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quinta-feira, março 28, 2024

Outubro de 2019: 102 anos da Revolução Russa

Aos 102 anos da Revolução Russa, reproduzimos o artigo de Martín Hernandez, escrito em 2017

Em 1917, no dia seguinte ao triunfo da Revolução Russa, Lenin, seu grande dirigente, começou seu discurso no Congresso Pan-Russo dos Sovietes com as seguintes palavras: “Passemos agora à edificação da ordem socialista”.

Por: Martín Hernández

Setenta anos depois, em 1987, já não restava nada daquela ordem socialista. A burguesia havia recuperado o poder e, com isso, o capitalismo começava a ser restaurado.

Essa realidade provocou e continua provocando – como não poderia ser – enormes dúvidas na esquerda de todo o mundo, pois os fatos pareciam demonstrar o fracasso do socialismo ou, no mínimo, do caminho adotado pelos nossos mestres para chegar a el

I – O direito à vitória do socialismo

Nós, marxistas, elaboramos nossas opiniões a partir da análise da realidade. Nesse caso, não poderia ser diferente. A restauração do capitalismo na Rússia e no resto dos ex-estados operários nos obrigam a tirar conclusões, mas, para fazê-lo, é necessário estudar cuidadosamente o que realmente ocorreu na Rússia, o berço da maior revolução socialista da história.

A Revolução Russa iniciou o caminho em direção ao socialismo. Isso é um fato. Esse caminho não culminou no socialismo. Isso também é um fato. Mas não basta apontar os fatos. Temos de explicá-los. Por que esse caminho não levou ao socialismo? Foi porque o caminho estava mal traçado ou foi porque, ainda que bem traçado, foi interrompido?

Essas duas perguntas são decisivas não só para entender o passado, mas também para atuar em direção ao futuro, porque se o caminho fosse mal traçado, nós que aspiramos a conquistar o socialismo estaremos obrigados a buscar novos caminhos. Pelo contrário, se o caminho estava bem traçado e foi interrompido, trata-se de remover os obstáculos que o interromperam para retomá-lo. 

O socialismo, um velho ideal

Muitas vezes, considera-se que a ideia de uma sociedade socialista ou comunista (que, apesar de serem ideias diferentes, no imaginário popular são sinônimos) corresponde a Marx e a Engels. Mas isso não é assim.

Esse ideal é muito antigo. Já Platão, 380 a.C., referia-se a ele em sua obra A República. Mais ainda, possivelmente foi Platão o primeiro a falar de uma sociedade “comunista”.

Por outro lado, a ideia do comunismo se desenvolveu entre os primeiros cristãos e teve, por meio das várias centenas de anos, diferentes expressões e formulações, como foram as de Tomás Moro que, em seu livro A utopia, escrito no distante 1516, afirmava: “Me parece que além de onde rege a propriedade privada, onde o dinheiro é a medida de todas as coisas, é muito difícil que se chegue a estabelecer um regime político fundado na justiça e na prosperidade”.

No entanto, como corrente de opinião claramente socialista (é importante lembrar que, por exemplo, Platão defendia um comunismo com escravos), possivelmente a que alcançou mais desenvolvimento foi a que ocorreu no final do século 18 e início do século 19, com os chamados socialistas utópicos: Charles Fourier, Robert Owen, Saint-Simon, Etienne Cabert, Pierre Leroux e o grande divulgador dessas ideias, Victor de Considerant.

Esses autores, a maioria deles provenientes das classes altas da sociedade, construíram uma poderosa corrente de opinião que, tendo nascido na Europa, se espalhou para outros continentes. Assim, na América Latina, mais particularmente na Argentina, ganhou peso na intelectualidade, sendo seu máximo exponente Esteban Echeverría (1805-1851) autor do livro O Dogma Socialista.

Os socialistas utópicos acreditavam que suas ideias sobre uma sociedade igualitária, por serem muito belas (e realmente eram), acabariam sendo aceitas por toda a sociedade. Não só pelos explorados, mas também pelos exploradores. Aí residia justamente o caráter utópico das mesmas.

O papel de Marx e Engels não foi, portanto, ter elaborado uma teoria sobre a necessidade de uma sociedade socialista, mas ter fundamentado, cientificamente, o porquê dessa necessidade e ter elaborado, também cientificamente, o caminho de sua realização.

