qui mar 28, 2024
quinta-feira, março 28, 2024

Com Trotsky, até o final

Desde o ataque de metralhadora feito pela GPU ao dormitório de Trotsky em 24 de maio, a casa de Coyoacán tinha se convertido, praticamente, em uma fortaleza. Aumentou-se a guarda, estava mais fortemente armada. Foram instaladas portas e janelas a prova de balas. Um abrigo foi construído com tetos e andares a prova de bombas.
Por Joe Hansen
 Portas duplas de aço, controladas por interruptores elétricos, substituíram a velha porta de madeira onde Robert Sheldon Harte foi surpreendido e seqüestrado pelos perseguidores da GPU. Três novas torres anti-balas vigiavam não só o pátio, senão todo o bairro ao redor. Estavam sendo preparadas uma cerca de arame farpado e redes contra bombas.

Toda esta construção foi possível graças aos sacrifícios dos simpatizantes e militantes da Quarta Internacional, que fizeram todo o possível para protegê-lo, sabendo que era absolutamente certo que Stalin tentaria outro ataque mais desesperado depois do fracasso do ataque de 24 de maio. O governo mexicano, o único país na terra que tinha oferecido asilo a Trotsky em 1937, triplicou o número de guardas que se revezavam do lado de fora da casa, fazendo tudo a seu alcance para salvaguardar a vida do exilado mais famoso do mundo.

Só não sabíamos como seria a forma do próximo ataque. Outro assalto de metralhadora com mais agressores? Bombas? Cacetadas? Envenenamento?

20 de agosto de 1940

Eu estava no telhado, próximo à torre de guarda principal com Charles Cornell e Melquiades Benítez. Estávamos ligando uma potente sirene com o sistema de alarme para ser usado quando a GPU atacasse novamente. Ao entardecer, entre as 17:20 e 17:30, Jacson, conhecido por nós como simpatizante da Quarta Internacional e como marido de Sylvia Ageloff, ex-membro do Socialist Workers Party, chegou em seu carro, um Buick sedan. Em lugar de estacioná-lo de frente para a casa, como era seu costume, deu uma volta completa na rua, estacionando-o paralelo à parede, com a frente apontado para Coyoacán. Quando desceu do carro, nos saudou acenando com a mão e gritou, “Sylvia já chegou?”

Surpreendeu-nos um pouco. Não sabíamos que Trotsky havia combinado um encontro com Sylvia e Jacson, mas relacionamos nossa falta de conhecimento a um descuido de Trotsky, o qual era comum em relação a esses assuntos.

“Não”, respondi a Jacson: “espere um momento”. Então Cornell fez funcionar os controles elétricos das portas duplas e Harold Robins recebeu o visitante no pátio. Jacson tinha um impermeável cruzado sobre o braço. Era a temporada de chuvas e, apesar de o sol estar brilhando, sobre as montanhas, ao sudoeste, pesadas nuvens ameaçavam com tormenta.

Trotsky estava no pátio dando de comer aos coelhos e às galinhas (sua forma de fazer um pouco de exercício na vida confinada que se viu obrigado a levar). Esperávamos que, como era seu costume, Trotsky não entrasse em casa até que tivesse terminado de lhes dar de comer ou até que Sylvia chegasse. Robins estava no pátio. Trotsky não tinha o hábito de se encontrar com Jacson a sós.

Melquiades, Cornell e eu continuamos com nosso trabalho. Durante os próximos dez ou quinze minutos, estive sentado na torre principal escrevendo os nomes dos guardas sobre etiquetas brancas para colocá-las nos comutadores que ligavam seus quartos com o sistema de alarme.

Um grito terrível cortou o silêncio da tarde – um grito prolongado e agonizante, quase um soluço. Fez-me saltar sobre meus pés, com um calafrio que me gelou os ossos. Eu corri para sair da torre de guarda. Seria um acidente de um dos dez operários que estavam remodelando a casa? Sons de luta violenta vinham do estúdio do Velho e Melquiades estava apontando com um rifle à janela de baixo. Trotsky fez-se visível por um momento, em sua jaqueta azul de trabalho, lutando corpo a corpo com alguém.

“Não atires!” gritei a Melquiades, “podes acertar o Velho!” Melquiades e Cornell ficaram no telhado, cobrindo as saídas do estúdio. Liguei o alarme geral, corri pela escada à biblioteca. Quando entrei pela porta de conexão da biblioteca com a sala de jantar, o Velho saiu cambaleando uns poucos metros de seu estúdio, com sangue jorrando no rosto.

“Vejam o que fizeram comigo!”

Ao mesmo tempo, Harold Robins entrou pela porta norte da sala de jantar seguido por Natalia. Natalia, jogando seus braços freneticamente ao redor de Trotsky, levou-o para fora, até a varanda. Harold e eu corremos atrás de Jacson, que se encontrava parado no estúdio, ofegante, com o rosto transtornado, com os braços caídos. Tinha uma pistola automática pendurada na mão. Harold estava mais próximo dele.

“Cuide dele”, disse, “irei ver o que aconteceu com o Velho”. Não acabara de me virar quando Robins já tinha subjugado o assassino contra o solo.

Trotsky arrastava-se para a sala de jantar. Natalia, chorando, tratava de ajudá-lo. “Vejam o que foi feito”, disse ela. Quando abraçou o Velho, que caiu perto da mesa da sala de jantar.

A ferida em sua cabeça parecia superficial à primeira vista. Eu não tinha escutado nenhum disparo. Jacson devia ter-lhe golpeado com algum instrumento. “O que aconteceu?” – perguntei ao Velho.

“Jacson me acertou com um revólver; estou seriamente ferido… sinto que desta vez é o fim”.

“É somente uma ferida superficial. Você vai se recuperar”, tratei de tranquilizá-lo.

“Falávamos sobre estatísticas francesas,” respondeu o Velho.

“Ele o atacou por trás?” – perguntei-lhe. Trotsky não respondeu. “Ele não atirou em você”, eu disse; “não escutamos nenhum tiro. Golpeou-o com algo”.

Trotsky parecia duvidar. Apertou minha mão. Entre as frases que trocamos, falou com Natalia em russo. Levava a mão dela continuamente a seus lábios. Subi novamente ao telhado e gritei para à polícia do outro lado da parede; “Chamem uma ambulância!” Disse a Cornell e Melquiades: “é um atentado. Jacson…” nesse momento meu relógio marcava 16:50hs.

Novamente estava ao lado do Velho. Cornell estava comigo. Sem esperar a ambulância da cidade, decidimos que Cornell fosse buscar o Dr. Dutren, que morava perto e tinha assistido à família em ocasiões anteriores. Como nosso carro estava trancado na garagem, com as portas duplas, Cornell decidiu usar o carro do Jacson parado na rua.

Quando Cornell saiu da casa, sons de briga novamente se fizeram escutar provenientes do estúdio onde Robins mantinha Jacson. “Diga aos rapazes que não o matem”, disse o Velho. “Ele tem que falar”.

Deixei Trotsky com Natalia e entrei no estúdio. Jacson tentava desesperadamente escapar de Robins. Sua pistola automática jazia sobre a mesa próxima. No andar tinha um instrumento ensanguentado, que a meu modo de ver era uma picareta, mas com a parte traseira em forma de machado. Lancei-me à luta contra Jacson, golpeando na boca e na mandíbula abaixo da orelha, quabrando minha mão.

À medida que Jacson recuperava a consciência, lançava gemidos. “Eles encarceraram a minha mãe… Sylvia Ageloff não teve nada que ver com isso… Não, não foi a GPU; não tenho nada a ver com a GPU…”. Punha ênfase nas palavras que o diferenciavam da GPU, como se repentinamente tivesse se lembrado de que o roteiro do seu papel dizia que aqui deveria falar em voz alta. Mas ele já havia se delatado. Quando Robins subjugou o assassino, Jacson evidentemente achou que era seu fim. Tinha se retorcido aterrorizado; de seus lábios tinham escapado palavras que não pôde controlar: Obrigaram-me a fazê-lo”. Tinha dito a verdade. A GPU obrigou-o a fazê-lo.

Cornell irrompeu no estúdio. “As chaves não estão no carro”. Tratou de encontrá-las nas roupas de Jacson, mas sem sucesso. Enquanto buscava, corri para abrir as portas da garagem. Em poucos segundos Cornell, pegou nosso carro. Esperamos que Cornell voltasse – Natalia e eu estávamos ajoelhados ao lado do Velho, sustentando suas mãos. Natalia tinha limpado o sangue de seu rosto e tinha posto um bloco de gelo sobre sua cabeça, que já estava inchando. “Golpeou-o com uma picareta”, eu disse ao Velho. “Não atirou em você. Estou certo de que é somente uma ferida superficial”.

“Não”, respondeu. “Eu sinto aqui (indicando o coração) que desta vez o conseguiram”.

Tratei de dar-lhe confiança, “Não, é só uma ferida superficial; você vai melhorar”. Mas o Velho sorriu levemente com seus olhos. Ele sabia…

“Cuide de Natalia. Ela tem estado comigo muitos, muitos anos”. Apertou minha mão enquanto ‑­olhava-a fixamente. Parecia estar bebendo seus traços, como se a estivesse deixando para sempre – comprimido, nestes fugazes segundos, todo o passado dentro de um último olhar.

“O faremos”, prometi. Minha voz parecia lançar entre os três a compreensão de que este realmente era o final. O Velho sustentava nossas mãos, apertando-as convulsivamente. De repente, saltaram lágrimas de seus olhos. Natalia chorou desconsoladamente, virando-se sobre ele, beijando a sua mão.

Quando o Dr. Dutren chegou, os reflexos do lado esquerdo do Velho já falhavam. Uns momentos mais tarde, a ambulância veio e a polícia entrou no estúdio para levar o assassino.

Natalia não quis deixar que levassem o Velho ao hospital – foi em um hospital de Paris que seu filho, León Sedov, havia sido assassinado dois anos antes. Por um momento, o próprio Trotsky, deitado no chão, teve dúvidas.

“Iremos com você”, eu disse. “Deixo que tu decidas”, ele me disse, como se agora estivesse deixando tudo em mãos dos que o rodeavam, como se os dias em que tomava decisões fossem coisas do passado.

Antes de ser colocado em uma maca, o Velho uma vez mais sussurrou “Quero que tudo o que tenho seja de Natalia”. Então, com uma voz que penetrava profundamente até os melhores sentimentos dos amigos ajoelhados a seu lado… “Cuidem dela…”

Natalia e eu fizemos o triste percurso com ele até o hospital. Sua mão direita vagava por cima dos lençóis que o cobriam, tocou uma bacia colocada perto de sua cabeça e encontrou Natalia. Trotsky sussurrou, puxando-me insistentemente para baixo, próximo de seus lábios para que eu não deixasse de ouvir: “Ele é um assassino político. Jacson é membro da GPU ou um fascista. O mais provável é que seja da GPU”. Impressões sobre Jacson estavam percorrendo a mente do Velho. Nas poucas palavras que lhe restavam, estava me dizendo o curso que ele pensava que deveria seguir nossa análise do ataque, sobre a base dos fatos que já tínhamos. A GPU de Stalin é culpada, mas devemos deixar aberta a possibilidade de que foram ajudados pela Gestapo de Hitler. Ele não sabia que o cartão de visita de Stalin em forma de uma “confissão” estava no bolso do assassino.

