sáb abr 13, 2024
sábado, abril 13, 2024

Pan-africanismo e a perspectiva revolucionária

O livro “Revolução Africana, uma antologia do pensamento marxista”, organizado por Jones Manoel, busca apresentar importantes revolucionários e lideranças do movimento de libertação nacional da África ligados ao movimento pan-africanista como sendo socialistas e marxistas.

Por: Américo Gomes

Neste artigo, queremos nos contrapor a esta tese, discutindo que, apesar das muitas proximidades que possam ser estabelecidas entre o pan-africanismo e o marxismo (especialmente no que se refere a como os socialistas revolucionários encaram o combate ao racismo e a chamada “questão africana”), há importantes diferenças, particularmente em temas essenciais, como a independência de classe e a estratégia necessária para a construção de uma sociedade livre do racismo ou quaisquer outras formas de opressão.

Diferenças que não podem ser tratadas de forma leviana, até mesmo porque o próprio pan-africanismo não é um “bloco” homogêneo, tendo se ramificado em distintas vertentes desde que surgiu na esteira das lutas anti-imperialistas no continente africano, na primeira metade do século 20, e começou a ganhar o mundo através de pensadores negros como o norte-americano W.E.B. Du Bois (1868 – 1963) e o jamaicano Marcus Garvey (1887 – 1940).

No decorrer do século, versões ou correntes do pan-africanismo também se mesclaram com outras ideologias e práticas políticas no interior do movimento negro, várias delas reformistas ou nacionalistas, mas também socialistas de diferentes matizes. A questão central de nossa polêmica com Jones Manoel, no entanto, é o fato do autor ter um objetivo bastante definido: reescrever a História, colocando um sinal de igual entre pan-africanismo e stalinismo (apresentado como a verdadeira expressão do marxismo-leninismo).

A serviço do que está a aproximação do pan-africanismo e o marxismo?

Em primeiro lugar, há diferenças entre os dirigentes que são relacionados no livro, tanto do ponto de vista teórico quanto político. Mas, também, do ponto de vista prático e concreto. Por exemplo, Kwane Nkrumah (1909 – 1972), primeiro-ministro de Gana, entre 1957 e 1960, e presidente do país de 1960 a 1966, foi um dos fundadores do pan-africanismo e teve uma formação socialista, assim como o agrônomo e teórico marxista Amílcar Cabral (Guiné-Bissau, 1924 – 1973).

No entanto, são exemplos bastante diferentes das formações diretamente stalinistas do angolano Agostinho Neto (1922 – 1979) – que dirigiu o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), na luta pela independência, e presidiu o país entre 1975 e 1979 –, o moçambicano Samora Machel (1933 – 1986), líder da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e presidente do país entre 1986, e, ainda mais, de Thomas Sankara (1949 – 1987), capitão do exército e paraquedista, que foi o primeiro presidente de Burkina Faso.

Vale destacar, também, a ausência de alguns importantes pan-africanistas, como o jornalista e escritor natural de Trinidad Tobago, Georg Padmore (1903 – 1959), principalmente porque este era o que tinha a formação marxista mais sólida. Uma ausência provavelmente causada pelo fato de Padmore ter rompido com stalinismo, em 1933, exatamente por criticar a política da burocracia soviética em relação à luta pela descolonização na África.

Além disso, é um equívoco colocar um sinal de igual entre o pan-africanismo e o marxismo-leninismo, pois entre eles existem diferenças políticas e programáticas. Existem, com certeza, pontos de contato, mas a distância entre as duas correntes de pensamento é bastante considerável.

Quando neo-estalinistas, como Jonas Manoel e alguns intelectuais, tentam demonstrar o contrário, eles criam um amálgama de distintos objetivos, que se combinam e complementam: a) confundir os trabalhadores e trabalhadoras, de maneira geral, e jovens negros e negras, em particular, ocultando a política traidora que o stalinismo teve para a luta dos povos africanos pela liberdade; b) dar respaldo à política de conciliação de classes com as chamadas burguesias “progressistas”, adotada no período de descolonização, na construção de governos policlassistas e c) desviar o proletariado e setores mais explorados da sociedade de suas tarefas centrais na luta contra o racismo e a opressão, que é construir a unidade e a independência de nossa classe e construir governos da classe trabalhadora.

Uma posição similar à defendida por Abdias Nascimento em sua obra, que corretamente combate a crença no mito da democracia racial, mas, de maneira geral, defende que o panafricanismo “é a teoria e prática uma de África unida, livre da hegemonia europeia” ou da “unidade essencial do mundo africano” em uma aliança concreta e progressista, como declarou, quando era senador pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), num pronunciamento feito em 5 de junho de 1997.

Policlassismo: o ponto de encontro entre o pan-africanismo e o identitarismo

Sem dúvida é muito importante combater as posições identitárias, que defendem um liberalismo pós-moderno, através de uma falsa radicalidade, com ideias essencialistas de identidade que defendem uma hiper centralidade epistemológica teórica, ontológica, no que se refere à própria essência; e política à questão racial para, em última instância, também defenderem um Estado racial policlassista, como os Estados negros, na África.

Não reivindicam o materialismo histórico dialético e sua interrelação entre raça e classe. Desse modo, a nacionalidade é definida pela construção da identidade racial e pelo racismo, o que retira totalmente o elemento da luta de classes interna como elemento fundamental na história e desenvolvimento destas nações.

Mas é igualmente importante demonstrar que as posições pan-africanistas também são policlassistas, descartam a centralidade da classe operária como sujeito social da revolução e, consequentemente, não defendem, em seu programa, a ditadura do proletariado.

Marxismo e pan-africanismo: proximidades táticas e diferenças estratégicas

Certamente há pontos de contato e confluências entre o marxismo e o pan-africanismo, como a condenação ao racismo e à escravidão negra; a necessidade de libertar a África do colonialismo imperialista e de construir autogovernos africanos nas nações africanas, com governos negros.

Mas, para os marxistas estes governos deveriam ser constituídos por membros da classe trabalhadora negra, na expressão concreta da ditadura do proletariado. Já os pan-africanistas, ao trabalharem o conceito de uma comunidade própria, pan-negra, sintetizada na noção “uma raça, um povo”, não utilizam o critério de delimitação de classe e, assim, diluem as diferenças e a própria luta de classes.

Estas elaborações se refletiram nos Congressos Pan-africanos, que definiram as diretrizes do movimento organizado. O primeiro deles, que William (W.E.B.) Du Bois como seu principal dirigente, ocorreu em Paris, em 1919, com apoio de Georges Clemenceau, presidente do governo francês, um dos impulsionadores da guerra civil contra a nascente República Soviética.

Suas deliberações foram progressivas no sentido de se oporem ao racismo e levantarem a reivindicação pela autodeterminação das colônias. Mas suas deliberações se pautavam por exigências à Sociedade das Nações, a ONU da época. Um exemplo das consequências disto foi a defesa de que as antigas colônias alemãs fossem colocadas sob tutela internacional, num processo supervisionado pelas grandes potências, com o objetivo de criar o “mundo negro civilizado“. Outro exemplo foi a defesa da autonomia das colônias britânicas, no marco da Commonwealth (Comunidade Britânica das Nações).

Em outras palavras, os pan-africanistas subordinavam a luta anticolonial à aprovação dos países imperialistas, uma orientação geral que seguiu até o IV Congresso.

De maneira geral, os pan-africanistas acreditam que as ideias marxistas são unilaterais com relação às classes e com relação à concepção materialista, pois, na visão deles, os processos de independência deveriam buscar satisfazer, também, aspectos morais, culturais e pessoais, defendendo que, de maneira geral, há alguma forma de unidade ou de propósito comum entre os povos da África e da Diáspora Africana. Muitos subscreviam também a política de não violência de Gandhi.

Debates teóricos sobre o “socialismo africano”

Amílcar Cabral, Nkrumah e Frantz Fanon (1925 – 1961) – psiquiatra e teórico marxista, originário da Martinica, que atuou na Revolução Argelina – foram, sem dúvidas, valorosos dirigentes nacionalistas negros, que defenderam as ideias pan-africanas e buscavam uma ligação com o marxismo, tendo importantes diferenças conceituais com este.

Uma das principais diferenças girava em torno das teorias que criaram sobre o “socialismo africano” ou “socialismo com valores africanos”, que seria igualitarista e humanista, partindo, segundo eles, das características concretas determinadas pela revolução negra no continente, mas que desembocava na proposta de construir governos “policlassistas” após a independência colonial, nunca propondo instalar em seus países autênticas ditaduras do proletariado

Fanon, no entanto, hierarquizou, de maneira correta, a luta anti-imperialista, entendendo o racismo como algo característico das sociedades coloniais e como parte essencial do processo de dominação entre povos conquistadores e conquistados. Em “Condenados da Terra” (1961), por exemplo, expressou essas posições, rechaçando as negociações e os compromissos e acordos assumidos entre as metrópoles europeias e os movimentos nacionais africanos para controlar o processo de libertação, afirmando que estas não passavam de “falsas descolonizações”.

Mas, Fanon também defendia a “nacionalização do marxismo” (similar ao que, para ele, foi feito pelos chineses e vietnamitas), a partir das questões concretas africanas, defendendo que a revolução neste continente não passaria pelos proletários, mas, sim, pela ação revolucionária dos camponeses e do lúmpen proletariado, os únicos que, de fato, não tinham nada a perder, a não ser seus grilhões, acreditando que a classe operaria, mesmo nos países coloniais do continente africano, se constituíam uma elite privilegiada.

Ao mesmo tempo, Fanon dava um importante peso para a pequena burguesia, defendendo que esta poderia cumprir um papel de vanguarda consciente, formando um partido nacionalista revolucionário, que levaria a descolonização a cabo.

O autor, inclusive, defendia que não haveria outra saída, apesar de alertar para o possível “aburguesamento desta camada social” e que esta iria formar uma nova elite burguesa, subdesenvolvida, neocolonial, sem capacidade ou desejo de construir uma nação soberana e socialista. Como consequência, como todos os demais pan-africanistas, apresentava como objetivo imediato para os países africanos a constituição de governos policlassistas, de Frente Popular.

Ainda no que se refere a Fanon, vale destacar que ele, corretamente, pautava a necessidade da violência revolucionária para levar a cabo os processos revolucionários e conquistar a independência nacional na África. Neste sentido, se diferenciava da teoria de “coexistência pacífica”, defendida pela burocracia soviética no pós-Segunda Guerra Mundial, sendo extremamente progressivo, particularmente frente à posição da direção do Partido Comunista Francês, que se recusava, inicialmente, a reconhecer o direito de luta pela independência da Argélia, condenando os ataques da Frente Nacional de Libertação e, inclusive, dando plenos poderes, em março de 1956, ao governo do Primeiro-Ministro da França, Guy Mollet, para continuar a guerra.

Amílcar Cabral também visou criar uma teoria revolucionária de libertação baseada no que seria a experiência concreta africana, baseada em uma “diversificação e atualização do marxismo”, como escreveu em “A Arma da Teoria” (1966). Seu ponto de partida era reivindicar que o verdadeiro motor da História eram as forças produtivas, mas que a principal contradição dos povos periféricos se manifestava em suas relações com o imperialismo.

No entanto, neste processo, o dirigente da Guiné-Bissau dava um papel de protagonismo aos camponeses e trabalhadores urbanos, mas sob a direção dos membros da pequena burguesia, propondo a eles o “suicídio de classe”, em defesa dos interesses dos dominados. Em “Libertação nacional e cultura” (1970) Cabral também defende que as culturas populares africanas seriam as verdadeiras depositárias da resistência política contra o opressor e, portanto, cumpririam um papel fundamental no processo libertador. Mas, para isso os revolucionários teriam que se libertar da dominação simbólica e psicológica do eurocentrismo e do racismo, em um processo de “reafricanização” das culturas populares do continente.

Nkrumah, por sua vez, também se reivindicava marxista, sendo fortemente influenciado por George Padmore, e tentou construir uma nova ideologia pan-africanista, baseada no “socialismo com valores africanos” (igualitaristas e humanistas), com o Estado como o centro da vida social e econômica do país. Este processo, ainda segundo ele, culminaria na unificação das nações africanas em uma grande Federação e União. No entanto, ele também sempre relevou o papel das burguesias nacionais e suas relações com o imperialismo. Seu pensamento foi condensado em “A África precisa se unir” (1963) e “Neocolonialismo: fase superior do imperialismo” (1965).

George Padmore: um expoente contraditório do pan-africanismo

Na década de 1920, vários militantes e ativistas negros, africanos e da Diáspora, participaram dos cursos de formação marxista na ex-URSS, como o jornalista senegalense Tiemoko Garan Kouyaté (1902 – 1942, um dos primeiros africanos a aderir à Internacional Comunista, tendo sido expulso pelo stalinismo nos expurgos do final dos anos 1920), George Padmore, Claude McKay (1889 – 1948, escritor e poeta jamaicano, expoente da Renascença do Harlem, nos anos 1920, que também se distanciou do stalinismo, nos 1930) e Jomo Kenyatta (1894 – 1978, considerado fundador da nação queniana e presidente do país, entre 1964 e 1978).

Todos eles foram influenciados pelas propostas políticas de Lênin de transformar as lutas de libertação nacional em uma “alavanca” para a revolução proletária mundial em um período em que a ex-URSS era vista com admiração e apoiava (inclusive materialmente) a organização dos movimentos de libertação, sendo considerada por muitos líderes africanos como um modelo de Estado multinacional, federalizado, como aquele que se sonhavam construir na África.

George Padmore refletia estas posições em seus livros e artigos, assim como outras obras da primeira metade do século 20 também refletiram esta aproximação com a metodologia marxista, como “A reconstrução negra na América” (W.E.B. Du Bois, 1935), “Os Jacobinos Negros” (C.L.R. James, 1938) e “O negro e o caribe” (Eric Williams, 1944).

Padmore, contudo, merece um destaque especial, pois se tornou um dos principais organizadores do movimento anticolonialista na África, fazendo a conexão entre organizações e ativistas do continente com a Europa e os EUA; sendo, por isso, chamado como um dos pais do pan-africanismo. Ele também foi um dos primeiros a escrever sobre a relação entre raça e classe, nos entre-guerras, a partir de uma perspectiva internacionalista, mostrando a centralidade e contemporaneidade da classificação racial para as dinâmicas do capitalismo. Tendo sido, ainda, mentor e conselheiro do governo de Kwane Nkrumah, a quem chamou de “Lenin da África”.

Padmore rompeu com a III Internacional e o stalinismo, em 1934, por conta da política de Frente Única Antifascista e a defesa, por Stalin, da aliança com os países imperialistas, vistos como “progressistas”. Políticas aplicadas, por exemplo, em relação à França e à Inglaterra, defendendo que os inimigos dos povos coloniais não eram os imperialistas, mas, sim, o movimento fascista. O que, na prática, significou abandonar a luta colonial e priorizar seus aliados europeus.

Rebelando-se contra esta traição, Padmore manteve a defesa da luta contra todos os imperialismos que tinham uma política colonial para a África e, talvez por isso, não tenha sido incluído no livro de Jones Manoel.

Fruto desta influência na política pan-africanista o V Congresso Pan-africano, realizado em Manchester, em 1945, significou, em muitos aspectos, uma ruptura em relação aos anteriores. Primeiro, porque, nele, os africanos foram majoritários, contando com a participação de figuras fundamentais, como Azikiwe Nandi (primeiro presidente da Nigéria, entre 1963 e 1966), Jomo Kenyatta e Kwame Nkrumah. Além disso, o Congresso também manteve o centro de suas deliberações no marco da luta pela descolonização, o que incluía a libertação do colonialismo e a unidade contra o neocolonialismo.

No entanto, Padmore, depois da ruptura com o stalinismo, lutou para desvincular o movimento de libertação da África do comunismo, denunciando que tal proximidade era um argumento imperialista para desacreditar os nacionalistas africanos e tirar deles a simpatia e o apoio dos elementos anticoloniais e setores “progressistas”.

Além disso, afirmando basear-se na elaboração de Lênin sobre a “aristocracia operaria” e o “aburguesamento” real de um estrato da classe trabalhadora, fomentado pelos partidos reformistas e os sindicatos, concluiu que a “unidade de raça, (era) oposta à unidade de classe”. Com isso, passou a negar o papel da classe operária como sujeito de qualquer transformação social, acreditando que os trabalhadores brancos se divorciaram dos interesses dos trabalhadores africanos “à custa dos quais engordam”.

No próximo artigo discutiremos os reflexos destes debates em situações concretas como Angola, Moçambique, Gana, etc., e a necessidade de uma revolução social no continente africano

 

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares