qui abr 25, 2024
quinta-feira, abril 25, 2024

1948-1968: vinte anos de estalinismo em Praga

1. A conquista do poder pelo Partido Comunista Checoslovaco em 1948

No contexto das duas guerras mundiais entre os países do Leste Europeu, a Checoslováquia destacou-se pelo mais moderno desenvolvimento industrial e por uma classe operária avançada.

Por: Salvatore de Lorenzo

Após os acordos de Mônaco de 1938, assinados pela França, Itália, Reino Unido e Alemanha, Hitler invadiu a Checoslováquia, ocupando as regiões fronteiriças da Boêmia e Morávia.

O Partido Comunista da Checoslováquia (PCCH), fundado em 1921 por uma cisão do Partido Socialdemocrata checoslovaco e adepto à Terceira Internacional, deu uma importante contribuição à resistência popular antinazista, aumentando progressivamente sua influência sobre a classe trabalhadora. A União Soviética, que era bem vista pelas massas populares checoslovacas por não ter aderido aos acordos de Mônaco, obteve maior prestígio graças à contribuição do Exército Vermelho para a expulsão dos nazistas da Checoslováquia, sendo esquecido, assim, o pacto inicial entre Stalin e Hitler. Portanto, essas políticas produziram um aumento significativo no número de membros do PCCH a partir de 1945.

No âmbito dos acordos de partilha de Yalta-Potsdam de 1945, a Checoslováquia deveria retornar à esfera de influência da URSS. Por esta razão, a viagem do presidente checoslovaco Beneš a Moscou, em março de 1945, serviu para definir um governo de Frente Nacional, sob a liderança do socialdemocrata Fierlinger, tendo como vice-presidente o estalinista Gottwald. O governo estabeleceu-se temporariamente em Košice em 4 de abril e pôde ser transferido para Praga em 10 de maio, um dia após a cidade ter sido libertada dos nazistas pelo Exército Vermelho[1].

Em 24 de outubro de 1945, o governo iniciou a nacionalização de bancos, companhias de seguros, fundições, minas e fábricas com mais de quinhentos trabalhadores. Dois milhões de hectares de terra foram expropriados dos latifundiários e distribuídos a 170 mil pequenos agricultores[2].

No ano seguinte, os comunistas ganharam as eleições com 38% dos votos (43% na Boêmia [atual região da República Checa])[3], Gottwald tornou-se primeiro-ministro e, ao longo dos anos 1946-47, as obras de nacionalização de empresas, incluindo pequenas indústrias têxteis, e a distribuição de terras continuaram. Por causa da intervenção de Stalin, a Checoslováquia também se recusou-se a se juntar aos países que participaram do plano Marshall.

O objetivo do PCCH era apoderar-se de qualquer maneira das chaves de controle do aparato do Estado, e para isso era necessário que os demais partidos políticos da Frente Nacional tivessem um peso insignificante na frente eleitoral. Esta operação não era tão fácil, uma vez que o Partido Socialdemocrata tentou opor-se à hegemonia do PCCH, nomeando para a direção do partido, em 1947, o centrista Laušman, em substituição a Fierlinger, partidário da fusão da socialdemocracia com o PCCH[4]. No entanto, com considerável apoio na classe operária e o controle dos ministérios mais importantes, incluindo o Ministério do Interior e o da Informação, o PCCH iniciou a constituição de uma milícia operária.

Na primeira crise do governo, as milícias operárias entraram em ação: reuniões e manifestações imponentes foram organizadas pelas ruas de Praga e, graças ao apoio do Ministério do Interior, entraram nas rádios, edifícios públicos, embaixadas, e fecharam as fronteiras, o que obrigou a Beneš a aceitar as renúncias apresentadas pelos ministros não-comunistas[5].

Com esta demonstração de força, em seguida, o Parlamento aprovou por unanimidade a apresentação de uma chapa única para as eleições ulteriores, de 30 de maio de 1948. A farsa eleitoral logrou uma percentagem de aprovação de 89,3% a favor da chapa única contra os restantes votos em branco. Gottwald sucedeu o presidente Beneš e o dirigente do PCCH, Zápotocký, tornou-se chefe do governo. No mês de junho, os socialdemocratas fundiram-se aos comunistas que, neste ínterim, tinham elegido Slánský como dirigente.

Muitos historiadores, inclusive da esquerda, tendem a definir este passo crucial na história da Checoslováquia como um golpe de Estado. Do meu ponto de vista, esta é uma interpretação errônea: se o PCCH não possuísse o forte apoio da classe trabalhadora, esse “exagero” parlamentar em torno da formação de uma chapa única eleitoral hegemonizada pelo Partido Comunista não seria possível ou teria sido muito mais complicado. O PCCH usufruiu habilmente do consentimento da classe operária e dos camponeses, graças às políticas socialistas de nacionalização das empresas e expropriação gradual de terras, para armar a classe operária e alcançar o poder.

É certo que esse poder não serviu ao PCCH para instaurar a ditadura do proletariado, mas para erigir um Estado burocrático, autoritário e policial, fiel aliado da União Soviética, mas é uma verdade que deve ser conhecida, e foi elucidada, infelizmente, somente nos anos seguintes.

2. O clima de terror dos anos cinquenta

Se, na Rússia de 1917, a degeneração do Estado operário em um Estado burocrático foi resultado de uma série de fatores históricos, políticos e econômicos (o atraso do aparato industrial em um país principalmente agrícola, o alto índice de analfabetismo das massas, a derrota das revoluções sociais na Europa), não havia, na Checoslováquia, nenhuma razão pela qual a tomada do poder pelo PCCH desse lugar a um desvio burocrático e autoritário da “democracia popular” checoslovaca.

A Checoslováquia tinha um dos sistemas industriais mais avançados da Europa Oriental e uma classe operária de longa tradição. A tomada do poder pelo Partido Comunista e a possibilidade, graças à nova configuração geopolítica estabelecida após a Segunda Guerra Mundial, de desenvolver relações comerciais com outros países “socialistas” deveriam facilitar o desenvolvimento das forças produtivas e aumentar o bem-estar da população. Mas este desenvolvimento seria possível se a ditadura do proletariado, isto é, o governo democrático da classe operária fosse concretizado por meio do desenvolvimento de uma economia centralizada, regulada pela intervenção dos delegados dos comitês de fábrica, democraticamente eleitos e revogáveis, como ensinado por Lenin e na história da Comuna de Paris.

No entanto, a construção do socialismo na Checoslováquia se chocaria com os interesses de um Estado, o soviético, que se degenerara completamente num Estado burocrático e autoritário, e cujo principal objetivo era preservar os interesses e os enormes privilégios de um aparato burocrático parasitário, que se elevara acima das classes sociais. O desenvolvimento de uma verdadeira democracia operária, em qualquer país da área de influência da URSS, teria exposto todas as contradições desse aparato burocrático parasitário, que, no entanto, saiu fortalecido da Segunda Guerra Mundial. Esta é a principal razão pela qual o PCCH deveria, de acordo com a vontade dos estalinistas soviéticos, assumir as mesmas regras de controle da sociedade checoslovaca que o PCUS tinha implementado na União Soviética. Por um lado, era necessário, portanto, desenvolver um clima de terror para eliminar as inevitáveis fontes de dissidência política com a linha do Partido. Por outro lado, era necessário desenvolver ao mais alto nível um aparato burocrático e policial capaz de controlar o funcionamento do Estado e da economia.

Os líderes do PCCH, liderados pelo estalinista Gottwald, dedicaram-se a criar um clima de terror. Por meio da farsa dos processos, das torturas e calúnias, tanto o PCCH como as forças da oposição foram “limpos” de todos aqueles elementos que poderiam representar uma potencial fonte de dissidência com o pensamento único do aparato do partido. Não apenas os trotskistas, como Záviš Kalandra[6], foram imediatamente eliminados, mas até mesmo os membros fiéis ao partido que mostraram débeis sinais de autonomia ao invés de aplicarem mecanicamente as diretrizes impostas pelos soviéticos. O mais célebre dos falsos julgamentos envolveu, em 1952, o próprio Slánský, secretário do PCCH, e o ministro de Assuntos Exteriores, Clementis, que, acusados de “titoísmo” foram condenados à morte após serem obrigados a se declarar “traidores confessos”. Junto a Novomeský, Smrkovský, que foi o organizador das milícias populares, e Svoboda, demitido do cargo de Ministro da Guerra. Estas são apenas as vítimas mais famosas do regime policial que governou a Checoslováquia nos anos 1950 e que atingiu indiscriminadamente a todos os opositores, afetando pelo menos 40 mil pessoas[7].

O desenvolvimento do aparato burocrático e policial envolveu as direções dos sindicatos, instituições de ensino e organizações estudantis. Os dirigentes das principais fábricas do país foram eleitos pelo Partido e não pelos operários, como representantes dos conselhos de fábrica. Paradoxalmente, tal Estado burocrático nem sequer precisou impor por lei a censura ou leis repressivas sobre as publicações; era suficiente que zelosos servidores públicos do partido verificassem que artigos e quais informações poderiam ser impressos “livremente” e quais não.

3. A crise econômica dos anos sessenta

A partir de 1949, o desenvolvimento da economia checoslovaca se deu por meio de planos econômicos quinquenais. Um primeiro plano (1949-1953), que priorizou o crescimento da indústria pesada, foi substituído em 1956 por um destinado a alcançar o equilíbrio entre a indústria pesada e a média e completar a socialização da terra e dos meios de produção[8].

Após um período de crescimento econômico sustentado até o início dos anos 1960, houve uma queda na produção industrial (o produto interno bruto passou de uma taxa de crescimento de 7%, em 1961, para -0,1% em 1963).

A crise econômica foi um dos principais fatores que criou uma primeira grande controvérsia dentro do PCCH, entre os dirigentes que apoiavam a necessidade de uma reforma econômica e os conservadores. Este é um dos principais elementos da discussão e da crise aberta no PCCH no início dos anos 1960 e que conduzirá aos acontecimentos de Praga em 1968.

Ota Šik, um dos principais economistas do Partido, conduziu uma batalha interna para introduzir reformas econômicas que, em seus projetos, deveriam mitigar os efeitos da planificação e introduzir medidas para descentralizar a economia. Somente em 1968, após a renúncia de Novotný da direção do Partido, serão aprovadas as reformas econômicas de Šik, mas na prática não haverá tempo para implementá-las. Em março de 1968, Šik, que pertencia à velha guarda e fez parte desse imbróglio no PCCH, ao lado de todo o grupo dirigente, acusará duramente Novotný, agora fora dos jogos de poder, de estar “rodeado, durante anos, de camaradas leais (…) É um fato que ele tinha excessivo poder no gerenciamento da eleição dos quadros. E especialmente dos quadros centrais (…). Tomemos, por exemplo, a agricultura. Certamente não era seu campo de trabalho, no entanto conseguiu impor a nomeação do camarada Mestek como ministro e a destituição do camarada Burian (…) Em torno de uma pessoa com tanto poder como Novotný, sempre estará disponível uma grande quantidade de carreiristas e bajuladores[9].

As razões da crise econômica, obviamente, não se encontram na centralização da economia planificada, como muitos historiadores burgueses querem fazer crer, mas nos métodos burocráticos de seleção de quadros para o planejamento da economia e, é claro, na situação econômica internacional. Não sendo, de fato, a equipe dirigente das principais fábricas selecionada pelos métodos da democracia operária, mas com base no critério de fidelidade e servilismo aos interesses e privilégios do grupo dirigente do PCCH, os dirigentes, incapazes no campo da tecnologia e da engenharia industrial, deixaram de lado a importância dessas revoluções na produção industrial que, por sua vez, tinham sido utilizadas pelo sistema capitalista para permitir a modernização dos meios de produção e melhorar a produtividade do trabalho nas fábricas ocidentais.

Deste ponto de vista, a análise posterior dos acontecimentos em Praga não pode deixar de convergir com o que Ernest Mandel escreveu em 1969[10]: “Como podemos agora negar que essa ameaça [de uma subversão do ‘socialismo’ na Checoslováquia] deva ser considerada, pelo menos em parte, como o resultado desses vinte anos de experiência; ou seja, em outras palavras, o regime Gottwald-Novotný conduziu, ao menos em parte, a resultados desastrosos? Não é difícil estabelecer com precisão quais foram esses resultados. Eles são bem conhecidos e podem ser facilmente documentados. A rígida burocratização da vida social conduziu a um divórcio quase completo entre a massa de pessoas que trabalhava – em primeiro lugar os trabalhadores – e aqueles que monopolizaram o exercício do poder político e econômico. A participação dos trabalhadores foi reduzida a praticamente nada, contrariando todos os ensinamentos de Marx e Lenin. Este divórcio foi igualmente expresso nos campos técnico, cultural e ideológico. Uma burocracia altamente centralizada, sem criatividade e sem imaginação, ‘perdeu o bonde’ de inúmeras inovações tecnológicas chaves, levando a CSSR [República Socialista Checoslovaca] do nível de um dos países tecnologicamente mais avançados da Europa e do mundo ao estado de um país que sofre de graves lacunas tecnológicas, não somente em relação aos EUA e à URSS, mas também em relação às potências capitalistas da Europa ocidental (…). A crise da sociedade checoslovaca, revelada dramaticamente pela intervenção dos poderes do Pacto de Varsóvia, é o resultado do sistema burocrático de gestão, um resultado do regime de Gottwald-Novotný”.

Para resolver os problemas da economia, já em 1962, no XII Congresso do PCCH, Šik sustentou, por um lado, a necessidade de uma renovação das instalações de produção, e, por outro, a necessidade de introduzir correções ao sistema econômico planificado, baseadas tanto na maior liberdade e responsabilidade das empresas na elaboração de planos de investimento e de produção, quanto na avaliação da produtividade das empresas com base na mercadoria efetivamente vendida. Essas reformas, por si só, não significavam necessariamente um desvio da construção do socialismo, mas constituíam uma crítica ao sistema burocrático que até agora tinha conduzido a economia.

Deste ponto de vista, é muito interessante e aceitável a análise desenvolvida por Mandel[11], que, entre outras coisas, afirma: “É sem dúvida verdade que cada passo importante rumo à economia de mercado e à descentralização das decisões de investimento ameaça, a longo prazo, a natureza planificada da economia. Mas a ameaça não leva automaticamente à sua concretização. Afinal, Lenin, ao introduzir a NEP em 1921, foi muito mais longe na direção da economia de mercado do que qualquer uma das reformas econômicas atualmente introduzidas na Europa Oriental. No final, a NEP ameaçou a base socializada da economia soviética; mas essa ameaça foi resolvida pela industrialização acelerada e a coletivização da agricultura, ou seja, não levou à restauração do capitalismo. Para avaliar o grau da ameaça e a forma de neutralizá-la, é necessário fazer uma análise concreta dos problemas da economia em um dado momento, de suas principais tendências de desenvolvimento, e da relação entre as forças sociais, e não se limitar a declarações gerais sobre o perigo da economia de mercado”.

Depois da invasão de Praga pelos países do Pacto de Varsóvia, muitos economistas e jornalistas burgueses vendidos lançaram-se, instrumentalmente, contra a economia planificada, utilizando também a crítica de Šik à economia planificada checoslovaca e as suas propostas quanto à necessidade de descentralização. No entanto, é evidente que os problemas da Checoslováquia não estavam relacionados à escolha de uma economia planificada, mas à estrutura burocrática do Estado, que levou os elementos mais servis à direção do partido, para ocupar postos de direção e posições privilegiadas de acordo com uma concepção de socialismo que nada tinha a ver com o raciocínio de Marx e de Lenin.

Além disso, o governo de Dubček-Šik teve uma curta duração, o que não permite analisar como a política econômica teria se desenvolvido e o que essa descentralização significaria na prática. Neste sentido, a ideia de Mandel é muito interessante[12]: “Nas condições concretas da situação econômica na CSSR de 1966 a 1968, um aumento da descentralização e um maior uso dos mecanismos de mercado no setor dos bens de consumo seria provavelmente inevitável para reorientar a economia com os principais objetivos de crescimento econômico harmonioso e acelerado. Mas esta não era a principal questão social envolvida nas reformas. A ‘descentralização’ pode significar duas coisas. Pode significar um fortalecimento do gerente da fábrica, tanto em termos de autoridade de planejamento como sobre os trabalhadores; também pode significar a concepção dos componentes do poder dos trabalhadores no nível da fábrica. A primeira tendência seria vista com extrema desconfiança por parte dos trabalhadores, especialmente se implicasse o direito dos dirigentes de despedir trabalhadores, modificar os salários, aumentar a ‘disciplina do trabalho’, etc. A segunda tendência é um primeiro passo na direção da democracia socialista. Durante a maior parte de 1968, não estava claro para os trabalhadores checoslovacos qual dessas duas tendências de reforma prevaleceria, e Dubček não foi de forma alguma identificado com esta última. Restringiu-se a um jogo experimental, com conselhos de trabalhadores como elementos de ‘cogestão no nível da fábrica’”.

4. A pseudo-desestalinização do PCCH

Em 1953, Gottwald morreu e Zápotocký foi eleito presidente da República. Novotný, um dos mais apaixonados acusadores de Slánský, converteu-se em secretário do PCCH. Em 1955, a Checoslováquia adere ao Pacto de Varsóvia. Embora os efeitos da desestalinização provocassem tremores políticos em diferentes países do Pacto de Varsóvia, na Checoslováquia a continuidade do estalinismo não só não estava em discussão, como era exaltada, e com a morte de Zápotocký em 1957, foi designado o escritório do Presidente da República ao secretário do PCCH, Novotný, o homem mais fiel aos dogmas estalinistas.

Só mais tarde, a partir de 1962-1963, a partir das fissuras e diferenças desenvolvidas no seio da direção do PCCH como consequência da crise econômica, os intelectuais comunistas, em especial os escritores, começaram a criticar – cada vez mais profundamente – a natureza repressiva, autoritária e intransigente do regime estalinista na Checoslováquia. De fato, em 1962 foi concedida a revisão da farsa dos processos dos anos 1950 e a reabilitação das vítimas, tomando cuidado para não fazer os dirigentes ainda vivos do partido, incluído o próprio Novotný, pagarem pela responsabilidade que compartilharam com o defunto Gottwald, sobre quem descarregaram todas as culpas. E o processo de desestalinização foi firmemente rejeitado dentro do PCCH, tanto que o ex-ministro do Interior, Rudolf Barak, que tentou acelerar a reabilitação, foi condenado a 15 anos de prisão, em 1962, sob acusações difamatórias de crimes comuns[13].

No entanto, à medida que as fissuras no aparato do partido cresciam, os intelectuais, em sua maioria membros do PCCH, trabalharam ao lado dos dirigentes. A questão da falta de liberdade de expressão foi oficialmente desenterrada em 1963, quando, no Congresso de Escritores, foi solicitada e obtida – pode parecer um paradoxo – pelos próprios escritores a instituição do censor. De fato, existia um sistema de censura informal no país; isto é, não existia oficialmente, mas, na prática cotidiana, a secretaria do partido decidia o que podia ser publicado e o que não, segundo diretivas que os escritores não conheciam: por isso que pediram, e conseguiram, que suas limitações fossem definidas com nitidez[14].

A aparente abertura do Partido Comunista, ainda firmemente nas mãos de Novotný, às questões de liberdade de expressão, foi usada para espalhar uma fina camada de renovação a um aparato gangrenado que não tinha intenção de se afastar. E a hipocrisia e arrogância nessa renovação da burocracia governante podem ser captadas do próprio Novotný que, em 1963, afirmou, a propósito da liberdade de imprensa: “a crítica, para ser positiva, deve ser limitada a criticar alguns detalhes, acrescentando sempre uma avaliação positiva da situação geral[15].

E, já que o aparato não tinha intenção de se afastar, desde 1964 começou a executar uma série de medidas repressivas, especialmente contra o movimento estudantil, até 1967, ano da queda de Novotný. Além das medidas disciplinares contra economistas e acadêmicos, o governo tentou normalizar a fermentação que se desenvolvia no meio do movimento estudantil. Um dos episódios mais significativos de repressão estudantil ocorreu em 1964, quando dois estudantes foram expulsos da universidade e inscritos no serviço militar do exército por terem assumido a frente de um protesto contra o governo, contra a acomodação da Associação da juventude checoslovaca, obviamente controlada pelo PCCH, ao governo e pela destituição de Císař como Ministro da educação.

A combinação de toda a dinâmica, desde os problemas econômicos e a revisão dos processos dos anos 1950 até a questão da liberdade da imprensa, no entanto, já tinha criado uma fração, que se opunha à linha autoritária imposta por Novotný e seus aliados, no interior do partido.

5. A ascensão de Dubček e a queda de Novotný

Em 1963, para dar a impressão de uma vontade de renovação do partido, Novotný nomeou Alexander Dubček como secretário do Partido Comunista eslovaco e substituiu o primeiro-ministro Široký por Lenárt. Como disse o próprio Novotný: “ambos jovens e com as mãos limpas”[16].

A crise se gestava dentro do Comitê Central do Partido Comunista, embora só tenha sido oficialmente aberta mais tarde, quando, em junho de 1967, no IV Congresso de Escritores, foi realizada uma profunda discussão sobre a liberdade de imprensa e uma forte crítica à censura do PCCH em relação aos intelectuais. Novotný e seus partidários reagiram imediatamente e, em setembro, alguns escritores, incluído Vaculik, foram expulsos do Partido, e outros, incluído Kundera, foram severamente repreendidos. As decisões não foram tomadas por unanimidade, mas com vários votos contra, o que indica uma clara divisão no Partido. Em outubro de 1967, de fato, Dubček começou a se distanciar de Novotný, solicitando que a cúpula do Estado e do Partido fossem representadas por dois membros distintos e depois pedindo a Novotný para deixar um dos dois cargos que ele representava. A atmosfera de intolerância contra o intransigente regime crescia dia após dia em Praga e, em 31 de outubro, a polícia reprimiu duramente um protesto de estudantes universitários em Praga. Este episódio, em vez de desencorajar os estudantes, deu início a assembleias nas universidades e pedidos cada vez mais urgentes ao partido e ao governo sobre a necessidade de apurar a responsabilidade política da repressão durante a manifestação estudantil. Em 15 de dezembro, o partido decide publicar uma enquete sobre a repressão aos estudantes, que reconhece como um erro a reação excessiva da polícia, mas, ao mesmo tempo, acusa os estudantes de provocações desnecessárias[17].

Enquanto aumentava a oposição ao autoritarismo do PCCH e ao seu consenso na opinião pública e Novotný, em vão, pedia ajuda a Breznev para salvar o duplo cargo e reprimir a dissidência interna ao CC, Ota Šik, na reunião do CC de dezembro, criticou abertamente os erros da planificação central.

Somente em 3 de janeiro de 1968, após uma fracassada tentativa de golpe tramada por dois generais do exército, Šejna e Lomsky, próximo a Novotný, este foi forçado a renunciar ao cargo de secretário do partido, mantendo o cargo de Presidente da República. Ao frustrar a tentativa de golpe, Dubček obrigou Novotný a declarar-se alheio ao golpe. Em 5 de janeiro, Dubček tornou-se secretário do PCCH. Foi a vitória do grupo dos chamados “reformadores”. A mudança de direção abriu uma nova etapa, sobretudo graças ao controle dos meios de comunicação, até mesmo porque a ênfase com que se fala da “Primavera de Praga” é provavelmente excessiva, tendo em vista a grande timidez com que Dubček abordou os vários temas, incluído o problema da censura, que somente em 26 de junho foi eliminada por lei.

A campanha midiática contra Novotný, principal protetor do golpista Šejna – que, por sua vez, fugiu para o exterior para evitar a prisão devido a um escândalo que desmascarou o tráfico, envolvendo a burocracia do partido, na revenda de carros de luxo (Mercedes, Porsche, Jaguar) – chegou como um presente do Ocidente e forçou Novotný a renunciar do cargo de presidente da República. A queda de Novotný debilitou, mas não destruiu, a presença dos homens da velha guarda no PCCH. Depois de um confronto de conciliação com a cúpula do Kremlin, que agora acompanhava de perto os acontecimentos na Checoslováquia, o PCCH chegou a um acordo para a eleição de Svoboda, oficial septuagenário, bem visto pelos soviéticos, e mais tarde seu cúmplice na invasão de agosto.

6. As reformas de Dubček – Šik

As tímidas reformas, propostas de maneira genérica em abril de 1968 no “Programa de Ação”[18] apresentado por Dubček, previam uma expansão da base de decisão também para as forças não comunistas da Frente de Ação, o órgão de aliança eleitoral nascido em 1945 e progressivamente desautorizado. Contudo, a ampliação continuou a ser um fato mais formal que decisório, uma vez que a Frente tinha que continuar sendo um órgão substancialmente consultivo e as decisões estavam nas mãos do PCCH[19].

Também no campo econômico as propostas de descentralização de Ota Šik não propiciaram um retorno real à democracia dos conselhos de fábrica, mas sim a um sistema misto em que o controle da gestão das fábricas permaneceu nas mãos da burocracia do partido. Já no verão de 1966, de fato, após o XIII Congresso do Partido, uma Comissão Estatal de administração e organização sugeriu a possibilidade de uma maior abertura para a administração das empresas do Estado pelos trabalhadores, propondo, no entanto, um conselho de empresa composto por apenas um terço dos trabalhadores eleitos nas fábricas; os dois terços restantes deveriam ser nomeações políticas, que constituíam a metade dos especialistas vindos do exterior e a outra metade de representantes do Estado; na prática, os trabalhadores continuavam a ser uma minoria nas decisões. Esse projeto, tornado público apenas em abril de 1968, alimentaria a discussão dentro das fábricas e levaria à formação dos conselhos operários, que seriam constituídos em junho do mesmo ano[20].

No entanto, os soviéticos agora entendiam bem que, apesar da timidez das propostas do novo grupo dirigente, o processo de “democratização” iniciado pelo PCCH, com o controle dos meios de comunicação em mãos do grupo dirigente reformador, permitiria expor as contradições e privilégios da burocracia e acabaria se espalhando para todos os países sob a influência soviética. E, de fato, isto realmente aconteceu, porque sob o Ministério de Informação de Císař, o diretor da televisão Pelikan levou aos lares checoslovacos as contradições da burocracia, forçando os ministros e dirigentes a responder às demandas do jornalismo[21]. Os soviéticos entenderam claramente que esse processo levantaria novamente o problema da direção política e que isso, inevitavelmente, levaria a classe operária a trabalhar em um projeto para derrubar esse modelo autoritário. O perigo real, para Breznev e seus sócios, não era absolutamente representado pelo perigo de um retorno ao capitalismo em um país onde os meios de produção estavam nas mãos do Estado e onde a única classe verdadeiramente privilegiada era a burocracia do PCCH, até esse momento totalmente leal à linha soviética e agora submetida à “insolência” da imprensa. O perigo real era representado pela reapropriação da questão do poder pelas grandes massas e, em particular, a classe operária. Como escreveu Mandel: “Quais foram às razões da intervenção militar do Kremlin na CSSR? Certamente não foi contra o ‘perigo da restauração capitalista’ contido nas reformas econômicas, porque estas reformas são a única parte do ‘Programa de janeiro’ do PCCH que permanece praticamente vigente. Não pode ser contra uma ameaça de intervenção militar estrangeira, porque não há uma migalha de evidência de que tal intervenção aconteça. Nem sequer contra a contrarrevolução ‘interna’, porque não apenas esta ‘contrarrevolução’ é extremamente fraca – se não inexistente –, como os resultados da intervenção militar, em todo caso, fortaleceriam-na em vez de debilitá-la, como qualquer um podia prever. A conclusão que pode ser extraída é a seguinte: a intervenção militar das potências do Pacto de Varsóvia na Checoslováquia não foi dirigida contra a contrarrevolução social naquele país, mas contra a revolução política na URSS e nos países aliados formalmente, mas, de fato, submetidos a seu controle burocrático. A ameaça que o Kremlin temia não era a crescente influência do imperialismo na Checoslováquia, mas a crescente influência da Checoslováquia na URSS e nos países vizinhos. O inimigo não era a ‘restauração capitalista’, mas a democracia socialista[22].

7. A Primavera de Praga

Com a queda de Novotný, entre março e agosto de 1968, houve uma oposição constante entre as forças inovadoras e os conservadores. Dubček tentou, em vão, moderar o papel da crítica constante da televisão, que progressivamente revelava os privilégios da burocracia e as distorções do sistema autoritário. A análise dos fatos e dos documentos mostra, no entanto, que Dubček estava à frente de um movimento de reformas sem a concepção revolucionária necessária para levar, até o final, a regeneração do Estado operário checoslovaco sobre a base de organismos da democracia soviética, permanecendo assim preso entre as pressões do novo grupo reformista do PCCH, por um lado, e as exigências progressivas de normalização do Kremlin e da oposição interna, pelo outro.

A exigência de romper com esse modelo autoritário impregnou gradualmente a sociedade checoslovaca, desde as fábricas até as universidades e os intelectuais do partido. Abriu-se um grande período de mobilizações estudantis que envolveram, também, outros países do Pacto de Varsóvia. Na Polônia, Gomulka foi forçado a reprimir, prendendo 2.500 estudantes em março de 1968, devido a um protesto estudantil que invocava “Até mesmo toda Polônia espera por seu Dubček! ”[23].

A tensão se intensificou em maio, quando as manifestações de rua e as críticas se estenderam abertamente à burocracia soviética, desencadeando a ira de Brezhnev. Dubček, na tentativa de mediar, redigiu um regulamento para tentar frear o papel da informação. A essa altura, a URSS decidiu mudar sua estratégia, começando, mais ou menos abertamente, a desacreditar a direção do PCCH, acusando-a, entre outras coisas, de “anti-socialismo” ou de “revisionismo de direita”.

Em uma escalada de tensão, em 20 de junho, 16 mil soldados dos exércitos militares do Pacto de Varsóvia realizaram uma manifestação autorizada no território checoslovaco, e mantiveram-se até o final das manobras, apesar dos protestos do primeiro-ministro Černík.

A partir desse momento, desenvolveu-se no país um amplo protesto contra os aliados do Pacto de Varsóvia, que encontra sua síntese no “Manifesto das 2 mil palavras”, de 26 de junho, assinado por Vaculik, que fora expulso do partido após o Quarto Congresso dos Escritores de 1967, e subscrito por 70 pessoas, entre intelectuais, artistas e celebridades. O documento constitui uma clara crítica ao sistema autoritário que se desenvolveu na Checoslováquia a partir de 1948, e invoca, por meio de reivindicações muito específicas, a necessidade de um retorno à real democracia operária. No entanto, em uma análise posterior, o elemento mais interessante desse documento está dado, provavelmente, pelo alerta sobre a necessidade de defender o governo contra as ameaças externas, inclusive com as armas, se necessário.

Essa análise lúcida e o pedido explícito de preparar a defesa contra as invasões externas serão tragicamente rejeitados pelos dirigentes do PCCH. Apenas poucos dias depois, em 5 de julho, ficou, de fato, óbvio que a direção do PCCH não tinha nenhuma intenção de armar a classe operária e preparar a autodefesa: Smrkovský, presidente da Assembleia Nacional e líder do grupo reformista do PCCH, respondeu àquela carta com um documento no qual acusava Vaculik de “… romantismo, consistente com a falta de apreciação da distância que muitas vezes separa as intenções dos possíveis resultados[24].

8. A invasão soviética

A divisão no PCCH entre reformistas e conservadores e as pressões de Moscou sobre Dubček tornaram-se cada vez mais visíveis em julho de 1968. A última tentativa de pressão sobre o PCCH para que este desistisse da tentativa de democratização foi feito por Brezhnev em 29 de julho, no encontro, na cidade de Čierna nad Tisou, com Dubček, e no Congresso de Bratislava, em 3 de agosto, entre as forças que participavam no Pacto de Varsóvia. Na transcrição de uma posterior ligação telefônica, de 13 de agosto, com o próprio Brezhnev[25], Dubček, extremamente temeroso, tentou conseguir tempo sobre as demandas urgentes feitas por Brezhnev em Čierna nad Tisou, que exigiam eliminar as formações da oposição ao PCCH e, acima de tudo, normalizar o controle dos meios de comunicação, destituindo Pelikan e Císař de seus postos. Também exigiu a purga de Kriegel, o mais orgulhoso opositor da burocracia soviética, do Partido.

Mas o tempo já tinha expirado. Na noite de 20 para 21 de agosto, 165 mil soldados e 4.600 tanques[26] dos exércitos do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia. O ministro de Defesa checoslovaco deu ordens às tropas para permanecer nos quartéis. Às 5 da manhã, Dubček e outros cinco membros do CC do PCCH foram presos e transferidos, pela tarde, para a Ucrânia. O Presidente da República, Svoboda, que tinha sido alertado preventivamente sobre a invasão, fez um discurso na rádio na manhã do dia 21, no qual não proferiu nenhuma denúncia sobre a invasão e se limitou a conclamar a população a não opor resistência.

Denunciar a invasão soviética, reiterar a total confiança na direção e no secretário Dubček, então preso e, ao mesmo tempo, conclamar a população a se acalmar, foi o papel do Congresso Extraordinário do PCCH, que se reuniu no mesmo dia, clandestinamente, na fábrica de locomotivas CKD em Praga, com os operários e a milícia operária, acionada para defender o Congresso. As comunicações com a população foram mantidas por meio de um aparelho radiofônico clandestino, já que as comunicações oficiais eram agora controladas pelos soviéticos.

A resolução do Congresso extraordinário do PCCH, que denunciou a invasão soviética, complicou e colocou em xeque a estratégia do Kremlin. Era agora necessário, a fim de normalizar a situação e evitar uma insurreição popular, que fosse o próprio aparato de direção do PCCH que impusesse à população as exigências dos soviéticos. Para esse fim, uma delegação encabeçada pelo presidente Svoboda foi a Moscou, onde, junto aos dirigentes presos do PCCH, iniciou as negociações com os líderes soviéticos. Depois de alguns dias de negociações, a linha dura de Moscou foi aceita e assinada por Dubček e todos os outros dirigentes do Partido, com exceção de Kriegel: era a capitulação.

Em 26 de agosto, Dubček e os outros dirigentes retornaram a Praga de cabeça baixa. Os dirigentes incômodos do PCCH, incluídos Císař e Pelikan, foram destituídos e a censura reintroduzida por meio do pedido do governo aos principais editores, para bloquear as críticas aos soviéticos. Os dirigentes do PCCH voltaram para casa, mas os tanques soviéticos permaneceram no território. Como contará Umberto Eco, os soldados dos tanques explicaram a uma população incrédula e desconcertada que entraram em Praga para defendê-los do golpe de Estado fascista[27].

9. A resistência estudantil e operária e os conselhos de fábricas

A partir de 21 de agosto, portanto, em Praga, os tanques da União Soviética ameaçaram um país socialista, no qual não havia nenhum perigo real de subversão daquele sistema social nascido em seu interior. Esses tanques permaneceriam por muito tempo para simbolizar, no imaginário de todos, socialistas e não socialistas, que o soviético era um poder autoritário e despótico, obrigado a impor a ditadura da burocracia através do uso da força. Somados aos acontecimentos da Hungria em 1956, do ponto de vista da comunicação, provavelmente não há imagens mais eloquentes que possam testemunhar o fracasso do estalinismo. E à luz desses fatos ressoam as críticas a essa dramática degeneração burocrática do socialismo, que Trotsky descrevera com precisão na Revolução Traída[28] de 1936, e que pagou com sua própria vida.

Se o PCCH, para salvar a pele de seus dirigentes, traiu a esperança de uma reforma no sentido revolucionário do socialismo, as massas populares checoslovacas e particularmente a classe operária, no entanto, não se desmoralizou. Šik sempre foi visto com grande desconfiança ou abertamente contestado pelos operários[29]. Isto é, deu a impressão de que sua reforma econômica não estava indo numa direção verdadeiramente democrática, mas no sentido de um avanço tecnocrático no qual o partido, de cima, selecionaria os dirigentes mais preparados para a direção da indústria, sem que tais mudanças envolvessem os operários. Esta é a principal razão pela qual os operários muitas vezes desafiaram Šik nas portas das fábricas[30]. Mas essa não era a única preocupação dos operários, que também temiam que um grande avanço nas reformas tecnocráticas pudesse significar demissões nas fábricas. Em maio de 1968, as primeiras greves já tinham iniciado após a decisão do governo de estabelecer comissões para preparar uma “lei sobre a empresa socialista”. As greves da classe trabalhadora desafiaram o poder e a incapacidade dos dirigentes das empresas[31]. Em todas as principais fábricas, foram desenvolvidas federações sindicais por ramo, novas organizações sindicais e coordenações entre sindicatos. A discussão sobre como a crise econômica deveria ser abordada tornou-se o assunto de uma classe operária sob o controle dos sindicatos burocratizados por longo tempo; a produção industrial voltou a crescer, demonstrando que a passividade da classe operária, consequência do modelo burocrático, tinha sido um dos elementos desencadearam a crise.

Na onda do processo de democratização, em junho de 1968, nasceram 18 conselhos de fábrica no país, mas, entre outubro e dezembro de 1968, durante a ocupação soviética, foram criados outros 260 conselhos de fábrica[32], apesar da tentativa de Dubček, agora reduzido a um fantoche a serviço dos soviéticos, de dificultar seu desenvolvimento. Em novembro de 1968, numa tentativa de limitar o poder dos comitês de fábrica, Dubček afirmará: “A crítica justificada ao burocratismo não pode conduzir a ataques simplistas e caricaturas contra a direção da empresa, contra o aparato econômico e estatal. A justa reivindicação de crescimento da participação dos trabalhadores na gestão não deve assumir a forma de uma falsa democracia na produção, em detrimento da inevitável disciplina do trabalho[33].

Na renovada fermentação da classe operária, entre agosto de 1968 e janeiro de 1969, desenvolve-se ao mesmo tempo a fase mais quente da resistência das massas populares à normalização soviética. Durante esta fase, Dubček, sob a pressão constante da União Soviética, desempenha o papel do bombeiro, amortecendo gradualmente a veemência da luta das massas com a mordida e o assopro, isto é, atuando por um lado com a repressão policial e, pelo outro, simulando pequenas concessões.

Para evitar a explosão das massas, o governo é obrigado a divulgar, em setembro, a notícia de que os soviéticos não prenderiam ninguém. Sob a pressão soviética, em 18 de outubro, a Assembleia Nacional aprovou um tratado que permitia a permanência das tropas soviéticas na Checoslováquia, desencadeando uma grande reação popular, dirigida em particular pelo movimento estudantil, que se opõe, cada vez mais massivamente, à ação do governo. Em 28 de outubro, 4 mil manifestantes enfrentam a Dubček e Svoboda em frente ao Teatro Nacional, no 50° aniversário do nascimento da República Checoslovaca. A manifestação foi reprimida pelos cassetetes da polícia checoslovaca, que, sob as ordens de Dubček, atuou exatamente como nos tempos de Novotný. Em resumo, o apoio popular a Dubček enfraquece. Em uma escalada de manifestações de massas, cada vez mais participativas, os confrontos de rua se repetem em 7 de novembro, por ocasião das celebrações da Revolução de Outubro, com centenas de prisões.

Para tentar acalmar a insurreição, Dubček recorre aos estudantes e os operários, para pedir-lhes que apoiem a permanência soviética. Para cada movimento do PCCH no sentido de satisfazer as demandas dos soviéticos, os estudantes e os operários reagem com manifestações de protesto que deixam latente a distância do governo em relação às massas populares. A participação da classe operária em greves e protestos constitui, para o governo, o elemento de maior preocupação. Particularmente desde novembro, os metalúrgicos, liderados pelos sindicatos reunidos na RTUM [Revolutionary Trade Union], aumentaram o nível de mobilização, com mais greves e mais compactas, e se uniram aos protestos dos estudantes, obrigando o governo a assinar acordos para manter os níveis de salários e de preços. Após o expurgo de Smrkovský do Partido, uma nova onda de manifestações de trabalhadores e estudantes exigiu sua reintegração. Em 4 de janeiro, o sindicato dos metalúrgicos, com um milhão de filiados, tomou as ruas. O primeiro-ministro Cernik reitera a ameaça da intervenção soviética para sufocar o protesto.

Em janeiro de 1969, uma primeira reunião nacional dos conselhos de trabalhadores e dos comitês preparatórios, que representavam 190 empresas e 890 mil trabalhadores, elabora um projeto de “lei sobre a empresa socialista”. Mas o projeto é alterado consideravelmente pelo governo, que retorna ao modelo de cogestão, com 1/3 de cadeiras dos conselhos para os trabalhadores eleitos e direito de veto ao Estado e aos dirigentes de empresa[34]. No entanto, o trabalho dos conselhos de fábrica não para: 500 conselhos de fábrica estarão representados no congresso sindical de março de 1969 e seu número aumentará até junho de 1969.

O momento mais quente da resistência foi em janeiro de 1969, quando Jan Palach, um estudante de filosofia, tocou fogo em si mesmo em sinal de protesto, reivindicando com esse gesto extremo a necessidade de uma greve geral a todo custo para derrubar o governo. Em seu funeral, uma multidão de 800 mil pessoas[35] indicará o potencial revolucionário da resistência de Praga. Nos dias seguintes, ocorrem confrontos com a polícia e prisões em massa. Outros estudantes se sacrificarão pela causa da resistência em Praga, mas a televisão, agora em mãos dos conservadores, limitará a divulgação da notícia.

Os confrontos continuarão até março, até a manifestação, em Praga, de mais de 4 mil pessoas, durante a qual um escritório da Aeroflot, a linha aérea soviética, é destruído. Na verdade, essa ação foi premeditada pelo serviço secreto soviético, que a utilizou para ameaçar a população com novas represálias[36]. Dubček, agora incapaz de obter aceitação de população para as imposições dos soviéticos, será removido de seu cargo e substituído por Husák, em abril.

Nos primeiros cem dias em seu novo papel, Husák cumpriu todos os pedidos soviéticos, a renovação total da censura, a expulsão dos componentes mais revolucionários do partido, as expulsões coletivas e as demissões de jornalistas. As organizações nascidas durante a resistência foram declaradas ilegais. Em 8 de maio, o regime decidiu erradicar o nascente poder “livre” da classe operária: os conselhos operários nas fábricas foram declarados ilegais. Por ocasião do primeiro aniversário da invasão militar, em 21 de agosto de 1969, o povo checoslovaco decidiu voltar às ruas. Mas a repressão foi duríssima. A polícia disparou contra a multidão, dois jovens foram mortos em Praga e dois em Brno. Na capital, a polícia utilizou cães pastores alemães para perseguir os manifestantes, enquanto a população gritava pelas janelas “eles são como a Gestapo[37].

10. Conclusões

O que faltou, na Primavera de Praga, para permitir à sociedade checoslovaca fazer a transição para um regime socialista consumado, foi o partido revolucionário. A direção reformista do PCCH, que crescera em grande medida dentro do Partido Comunista de Gottwald e de Novotný, nunca se propôs abertamente a questionar a estrutura burocrática do Estado. Em vez disso, essa direção reformista tentou conter os defeitos desse sistema, eliminar os excessos autoritários e a falta de liberdade que derivavam da existência desse aparato, mas nunca se propôs desmantelar sua existência.

Na análise da degeneração burocrática na Rússia estalinista, Trotsky exaltava as medidas propostas por Lenin, para que, no Estado socialista, a burocracia desaparecesse gradualmente e não exercesse mais um papel opressor sobre o proletariado: “Após a queda das classes exploradoras – o proletariado romperá a velha máquina burocrática e formará seu próprio aparato de operários e empregados, tomando medidas estudadas em detalhe por Marx e Engels, para evitar que se convertam em burocratas: 1) elegibilidade e revogabilidade em qualquer momento; 2) remuneração não superior ao salário do operário; 3) passagem imediata a um estado de coisas em que todos se ocupem do controle e da supervisão, em que todos serão momentaneamente burocráticos, mas ninguém poderá se burocratizar[38]. A estas propostas, Trotsky também acrescentou o elemento fundamental da necessidade da extensão da revolução a nível internacional: dada a impossibilidade de construir o “socialismo em um só país”, a única barreira contra a burocratização é, em última instância, a revolução internacional, que é precisamente o que se opõe ao estalinismo tanto teórica como praticamente, pelo menos desde 1924.

Uma crítica deste tipo ao sistema burocrático e à concepção contrarrevolucionaria estalinista nunca foi mencionada pelos líderes reformistas do PCCH que, pelo contrário, não tinham intenção de transformar as funções de controle e vigilância da burocracia em papéis eventuais não privilegiados nem construir um movimento internacional pela expansão da revolução. E quando, a partir do movimento dos escritores, Vaculik apresentou o problema da democracia operária, os dirigentes do Partido o acusaram de romantismo. De maneira extremamente contraditória, o integrante reformista do PCCH tentou limitar os fracassos e os excessos do Estado burocrático sem levar a cabo uma batalha frontal com a burocracia. A democracia operária, por meio da criação dos comitês de fábrica, foi tolerada, mas não impulsionada pelo Partido Comunista de Dubček: a tendência a não renunciar à direção do processo produtivo para dá-la à classe operária, mas manejá-la burocraticamente, por meio de um sistema misto de cogestão, com poder de veto por parte do Estado, indicava claramente a tendência da burocracia a querer sobreviver à crise que ela mesma gerou. E, no auge da resistência das massas, no início de 1969, quando uma coordenação dos conselhos de fábrica representativo de um milhão ou mais operários foi finalmente reconstruída[39], o que poderia ter incidido de maneira diferente no resultado da resistência checoslovaca, a classe operária encontrou, em vez do partido revolucionário para dirigi-la, os pedaços do partido reformista para neutralizá-la.

Notas:

[1] PACINI, G. (Org.). La svolta di Praga. Raccolta di documenti, Samonà e Savelli, 1968, p. 26.

[2] Idem, p. 27.

[3] MOSCATO, A. La tragedia di Praga 1968. Disponível em: <http://antoniomoscato.altervista.org/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=73&Itemid=62>

[4] PACINI, G. op. cit., p. 27.

[5] Idem, pp. 37-38.

[6] MOSCATO, A. op. cit.

[7] PACINI, G. op. cit., p. 30.

[8] Idem, p. 31.

[9] Idem, p. 210.

[10] MANDEL, E. The social, economic and political background of the Czechoslovak crisis, 1969. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/mandel/1969/xx/czech.html>. Tradução realizada pelo autor do artigo.

[11] MANDEL, E. op. cit.

[12] Ibidem.

[13] MOSCATO, A. op. cit., p. 3.

[14] PICHECA, G. Cecoslovacchia 1968. Cronaca politica ed interpretazioni a confronto. Università degli studi di Pisa, Interfacoltà di Scienze per la Pace, corso di Laurea Specialistica in Scienze per la Pace: cooperazione allo sviluppo, mediazione e trasformazione dei conflitti, anno accademico 2009-2010, p. 12. Disponível em: <https://etd.adm.unipi.it/t/etd-06232010-090239/>.

[15] PACINI, G. op. cit., p. 32.

[16] PICHECA, G. op. cit., p. 13.

[17] Idem, p. 27.

[18] Praga, agosto 1968. Un documento audiovisivo dell’archivio Jiri Pelikan. Archivio storico della Camera dei deputati, p. 7. Disponível em: <http://archivio.camera.it/patrimonio/archivi_privati/guida:ITCD_00400_00009>.

[19] PICHECA, G., op. cit., p. 45.

[20] FISERA, Vladimir Claude. 1968: la primavera e l’autunno autogestionari di Praga. In: Voce libertária, n. 5, maio 2008, p. 45.

[21] Praga, agosto 1968. Un documento audiovisivo dell’archivio Jiri Pelikan, p. 232.

[22] MANDEL, E. op. cit.

[23] PICHECA, G. op. cit., p. 51.

[24] SMRKOVSKÝ, Josef. Le mille parole. In: Maledetta Primavera: il 1968 a Praga, número monografico della rivista eSamizdat, n. 2-3, 2009, p. 376. Disponível em: <http://www.esamizdat.it/rivista/2009/2-3/index.htm>.

[25] La lettera di Varsavia. In: Maledetta Primavera: il 1968 a Praga, p. 393.

[26] PICHECA, G. op. cit., p. 86.

[27] RASPONI, L. Il’68 in Cecoslovacchia: l’inverno sovietico e la Primavera di Praga”. Disponível em: <http://www.discorsivo.it/magazine/2013/03/26/il-68-in-cecoslovacchia-linverno-sovietico-e-la-primavera-di-praga/>

[28] TROTSKY, L. La rivoluzione tradita [A revolução traída], 1936, Ac editoriale, 2007.

[29] MOSCATO, A. op. cit., p. 29.

[30] Ibidem.

[31] FISERA, Vladimir Claude. op. cit., p. 15.

[32] Ibidem.

[33] Ibidem.

[34] Idem, p. 16.

[35] PICHECA, G. op. cit., p. 148.

[36] Idem, p. 149.

[37] Idem, p. 151.

[38] TROTSKY, L. op. cit., p. 123.

[39] FISERA, Vladimir Claude. op. cit., p.16.

Tradução: Rosangela Botelho

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