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sexta-feira, julho 26, 2024

Nossas Críticas a Gandhi

Em 30 de janeiro de 1948, um assassino solitário, Naturam Godse, assassinou a tiros Mohandas Karamchand Gandhi, também conhecido como o Mahatma (“grande alma”), considerado por alguns o pai da nação indiana. 

Por: Adhiraj Bose, do Mazdoor Inqilab – seção indiana da LIT-QI

Nesse dia, o país inteiro caiu em prantos. Nos últimos 3 anos de sua vida, Gandhi viu o país que amava se despedaçar e cair em uma guerra civil, e depois em uma guerra entre os novos países, quando hindus e muçulmanos, antes unidos contra o imperialismo britânico, agora lutavam uns contra os outros enquanto os antigos dominadores olhavam de longe. Em 1948, a Índia tinha conquistado a maioria da Caxemira e o estado de Hyderabad à força, o que Gandhi detestava. Por toda sua vida, ele havia tentado alcançar a independência por meios pacíficos, mas quando morreu, isso já era um sonho inocente, tornado impossível pela força da história, pela geopolítica imperialista e pela realidade da luta de classes.

Gandhi sempre havia tentado conciliar com os proprietários rurais e as castas de elite para tentar construir a força política burguesa do Congresso Nacional Indiano, seu partido, e para isso ele lutou contra qualquer esforço sincero de levar o partido em direção ao socialismo, por medo de que isso prejudicasse a luta contra a independência e ajudasse o Império Britânico. Hoje não é fácil criticar Gandhi; a Índia é governada pelo BJP, partido de extrema-direita supremacista hindu, e não é segredo para ninguém que eles tem relações com a Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), organização à qual o assassino de Gandhi pertencia. Entre os apoiadores e militantes do BJP, muitos falam abertamente em “honrar” Naturam Godse. Gandhi foi claramente uma vítima dos reacionários hindutva, os mesmos que hoje governam a Índia, e por isso muitas pessoas assumem a defesa de Gandhi contra qualquer crítica; afinal, todos “precisamos de Gandhi” para lutar contra os supremacistas hindus.

Gandhi não está acima de qualquer crítica, mas há diferenças fundamentais entre nossas críticas a ele e as da direita xenófoba.

Por que a direita odeia Gandhi

O objetivo do movimento político Hindutva é transformar a Índia em um “Hindu Rashtra”, ou seja, uma nação baseada na filosofia do Hindutva, em que a fé hindu tenha a primazia. Seria um estado teocrático em que a sociedade fosse organizada em linhas patriarcais e de casta estritas, unida por um senso de nacionalismo Hindu e comprometida a manter um conflito “civilizatório” contra o Islã e o Cristianismo. A filosofia Hindutva e o Hindu Rashtra foram elaborados por Savarkar e Golwalkar, ambos ideólogos fundadores do movimento Hindutva. Ambos esses indivíduos eram fortes oponentes do movimento nacionalista, e em vários momentos cooperaram com o Império Britânico, mais abertamente durante a Segunda Guerra Mundial.

Durante a guerra, a maioria do país estava abertamente contra ser arrastada para o conflito pela Inglaterra. Sem nenhuma preparação ou consulta à população, duas forças políticas resolveram apoiar o Raj Britânico [o governo colonial]: os Hindutva, representados pela RSS pela Hindu Mahasabha (tradução: “Grande Associação dos Hindus”), e a Irmandade Muçulmana. Essas forças se opunham à ideia da unidade hindu-muçulmana, que era essencial para lutar contra o imperialismo britânico; naturalmente, o Reino Unido ficou muito contente. Qualquer coisa que enfraquecesse o movimento independentista era bem-vindo pelo Império.

Gandhi, apesar de todos os seus defeitos, defendia a causa da unidade hindu-muçulmana, embora suas atitudes e sua liderança não alcançassem isso de nenhuma forma significativa. O centro das divisões entre as comunidades na Índia era a existência dos latifúndios e o sistema socioeconômico cruel criado pelos britânicos, que havia levado à marginalização política e econômica dos muçulmanos ao mesmo tempo em que garantia a ascensão de uma minúscula elite hindu de casta superior que rapidamente monopolizou os médios e baixos escalões da burocracia colonial. Em vez de enfrentar esses problemas, Gandhi sistematicamente se opunha a reformas agrárias radicais, defendia o sistema de castas, e sempre se concentrou em tentar fazer acordos com o governo do Reino Unido para conseguir concessões. Sua tentativa de alcançar os muçulmanos veio na forma de apoio ao movimento Hilata, que levou os islamistas indianos a militar por um califa otomano. Esse movimento morreu quando Kemal Ataturk aboliu a posição de sultão otomano, e a de califa junto. Não era um movimento em defesa dos muçulmanos indianos, mas um baseado puramente numa identidade, e desconectado da tarefa urgente que era a independência da Índia. Nada veio do apoio de Gandhi, e o estranhamento entre hindus e muçulmanos continuou. No entanto, através desse tipo de tentativa fracassada de reconciliação, Gandhi consolidou sua posição de inimigo do movimento Hindutva.

Num primeiro momento pode parecer irônico que Gandhi, que falava de Ram Rajya, usava de simbolismo espiritual hindu em suas mobilizações políticas e se opunha à emancipação dos dalits e da classe trabalhadora, pudesse ser alvo de um ódio tão visceral da direita Hindutva. Para entender isso, é preciso entender o contexto em que as políticas Hindutva estavam. Durante o período da violência da Partição da Índia, em 1946, Kolkatta e Noakhali, ambas na região de Bengala, eram duas das regiões mais afetadas de toda a Índia. Gandhi tentou trazer paz à região e para isso visitou primeiro Kolkatta e depois Noakhali. Sua presença teve o efeito de acalmar a população e acabar  com os tumultos, após semanas de carnificina que custaram a vida de milhares apenas nessas duas localidades. Apesar de seus defeitos, Gandhi era completamente oposto à separação da Índia em dois países, e pelo bem da unidade, ele estava disposto a chegar a um acordo com Jinnah, principal dirigente da Irmandade Muçulmana, lhe cedendo o posto de primeiro-ministro. Nesse momento Gandhi já não dirigia o Congresso e, embora respeitado, tinha muito menos poder. Nehru, primeiro presidente da Índia, não aceitou ceder nesta questão, ou em nada mais, ao Paquistão; a Partição foi até o final, e Gandhi fracassou. Este processo o tornou alvo dos supremacistas hindus, e principalmente da RSS.

Em 30 de janeiro, um devoto da RSS planejou seu assassinato. Há quem diga que ele agiu sozinho, mas a filosofia que defendia vinha diretamente de Golwalkar, assim como sua inspiração para o assassinato de Gandhi. Hoje, seguidores do Hindutva celebram Naturam Godse e admiram Golwalkar e Savarkar, apesar do papel de capitão-do-mato que esse dois indivíduos cumpriam. Nossas críticas a Gandhi não tem nada em comum com o que dizem esses reacionários, e nós não temos um inimigo em comum no Partido do Congresso, que consideramos um partido da reação capitalista.

Nossas críticas a Gandhi

Durante a década de 40, o BLPI (Partido Bolchevique Leninista da Índia, Burma e Ceilão) escreveu uma série de documentos polêmicos fundamentais contra Gandhi e o Partido do Congresso. Dois desses são particularmente importantes, por sua clareza e objetividade. O primeiro é “Gandhi na Estrada da Traição”, que critica a decisão de Gandhi e do Congresso de formar um governo nacional, e o segundo é “A Política da Burguesia Indiana”. No primeiro, eles sintetizam a linha política de Gandhi e do Congresso até 1944 com as seguintes palavras:

A maneira como Gandhi condenou, desviou e traiu o movimento de massas em 1922 e 1931 já é tão conhecido que não precisa ser repetido. Como ele causou um novo ascenso em 1942 com seu slogan “Fazer ou Morrer” também é de conhecimento público. O que as massas não perceberam em 1942, apesar de suas experiências em 1922 e 1931, foi que o Mahatma estava novamente fazendo o jogo de antes. O que ele queria era o que a burguesia queria, ou seja, não a queda do poder imperialista, mas um acordo vantajoso com ele. Esse acordo ele esperava conseguir, assim como a burguesia calculava ser possível, através do uso das dificuldades internacionais nas quais o imperialismo britânico estava envolvido após seus sucessivos fracassos militares. Ele esperava, mas não conseguiu; apesar de uma erupção massiva de violência sem precedentes, os britânicos se recusaram a sair da Índia a pedido do Mahatma, e também se recusaram a chegar a um acordo com o Mahatma como queria a burguesia. Ao invés disso eles prenderam o Mahatma e toda a liderança do Congresso, por um lado, e espancaram e fuzilaram o movimento de massas até sufocá-lo. Enquanto isso, a situação militar, e com isso a situação internacional, mudou radicalmente a favor do imperialismo britânico. Assim a burguesia falhou em sua jogada, e o Mahatma teve que encontrar uma saída para eles.

É isso que ele agora está fazendo – passando por cima e indo contra os interesses das massas. A burguesia indiana já desistiu de lutar a muito tempo. Eles tem cooperado cada vez mais intensa e intimamente com o Império em todos esses meses. Tudo que o Mahatma agora precisa fazer é esconder essa rendição com uma fórmula falsamente razoável, que é traiçoeiro slogan stalinista “governo de unidade e defesa nacional”, ou seja, um governo dos opressores unidos das massas indianas que coopere com o imperialismo britânico e com a guerra imperialista britânica. É exatamente isso que a proposta atual de Gandhi significa.”

Aqui há uma exposição dos fracassos de Gandhi. A ideia da “não-violência” esconde a realidade da capitulação política ao imperialismo. Para nós, criticar Gandhi é criticar seus acordos com o imperialismo e com a elite aristocrática da Índia. Todos os três movimentos de massas que Gandhi iniciou terminaram em derrotas, e o primeiro desses acabou por ordem dele próprio. Em 1920, Gandhi começou o movimento de não-cooperação em resposta ao Decreto Rowlatt, que retirava  dos prisioneiros políticos indianos direitos em julgamentos de sedição. O movimento foi ainda impulsionado pelo massacre de Jallianwalla Bagh, em que entre 391 (de acordo com os britânicos) e 1000 (de acordo com as fontes indianas) indianos foram assassinados. O chamado à não-cooperação com o governo recebeu uma resposta entusiasmada das massas, que lutavam para conseguir autonomia e em algum momento independência total. Mas apesar do apoio massivo, o movimento foi suspendido em 2022 de uma hora para outra, arbitrariamente, pelo próprio Gandhi, cerca de 2 anos após seu fim, sem chegar nem perto de alcançar qualquer de seus objetivos. A decisão foi causada por um incidente na vila de Chauri Chaurah em que a polícia abriu fogo contra manifestantes pacíficos. Os moradores revidaram, e na luta subsequente, 3 camponeses e 22 policiais morreram. Para Gandhi era mais importante que o movimento seguisse sua ideia de “não-violência” do que alcançar a independência ou mesmo uma autonomia limitada.

Embora o movimento de não-cooperação talvez seja o exemplo mais ilustrativo, o movimento de desobediência civil não foi muito diferente. Surge em resposta à imposição britânica de um imposto sobre o sal que afetaria diretamente a maioria dos indianos, e principalmente os mais pobres; o sal era uma parte fundamental da alimentação, e ao forçar um imposto sobre ele, os britânicos iriam literalmente fazer a população morrer de fome para ganhar dinheiro. As massas novamente aderiram de forma entusiasmada e o movimento cresceu muito, mas novamente se enfraqueceu quando a Inglaterra conseguiu levar Gandhi e o Congresso para uma mesa de negociação; as “mesas redondas” não serviram para nada, e o movimento fracassou. A única coisa boa em ambos esses casos é que ficou evidente para o Império Britânico que as massas estavam fortemente a favor da independência da Índia.

Há um padrão visível em que, a cada vez que massas se levantavam e a mobilização ganhava força, Gandhi dava um passo atrás, desmoralizando o povo e sabotando a força da luta. Seu programa social e político não era muito melhor: o BLPI expôs em detalhes como a “não-violência” e o “charkha” (roda de fiar indiana), símbolos de suas crenças, eram na verdade ferramentas para pacificar e sabotar o movimento independentista. Eles eram a capa de uma agenda social e econômica reacionária e levavam à subserviência política ao imperialismo. Sobre o assim chamado “programa construtivo” de Gandhi, diz o BLIP que:

O Programa Construtivo, portanto, foi recentemente ampliado. Programas separados foram propostos para trabalhadores, para os kisans [camponeses], e para os estudantes, para quem cada um desses grupos possa contribuir com a “construção da swaraj”[um termo para independência]. Não precisamos aqui entrar em detalhes nestes. Basta dizer que a “construção da swaraj”, significa para o Mahatma hoje, em 1945:

a destruição da independência de classe dos sindicatos, através da “construção” de sindicatos burocráticos rivais (como em Ahmedabad) e da atração dos sindicatos que funcionam para fora do Congresso Sindical e para a central Hindustan Mazdoor Sevak Sangh, abertamente defensora da colaboração de classes.

o esmagamento da independência de classe dos kisan sabhas (associações camponesas) através da “construção” de um Congresso Kisan controlado e dominado pelo Partido do Congresso, ou seja, sob o bondoso controle das classes dominantes, também burguesas quanto latifundiárias.

uma ofensiva ideológica contra o marxismo disfarçada de enfrentamento ao stalinismo, e a redução das organizações estudantis à servidão ideológica à burguesia através da “construção” de um Congresso Estudantil que “não vai ter política nenhuma” – exceto pela superstição e ressurreicionismo utópico de Gandhi.

Conclusões

Nossas críticas a Gandhi são baseadas em uma compreensão das necessidades da classes trabalhadora e camponesa da Índia, assim como de suas demandas mais imediatas. A crítica a Gandhi da direita Hindutva é baseada em uma agenda reacionária de ódio sectário e em um desejo de levar a sociedade indiana de volta a Idade Média. Eles odeiam Gandhi porque ele tentou, de maneiras ingênuas e inúteis, unir hindus e muçulmanos na paz. Nós nos opomos a Gandhi porque ele vendeu a luta pela independência, sabotou as lutas de classe, e abriu caminho para o extremismo religioso e a reação que enfim venceriam, na forma da Partição e de sua violência, afogando o processo revolucionário incipiente na maré de sangue da violência inter-religiosa. Os revolucionários da Índia precisam aprender com as lições do passado e ouvir os avisos do BLPI. Gandhi e seu legado reacionário ainda tem muitos seguidores, e embora eles tentem se esquivar das críticas com a desculpa do mal maior (a RSS), não podemos ignorar os perigos que o Gandhismo traz hoje. A política da conciliação de classes e da sabotagem em nome da “não-violência” continua muito viva até hoje.

VIDA LONGA À REVOLUÇÃO!

ABAIXO O IMPERIALISMO!

POR UM SUL DA ÁSIA UNIDO E SOCIALISTA!

Referências:

https://www.marxists.org/history/etol/newspape/win/vol06/no05/morarji.htm

https://www.marxists.org/history/etol/newspape/fi/vol05/no10/india.htm

 

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