As últimas horas

No hospital, os médicos mais proeminentes do México reuniram-se em consulta. O Velho, exausto, ferido de morte, com os olhos quase fechados, olhava para meu lado da estreita cama do hospital, e movia debilmente sua mão direita. “Joe, tem um caderno?”

Quantas vezes havia feito a mesma pergunta! Mas em tom vigoroso, com a sutil ironia que nos lançava a respeito da “eficiência norte-americana”. Agora sua voz era pastosa, quase não se podiam distinguir as palavras. Falava com grande esforço, lutando contra a escuridão invasora. Apoiei-me na cama. Seus olhos pareciam ter perdido esses lampejos velozes da enérgica inteligência tão característica do Velho. Seus olhos estavam fixos, como se já não percebessem o mundo exterior e, no entanto, senti essa vontade enorme apartando a escuridão que o extinguia, negando-se a ceder a seu inimigo até ter conseguido sua última tarefa.

Devagar, entrecortado, ditou, escolhendo dolorosamente as palavras de sua última mensagem à classe operária em inglês, um idioma que lhe era estranho. Em seu leito de morte, não se esqueceu de que seu secretário não falava russo!

“Estou perto da morte pelo golpe de um assassino político… que me foi dado em minha casa. Lutei com ele… iniciamos… uma… conversa sobre estatísticas francesas… ele me atacou… por favor diga a nossos amigos… estou certo… da vitória… da Quarta Internacional… adiante.”

Tratou de dizer mais; mas as palavras eram incompreensíveis. Sua voz foi desaparecendo, os olhos cansados fecharam-se. Nunca recuperou a consciência. Isto ocorreu perto de duas horas e meia após ter sido ferido.

Tiraram uma radiografia do ferimento e os médicos decidiram que era necessária uma operação imediatamente. O cirurgião encarregado do hospital fez o delicado trabalho de trepanação na presença de destacados especialistas mexicanos e dos médicos da família. Descobriram que a picareta tinha penetrado sete centímetros, destruindo o tecido cerebral consideravelmente. Alguns destes médicos declararam que o caso não tinha solução. Outros deram ao Velho a oportunidade de lutar.

Depois de mais de vinte e duas horas após a operação, o desespero se misturou com a esperança de que ele poderia sobreviver. Os amigos dos Estados Unidos estavam dispostos a enviar um famoso especialista em cérebro, o Dr. Walter E. Dandy de Johns Hopkins, por avião. Durante horas terríveis, escutamos a respiração pesada do Velho enquanto jazia na cama do hospital. Com sua cabeça raspada e enfaixada, era surpreendente a semelhança a Lenin.

Lembramos-nos dos dias em que tinham dirigido a primeira revolução vitoriosa da classe operária.

Natalia negava-se a abandonar o quarto, não comia, olhava com os olhos secos, as mãos entrelaçadas, com os nós dos dedos brancos, enquanto as horas passavam uma após a outra durante essa noite longa e horrível. E no dia seguinte interminável. Os relatórios dos médicos viam sinais favoráveis, uma melhoria ocasional e, até o fim, ainda sentíamos que, de alguma maneira, este homem que tinha sobrevivido aos cárceres do czar, aos exílios, a três revoluções, aos julgamentos de Moscou, poderia sobreviver a este golpe traiçoeiro indescritível que lhe tinha dado Stalin.

Mas o Velho tinha mais de sessenta anos. Tinha estado mau de saúde durante uns meses. Às 19:25, de 21 de agosto, entrou na crise final. Os médicos trabalharam durante vinte minutos, utilizando todos os métodos científicos a sua disposição, mas nem a adrenalina podia reviver o grande coração e a grande mente que Stalin tinha destruído com uma picareta.

­
Agosto de 1940

(*) Joe Hansen foi secretário de Trotsky e dirigente trotskista norte-americano.

Fonte: Correio Internacional n° 49, Agosto 1990.

Tradução: Rosangela Botelho

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares