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sexta-feira, março 29, 2024

Egito: greves operárias se expandem pelo país

O Egito vive, no último período, uma onda de greves e protestos operários que podem antecipar um novo ascenso das lutas contra a ditadura militar que governa o país desde 2013, quando aconteceu o golpe de Estado organizado pelo atual presidente Abdel Fattah al-Sisi, que derrotou o presidente e membro da Irmandade Muçulmana, Mohamad Morsi.

Por: Gabriel Huland

O centro da resistência ao regime militar se encontra nas regiões industriais de Mahalla, no Delta do Nilo, assim como em Asyut e na região do Canal de Suez, mais precisamente nas cidades de Ismaylia e Port Said. Segundo o portal de notícias independente Mada Masr, “os protestos mais notáveis acontecem entre os trabalhadores empregados em sete empresas terceirizadas pela Autoridade Estatal do Canal de Suez (SCA), assim como na Companhia de Cimento Assiut e duas fábricas têxteis privatizadas: a descaroçadora de algodão do Nilo e a companhia têxtil Shebin al-Kom”.

As reivindicações mais importantes são: aumento de salários, paridade no local de trabalho, aplicação das sentenças judiciais, reintegração de trabalhadores demitidos e o pagamento de bônus vencidos. O número de trabalhadores envolvidos nos protestos é desconhecido, mas se calcula que sejam milhares. Na cidade de Asyut, mais de 240 trabalhadores começaram uma greve no último mês, exigindo o pagamento, por parte de uma empresa de cimento, dos bônus de 10% sobre os benefícios previstos na lei.

Outra das demandas é a reintegração de trabalhadores demitidos. Cerca de 300 trabalhadores demitidos pela companhia têxtil Shebin al-Kom organizaram um protesto no dia 7 de dezembro.

Há pouco mais de um mês, os operários de duas grandes empresas têxteis públicas de Mahalla, 17.000 trabalhadores de um total de 25.000, paralisaram suas atividades pela reivindicação de pagamento dos bônus de 10% (sobre os benefícios obtidos) que a empresa se negava a pagar com a justificativa de que havia tido perdas no período anterior. Os trabalhadores negam a versão da empresa. A greve, que durou dez dias, só foi suspensa quando o governo se comprometeu a pagar o dinheiro devido aos trabalhadores. O comitê de greve tornou público um comunicado em que afirma que, caso não se cumpra o acordo, os trabalhadores voltarão a convocar uma nova greve por tempo indeterminado.

Na fábrica de processamento de alimentos Jawhara, na província de Beheira, também no Delta do Nilo, aproximadamente 5.000 trabalhadores paralisaram suas atividades em protesto contra os salários miseráveis que recebem e também, como em outros casos, pela negativa da empresa em pagar os bônus de 7% determinados pela legislação trabalhista vigente. Um trabalhador de Beheira denunciou que seu salário não passa de 500 libras (U$50,00) e que há mais de três anos não recebe aumento.

Este quadro de greves nos principais centros industriais do país não é um mero acaso. Expressa o crescente descontentamento dos trabalhadores mais explorados do país, que após um ano da eleição de al-Sisi (em eleições nada transparentes) não veem  nenhuma melhora em seu nível de vida. Pode estar em gestação um novo ascenso operário que transforme a situação política do país e abra um novo momento na revolução egípcia.

Os sindicatos oficialistas, em particular a Federação Egípcia de Sindicatos, nem sequer divulgam em suas páginas de internet a existência dessas greves, assim como também não o fazem os meios de comunicação públicos. Existe um verdadeiro boicote midiático e da burocracia sindical às lutas operárias em curso. Na verdade, a federação governista, criada em 1957 pelo todo poderoso Gamal Abdel Nasser para controlar o movimento sindical egípcio, tentou até o último momento convencer os trabalhadores das diferentes regiões a não começar os movimentos de greve.

Em 2011, foi criada a EFITU (Federação Egípcia de Sindicatos Independentes) como parte do processo de reorganização sindical aberto com a revolução que derrotou Hosni Mubarak em janeiro do mesmo ano. Nos últimos dois anos, deu-se um processo de cooptação da maioria da EFITU, com raras e honrosas exceções. Seus principais dirigentes capitularam ao discurso do governo de unidade nacional para combater o terrorismo, representado majoritariamente pela Irmandade Muçulmana, como dizem os militares.

Crise econômica e autoritarismo crescente

Já assinalamos em artigos anteriores que a economia egípcia atravessa um período de forte deterioração. Os aspectos que mais evidenciam esta realidade são: a crescente inflação (este ano os dados oficiais apontam 12%), a alta do dólar, os baixos salários e a crise da indústria turística, acentuada após a derrubada do avião russo na Península do Sinai. A expansão do Canal de Suez foi um total fracasso e a construção da nova capital, anunciada pelo presidente, possivelmente não será realizada por falta de investidores.

O que sim se transforma em realidade é a crescente imposição de leis autoritárias por parte da ditadura militar. As leis antiprotestos e antigreves continuam vigentes. O número de presos políticos é desconhecido. Entre eles estão a ativista de direitos humanos Mahienour e incontáveis ativistas, bloggers e jornalistas. O fotojornalista Mahmoud Abou Zeid está preso há mais de 850 dias sem julgamento. O Tribunal Constitucional sancionou em abril as leis aprovadas pelo governo que criminalizam as greves e bloqueios de ruas.

Os maus tratos e a falta de informação dominam o sistema carcerário do país. Muitas famílias denunciam casos de torturas e uma grande quantidade de presos não tem direito a um processo judicial minimamente imparcial. O sindicato dos jornalistas do Egito lançou recentemente uma campanha para denunciar esta situação e exigir que os presos políticos recebam pelo menos atenção médica decente. Existem casos absurdos em que a polícia deteve pessoas por portarem certos livros ou vestirem certas camisetas.

A península do Sinai e a ação de grupos armados

O outro foco de instabilidade no país é a ação de grupos armados, centralmente na península do Sinai, mas também no Cairo e em outras cidades como Alexandria. Um recente artigo publicado no jornal al-Araby ajuda a entender a dimensão desse problema.

Existem mais ataques do que nunca. Os números falam por si: em 2014, houve uma média muito preocupante de 30 ataques por mês, quatro vezes mais do que nos anos anteriores. Mas, em 2015, esses números explodiram, com uma média de 100 ataques por mês.

Como já dissemos anteriormente, não apenas no Sinai, mas também na fronteira com a Líbia, no Cairo e em Alexandria estão acontecendo ataques a alvos militares, turísticos e a grandes empresas multinacionais, como foi a tentativa de explodir uma bomba no aeroporto do Cairo e matar um executivo da IBM. Confrontos entre grupos armados e o exército se transformaram em algo frequente.

O governo, em uma demonstração de prepotência e pouco senso de realidade, afirma que o Egito é um país “livre, seguro e estável” e que o Sinai está totalmente controlado. As autoridades tentam transformar o “terrorismo” no grande inimigo a ser derrotado, utilizando esse discurso para atacar toda e qualquer manifestação de oposição a suas políticas. Sem dúvida existem diversos grupos reacionários e de caráter fundamentalista islâmico atuando no Egito, mas há diversos meios de comunicação sérios que falam de uma verdadeira “insurreição” contra o governo militar, dirigida por grupos com uma ideologia e métodos equivocados, mas apoiados em um legítimo sentimento de insatisfação popular.

No Sinai, por exemplo, muitas tribos se armaram na época das guerras com Israel, receberam armas do governo e agora as utilizam contra o exército. Também atuam grupos como Ajnad Masr, de ideologia salafista, ou o Movimento Aliado de Resistência Popular, que realiza ações armadas contra alvos militares e corporações internacionais. Outros grupos como Walaa e Punição Revolucionária, supostamente formados por simpatizantes da Irmandade Muçulmana, atuam na região de Giza. Reafirmamos nosso desacordo com esse tipo de ações armadas que, assim como a ação do Estado Islâmico, apenas dá a legitimidade necessária para que o governo reprima e ataque os trabalhadores e os movimentos sociais de conjunto.

A tradição de luta do movimento operário egípcio

O Egito é o país mais industrializado do mundo árabe, com uma enorme tradição de organização e luta. Os outros países com forte presença da classe operária com tradição de luta na região são Irã e Turquia, que não são árabes. As primeiras greves operárias remontam ao ano de 1899, quando os trabalhadores da indústria do tabaco realizaram uma importante greve.

O afloramento do movimento sindical, no entanto, deu-se a partir dos anos 1940 e 1950, quando o país viveu seus anos dourados de industrialização e a cidade do Cairo se transformou na Pérola do Nilo, com a expansão concomitante da indústria cultural. Nasser, com sua política de cooptação e repressão, proibiu o direito de greve e criou, como mencionamos antes, a ETUF (Federação dos Sindicatos Egípcios) em 1957. Durante os anos dourados de Nasser ,a economia crescia a um ritmo acelerado, cerca de 6% ao ano, e foram criados mais de um milhão de empregos, o que conteve as lutas por um período.

Nos anos 1970, quando se iniciou o processo de liberalização econômica impulsionado por Anwar al-Saddat, com sua política de “portas abertas” ao imperialismo, houve um grande ascenso sindical, com fortes greves salariais e contra as privatizações. As mais importantes foram as greves do transporte de 1976 e a revolta do pão em 1977. Nos anos 1990, mais concretamente em 1991, Mubarak assinou um grande acordo econômico com o FMI, o que provocou um novo ascenso operário e popular nos anos seguintes.

É importante recordar que ainda hoje uma parte importante das fábricas egípcias é propriedade do exército e são os soldados, os jovens obrigados a cumprir o serviço militar e que podem ir para a cadeia se não o fizerem, os que trabalham nas linhas de produção. Com o processo de privatização, muitos militares se associaram a capitais internacionais e tornaram-se os novos burgueses egípcios.

De 1998 a 2010, foram contabilizadas entre 3.400 e 4.000 greves em todo o país, que envolvem cerca de 4 milhões de trabalhadores contra as privatizações e a enorme precarização das relações trabalhistas. Até julho de 2015, já havia ocorrido cerca de 800 greves, isso sem contar a onda iniciada em setembro e que dura até agora.

Atualmente, pode estar se gestando um novo ascenso operário, que teria impacto não apenas no Egito, mas em todo o mundo árabe. Este ascenso pode ser derrotado, mas pode também reativar um processo de lutas na região. O papel dos sindicatos independentes e dos ativistas que viveram a experiência da revolução de 2011 será fundamental no desenlace desse processo. Além disso, está convocada uma mobilização para o quinto aniversário da revolução, no dia 25 de janeiro de 2016, pelo movimento “Voltamos à praça”, que está chamando uma grande manifestação contra al-Sisi. Não sabemos o que acontecerá. As cartas estão na mesa. Devemos prestar toda a solidariedade aos trabalhadores egípcios e lhes mostrar que possuem camaradas nos quatro cantos do planeta.

Tradução: Otávio Calegari

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