil de reverter devido à falta de recursos para reparar as avarias e adquirir novas peças” (negrito no original)[3]. Ou seja, os cortes de energia que o povo cubano sofre evidenciam um problema muito mais estrutural e profundo, que o governo cubano se nega a reconhecer.
Mobilizações espontâneas e justas
Ao mesmo tempo, já em julho passado ocorreram reações populares contra os cortes: “Os vizinhos de Los Palacios, uma população de cerca de 38.000 habitantes na província de Pinar del Río, a oeste do país, protestaram com um panelaço na noite de quinta-feira ‘aqui há crianças sem comer porque não há energia’, exclamava uma das participantes do protesto espontâneo, em um dos vídeos difundidos amplamente nas redes (negrito no original)[4].
Esses “protestos espontâneos” agora foram expressos em Havana e outras cidades do país. São protestos justos porque mostram o cansaço cada vez maior do povo cubano contra uma realidade que agrava a deteriorização das condições de vida e aumenta as penúrias cotidianas que grande parte do povo cubano sofre para assegurar sua sobrevivência, em especial os setores mais empobrecidos. Realidade que o governo de Díaz-Canel não apenas nega, mas longe de trabalhar para melhorá-la, a agrava cada vez mais. O grito mais manifestado nos protestos recentes, com centenas de participantes batendo panelas em cada uma delas, foi “Queremos luz!”. Muitas delas foram realizadas “em bairros de baixos recursos da capital”[5]. Por esse caráter de justa expressão de raiva do povo cubano, manifestamos nosso apoio a esses protestos.
Por seu lado, a resposta do governo de Díaz-Canel foi, em primeiro lugar, negar sua responsabilidade na questão dos cortes de energia. Em segundo lugar, mostrou seu caráter repressivo já que, uma vez iniciados os protestos “pouco depois chegaram agentes da polícia que cercaram os manifestantes”. Segundo informações, que transcenderam, a repressão não chegou ao nível do 11 J, que deixou como saldo centenas de manifestantes detidos, julgados e condenados. Muitos deles permanecem presos nas prisões cubanas, por isso desenvolvemos uma campanha permanente pela sua libertação[6]. O que sim se repetiu foram as restrições parciais ao uso das redes de internet no interior de Cuba e um bloqueio total das comunicações para o exterior.
O que é Cuba hoje?
Quando damos nosso apoio a estas mobilizações, expressamos que a situação que as gera é responsabilidade do regime cubano, e repudiamos sua repressão, inevitavelmente os debates que existem na esquerda mundial sobre o caráter e o significado destas mobilizações se reabrem, a definição do que Cuba é hoje, e, nesse marco, que papel o regime castrista desempenha.
Em linhas gerais, na esquerda se apresentam três análises e caracterizações diferentes sobre o que é Cuba, e destes derivam três políticas diferentes frente a este tipo de mobilizações. Um debate que se vê cruzado pelo imenso impacto que a Revolução Cubana iniciada em 1959 teve na esquerda mundial e, especialmente, latino-americana, e pela grande influência e prestígio que tiveram seus principais líderes (Fidel Castro e Che Guevara).
A primeiras destas análises é apresentada pela corrente que chamamos de “castro-chavismo”, herdeira das posições do estalinismo. Esta posição parte da definição de que Cuba é “o último bastião do socialismo”, uma “fortaleza sitiada e agredida” pelo imperialismo estadunidense e pela burguesia cubana “gusana” que fugiu para Miami depois da revolução. O principal instrumento desta agressão é o boicote comercial e financeiro contra Cuba, estabelecido desde 1960. Para esta posição, todas as penúrias que o povo cubano sofre são consequência deste boicote. Ao mesmo tempo, os protestos populares contra estas penúrias (ou pela exigência de liberdades democráticas), embora tenham algum motivo justo em sua origem, acabam sendo um instrumento reacionário nas mãos do imperialismo estadunidense e da burguesia “gusana”, na perspectiva de derrotar o regime castrista que “defende o socialismo”. Nesse marco, temos que repudiá-las e apoiar a repressão contra elas. Em numerosos artigos, a LIT-QI abordou o debate contra esta posição[7].
A segunda posição é apresentada por algumas organizações que se reivindicam trotskistas, como a Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FTQI), liderada pelo PTS da Argentina. Para esta corrente, Cuba continua sendo um Estado operário burocratizado que vive dois processos ou pressões para restaurar o capitalismo. Internamente, esta política restauracionista é promovida pelo próprio regime castrista; externamente, pelo imperialismo estadunidense e a burguesia “gusana” de Miami. São perigos ou inimigos equivalentes que temos que combater simultaneamente. Nesse marco, os protestos contra o regime castrista teriam um “caráter contraditório”. Por um lado, são “justas” porque expressam a luta dos trabalhadores e do povo cubano contra um dos inimigos e as consequências de seu plano restauracionista; mas, por outro, são “reacionárias” porque favorecem “o outro inimigo”. A partir dessa visão, adotam uma posição “nem-nem” frente a estes protestos (“nem os apoiamos nem os repudiamos”) e, inclusive, chegam a guardar silêncio sobre os presos políticos que a repressão gerou. Também debatemos com esta posição[8].
O regime castrista restaurou o capitalismo na década de 1990
A posição da LIT-QI (e de algumas poucas organizações na esquerda) parte de uma caracterização completamente diferente: o próprio castrismo, que liderou a revolução de 1959, foi quem restaurou o capitalismo nos anos 1990, durante o chamado “período especial”, através de diversas medidas chave[9].
Embora o regime castrista continuasse no poder e continuasse mostrando as bandeiras vermelhas, Cuba tinha deixado de ser “um bastião do socialismo” ou, segundo a terminologia trotskista, um Estado operário burocratizado. Como aconteceu na China a partir de 1979 com Deng Xiaoping, as medidas do “período especial” destruíram a economia central planificada e a substituíram pelo critério capitalista do lucro. Cuba havia se transformado em um Estado capitalista. Ao mesmo tempo, dado que a falta de liberdades democráticas do período do Estado operário burocratizado foi mantida, o regime castrista passava a ser uma ditadura capitalista “vestida de vermelho”.
A restauração capitalista trouxe profundas consequências na estrutura econômica e social do país. Por um lado, pela “abertura” e as facilidades concedidas aos investimentos estrangeiros, começou a perder aceleradamente a independência alcançada durante a existência do Estado operário. Quem aproveitou a fundo estas “oportunidades de negócios” foram os imperialismos europeus (em especial, o espanhol) e canadense, que passaram a controlar o turismo estrangeiro, um setor chave da nova economia capitalista cubana. Tomemos como exemplo, a cadeia espanhola dos hotéis Meliá.
Mas o imperialismo também começou a investir e se associar em outros ramos, como os serviços médicos ou de bebidas. Por exemplo, a mundialmente famosa marca de rum Bacardi que hoje pertence a “Uma multinacional com sede nas Bermudas que continua sendo quase inteiramente propriedade da família. Seu atual presidente é Facundo Bacardi, bisneto do fundador, nascido nos EUA, e que se considera mais norte-americano que cubano”[10].
A contradição do imperialismo estadunidense
O projeto do regime castrista é que estas “oportunidades de negócios” (a poucas milhas da costa de Miami) sejam amplamente aproveitadas pelo imperialismo estadunidense. No entanto, frente a esta “oferta”, o imperialismo estadunidense tem uma profunda contradição de interesses que o divide.
Por um lado, está a burguesia gusana anticastrista residente em Miami, com fortes laços e muito peso dentro do Partido Republicano, que coloca duas condições para retomar relações com Cuba (e liberar o comércio e os investimentos): a queda do regime castrista e a garantia de devolução das propriedades expropriadas pela Revolução. São os que insistem (e conseguem manter) o boicote e as restrições contra Cuba.
Por outro lado, tal como mostrou a visita do então presidente Barack Obama a Cuba em 2016, diversos setores, na sua maioria ligados aos democratas, mas também com expressão dentro dos republicanos (como o senador de origem cubana Mark Rubio que participou da visita), viram como eram desperdiçadas excelentes possibilidades de negócios em um país tão próximo geograficamente, em áreas como turismo, finanças, produção agrária, venda de produtos industriais, etc. De fato, algumas empresas estadunidenses já “trapaceavam” a legislação vigente nos EUA, e realizavam investimentos “camuflados” por trás de empresas canadenses. A política de Obama era avançar em eliminar todas as restrições e facilitar o “fluxo investidor” imperialista sem questionar o regime castrista[11].
Essa era a realidade e a dinâmica em 2016. Mas o governo do republicano Donald Trump, em função de manter a aliança com a burguesia gusana anticastrista, deu marcha a ré na política promovida por Obama…e tudo foi congelado. O governo de Joe Biden manteve essencialmente a mesma política de Trump.
Surge uma burguesia cubana
Uma segunda mudança é que, no marco da restauração capitalista, na cúpula castrista (com os altos comandos do Exército e a própria família Castro no centro) surge uma nova burguesia cubana, a partir do usufruto do controle e da direção que as Forças Armadas cubanas exercem sobre o GAESA (Grupo de Atividades Empresariais Sociedade Anônima).
A GAESA controla empresas “que vão desde o setor hoteleiro até as lojas varejistas de vendas de produtos em divisas, passando pelas alfândegas e portos, entre muitas outras”[12]. A partir daí, controla também uma alta porcentagem do PIB cubano.
O regime castrista é hoje a expressão desta nova burguesia cubana, que se oferece como sócia menor e subordinada da semicolonização imperialista: a europeia e a canadense, já existentes, e a estadunidense que aspira que chegue.
Ajustes permanentes
Nesse marco o regime castrista se vê obrigado a aplicar planos de ajuste permanentes que liquidam as conquistas alcançadas no passado pela revolução e, face a cada dificuldade que a situação econômica do país apresenta, aprofunda os ataques.
Por exemplo, em 2011 começou a aplicação de um plano de demissões em massa de funcionários do Estado: naquela época, estimava-se que poderia alcançar 1.300.000 pessoas[13]. Há vários anos a quantidade de beneficiários da chamada “caderneta de abastecimento” vem sendo restringida, pois muitos cubanos adquiriam produtos básicos a preços subvencionados. Produtos que, sem a caderneta, só poderiam adquirir no mercado negro a preços muito mais altos.
O último destes planos de ajuste, foi um plano chamado de “dia zero” (lançado em janeiro de 2021) que unificou as duas moedas existentes no país: o peso não conversível e o peso conversível que, até então, se trocava 1 x 1 com o dólar (na verdade, a verdadeira moeda usada em Cuba), a um câmbio de 24 pesos cada dólar. Uma feroz desvalorização, típica de um país capitalista semicolonial frente ao estrangulamento da entrada de divisas a partir da queda do turismo estrangeiro que a pandemia provocou[14]. Claramente, quem pagou os custos desta mega desvalorização foram a classe operária e o povo cubanos.
A crise energética
Com todo este contexto, vejamos agora a questão da crise energética que o país vive. Ela obedece a duas razões. A primeira é o envelhecimento estrutural das usinas, que há décadas não recebem investimentos. Poderá se dizer que, em última instância, é consequência da falta de divisas estrangeiras. Mas isto é apenas parte da verdade.
Em 2013-2014, o regime castrista iniciou a construção da Zona Especial de Desenvolvimento Mariel. A ZED Mariel está destinada a receber investimentos estrangeiros para produção e comércio, às quais se dá completa isenção de impostos e de cumprimento de obrigações trabalhistas[15]. A obra foi realizada pela empresa brasileira Odebrecht (que contou com o financiamento do banco estatal brasileiro BNDES) junto com empresas cubanas[16]. Ou seja, em seus planos de investimento em infraestrutura, o regime cubano privilegiou aquelas destinadas a facilitar a entrega ao capital estrangeiro, e não as que atenderiam as necessidades dos trabalhadores e do povo cubanos, como a renovação da rede elétrica.
O mesmo acontece com a escassez de divisas que entram pelo turismo estrangeiro, imprescindíveis para importar o petróleo e as peças de reposição que as usinas cubanas necessitam. Essa entrada de divisas melhorou depois da diminuição provocada pela pandemia. Sobre esta questão, o próprio ministro de Turismo cubano, Juan Carlos García Granda, declarou em maio passado: “o turismo em Cuba mostra sinais de recuperação, uma amostra disso é que nos primeiros quatro meses do ano o número de visitantes cresceu, em relação ao mesmo período do ano anterior”, devido ao maior afluxo de turistas europeus, especialmente britânicos[17].Em outras palavras, em Cuba ingressam mais dólares, euros e libras esterlinas.
Mas, a “parte do leão” dessas maiores entradas ficam com as empresas estrangeiras e algumas do GAESA, como os hotéis e lojas dolarizadas que possui. Novamente, a prioridade do regime cubano não é atender as necessidades urgentes dos trabalhadores e do povo (importar petróleo e peças para as usinas) mas garantir os lucros das empresas imperialistas e as do GAESA.
Algumas conclusões
É totalmente compreensível então que, periodicamente, explodam protestos dos trabalhadores e do povo contra esta realidade cada vez mais insuportável (ao mesmo tempo que os altos representantes do regime exibem seu enriquecimento). É lógico também que nesses protestos se manifeste a demanda de liberdades democráticas contra o regime ditatorial e sua repressão permanente. Nos últimos protestos o grito de “Queremos luz!” foi acompanhado pelo de” Liberdade!”.
Não é um grito vazio de conteúdo já que, além de evitar sua responsabilidade nessas penúrias que os cubanos vivem cotidianamente, o regime ditatorial aumenta e recrudesce sua repressão permanente com os protestos[18]. Assim o fez com o 11J; muitos de seus participantes e promotores tiveram que optar entre a emigração forçada [19] ou ver sua saúde deteriorada na prisão[20]. Por isso, afirmamos que um programa revolucionário para Cuba deve conter, entre seus elementos centrais, o apoio a estes protestos e manifestações dos trabalhadores e do povo, o repúdio à repressão do regime burguês ditatorial do castrismo, e a exigência da liberdade dos presos políticos. Estes pontos se dão no marco da necessidade de derrubar o regime através da luta operária e popular. Estas propostas devem se combinar com a necessidade de lutar contra os planos de ajuste que este regime aplica, e a semicolonização imperialista da qual é agente, na perspectiva de uma nova revolução socialista em Cuba. No passado, essa luta contra o imperialismo e pelo socialismo foi liderada pelo castrismo; atualmente, mesmo que doa a muitos velhos lutadores de esquerda, a realidade mostra que
[1] https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-63097483
[2] https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-62187814
[3] Ver nota 1.
[4] Ver nota 2.
[5] Ver nota 1.
[6] Ver, entre numerosos artigos e declarações: https://litci.org/pt/2022/03/25/cuba-o-regime-cubano-e-implacavel-com-os-presos-politicos-do-11j/
[7] Ver, por exemplo: https://litci.org/pt/2021/11/01/65240-2/
[8] https://litci.org/pt/2021/08/16/que-politica-o-trotskismo-deve-ter-frente-ao-atual-processo-cubano/
[9] Sobre esta questão, ver a transcrição do debate realizado no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2001, entre a direção da LIT-QI e dirigentes cubanos em: https://litci.org/es/debate-de-la-lit-ci-con-los-dirigentes-cubanos-2001/
[10] Bacardí y el origen del ron cubano – BrandStocker
[11] https://litci.org/es/sobre-la-visita-de-obama-a-cuba/
[12] GAESA: el consorcio militar que controla la economía cubana | Aprender alemán con DW
[13] Comienzan en Cuba los despidos masivos | Internacional | EL PAÍS (elpais.com)
[14] https://litci.org/pt/2021/01/14/cuba-o-significado-do-dia-zero/
[15] Zona Especial de Desarrollo Mariel | Una puerta abierta al mundo (zedmariel.com)
[16] Odebrecht en Mariel – Últimas noticias de Cuba, fotos y videos – Cubanos por el Mundo
[18] Ver https://litci.org/pt/2022/07/10/um-ano-dos-protestos-de-11-de-julho-em-cuba/
[19] “Es un Mariel silencioso”: los miles de cubanos que usan Nicaragua como ruta para llegar a Estados Unidos – BBC News Mundo
[20] “Patria y vida”: Maikel Osorbo, el rapero cubano que ganó dos Grammy desde la cárcel y en un “delicado estado de salud” – BBC News Mundo
tradução: Lilian Enck