Marx e Engels, a partir de um estudo profundo da sociedade capitalista, chegaram à conclusão de que o capitalismo, num processo irreversível, havia se convertido numa trava cada vez maior para o desenvolvimento da humanidade e que só a classe operária, tomando o poder, destruindo o Estado capitalista e construindo seu próprio Estado, poderia iniciar o caminho de sua libertação para, a partir daí, libertar o conjunto da humanidade de todas as travas que o capitalismo impõe. Dessa forma, o caminho em direção ao socialismo, como primeira fase de uma sociedade comunista, estava traçado.

O projeto de Marx e Engels no campo das ideias demonstrou-se vitorioso, como ficou provado quando o melhor da classe operária, assim como muitos intelectuais honestos, construiu, com base no ideário de Marx e Engels, a II Internacional, que agrupou centenas de milhares de militantes em todo o mundo.

Mas nem Marx nem Engels conseguiram ver suas ideias concretizadas. Essa tarefa coube ao Partido Bolchevique.

 A questão do poder da classe operária

A classe operária russa, dirigida pelo Partido Bolchevique, enfrentou o desafio de testar na prática as ideias de Marx e Engels.

A Comuna de Paris já havia demonstrado, na vida de Marx e Engels, que os operários podiam tomar o poder. Mas não conseguiram mantê-lo. Depois de dois meses, os comunardos foram massacrados pela burguesia.

Os bolcheviques conseguiriam, à frente da classe operária, superar a experiência da Comuna e se manterem no poder? Esse era o primeiro desafio, e não era fácil de cumprir.

A burguesia opinava que os bolcheviques não podiam superar esse primeiro desafio. Por isso, a imprensa burguesa, em outubro de 1917, se perguntava uma e outra vez: “Quantos dias os bolcheviques irão se manter no poder?” E a maioria da própria direção do Partido Bolchevique se fazia a mesma pergunta. John Reed, em seu famoso livro sobre a Revolução Russa, Dez dias que abalaram o mundo, apresenta um testemunho sobre essa realidade: “Com exceção de Lenin e Trotsky, os operários de Petrogrado e os soldados, ninguém acreditava que os bolcheviques poderiam se manter por mais de três dias.”[1]

No entanto, passavam os dias, as semanas e os meses, e os bolcheviques, à frente da classe operária, seguiam no poder.

A partir de então, a burguesia russa e do resto do mundo deixou de se fazer perguntas para passar à ação direta, com o objetivo de repetir a experiência (massacre) da Comuna de Paris. Mas não conseguiram. Quatorze exércitos invadiram a Rússia para cumprir esse objetivo, os quais, a posteriori, se aliaram aos capitalistas russos para levar adiante uma guerra civil.

Para defender-se, o novo Estado se viu obrigado a construir um exército e, para fazer isso, enfrentou um grande problema. No Partido Bolchevique, não havia generais, nem coronéis, nem nenhum tipo de especialista militar. Como fazer então para construir um exército capaz de derrotar os exércitos inimigos? Quem colocar à frente dessa tarefa?

O Partido Bolchevique nomeou para essa tarefa um dirigente político, Leon Trotsky, que nunca havia usado uma arma em sua vida. Construir um exército parecia uma tarefa impossível. Ganhar a guerra, muito mais. No entanto, se os milagres não existem, uma revolução com a classe operária à sua frente consegue fazer milagres. Trotsky organizou o Exército Vermelho com mais de cinco milhões de pessoas, tornou-se um dos maiores especialistas militares do mundo e levou esse exército à vitória.

O segundo e grande desafio

Com a vitória na guerra civil, a classe operária, com sua direção revolucionária, superou a experiência da Comuna de Paris, o que demonstrou que Marx e Engels tinham razão: a classe operária poderia assumir o poder. Entretanto, sendo este um desafio importante, não era o maior. O desafio mais importante era saber se a classe operária poderia estar à frente do Estado sem a burguesia, porque isso nunca havia ocorrido. Mais importante ainda era saber se a classe operária, estando à frente do Estado, seria capaz de fazer o que a burguesia havia se demonstrado incapaz de realizar: provocar um desenvolvimento superior na economia e na cultura. E a classe operária russa, a partir da tomada do poder, conseguiu.

Muito pouco tempo depois do triunfo da revolução, alguns números começaram a surpreender. Antes do triunfo da revolução, havia na Rússia 32 mil escolas e 10 mil bibliotecas. Um ano e meio depois havia 60 mil escolas e 100 mil bibliotecas.

A Rússia, um país extremamente atrasado, com 80% de sua população camponesa e 78% de analfabetos, precisava se converter numa potência em poucas décadas. Dessa forma, o país dos analfabetos se transformaria num dos poucos países do mundo sem analfabetos. É necessário destacar que se falavam 147 línguas diferentes no país, muitas das quais eram somente orais.

O país que antes do triunfo da revolução tinha 80% de camponeses chegou a ocupar o segundo lugar no que se refere à produção industrial, atrás apenas dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, tornar-se-ia o principal produtor de petróleo, de aço, de cimento e de tratores do mundo.

A Rússia, o país das grandes massas incultas, conseguiu proezas no campo da cultura que nenhum país capitalista na época (nem agora) alcançou. Em Moscou, chegaram a existir cerca de 300 teatros líricos, muitos dos quais funcionavam pela manhã, à tarde e à noite.

Nas universidades, os alunos recebiam um salário para estudar, enquanto os operários que queriam fazê-lo tinham seus horários de trabalho subordinados aos seus horários de estudo nas faculdades. Eles tinham entre uma semana e um mês de licença pagos para se prepararem para os exames.

É importante ressaltar que todas essas conquistas foram conseguidas num país que sofreu como nenhum outro, no lapso de 30 anos, as consequências de três guerras devastadoras. A Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial. Nenhum outro país no mundo sofreu tanto as consequências das guerras. Para fazer uma comparação, os Estados Unidos, que participaram da Primeira Guerra Mundial, da invasão da Rússia e da Segunda Guerra Mundial, tiveram 600 mil mortos. A Rússia, nessas três guerras, teve, no mínimo, quarenta milhões de mortos.

Cada uma dessas guerras provocou uma completa devastação do país. Durante a Guerra Civil, morreram quatro milhões de pessoas e, como consequência disso, a posteriori, morreram mais sete milhões por doenças, fome e frio. Tal foi o grau de destruição provocado pela tentativa do capitalismo de acabar com o novo Estado, onde, naqueles anos, tornou-se bastante comum o canibalismo. Centenas de milhares de crianças e jovens desamparados vagavam pelas ruas, e muitos deles se organizavam para atacar as pessoas, matá-las e comê-las. Também era comum que as mães amarrassem seus bebês para que, por causa da fome, não se mordessem.[2]

Mas a Segunda Guerra Mundial superou muito os horrores da primeira e da Guerra Civil. Só nos primeiros seis meses, desde o ataque surpresa de Hitler, morreram 2,5 milhões de russos. Só na batalha de Stalingrado, morreu um milhão. Durante a Segunda Guerra Mundial, morreram, no mínimo, 26 milhões de soviéticos.

Rumo ao socialismo

Como um país atrasado, de maioria camponesa, com quase 80% de analfabetos, poderia chegar em menos de vinte anos a tal crescimento econômico e cultural?

Parecia um milagre. Mas não era. O milagre estava explicado pelo que dizia Trotsky em 1936, na apresentação de seu trabalho A revolução traída: “O mundo burguês fingiu, em princípio, que não observava os êxitos econômicos do regime dos sovietes, ou seja, a prova experimental da viabilidade dos métodos socialistas”.[3]

E agrega depois no mesmo livro:

Os imensos resultados obtidos pela indústria, o começo promissor de um florescimento da agricultura, o crescimento extraordinário das velhas cidades industriais, a criação de outras novas, o rápido aumento do número de operários, a elevação do nível cultural e das necessidades são os resultados indiscutíveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do velho mundo acreditaram ver a tumba da civilização. Já não há necessidade de discutir com os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou seu direito à vitória, não nas páginas de O Capital, mas numa arena econômica que constitui a sexta parte da superfície do globo; não na linguagem da dialética, mas na do ferro, do cimento e da eletricidade. Ainda no caso de que a URSS, por culpa de seus dirigentes, sucumba aos golpes do exterior – coisa que esperamos firmemente não ver – ficaria, como mostra do que há por vir o fato indiscutível de que a revolução proletária foi a única coisa que permitiu a um país atrasado obter resultados sem precedentes na história.[4]

Os fatos: o crescimento espetacular da economia e da cultura pareciam indicar que a Rússia marchava em direção ao socialismo como passo prévio ao comunismo, no qual, segundo Marx, cada pessoa produziria de acordo com sua capacidade e receberia de acordo com sua necessidade. Ou seja, uma sociedade onde todas as necessidades dos seres humanos poderiam ser satisfeitas.

Logicamente, a Rússia não poderia chegar ao socialismo e muito menos ao comunismo se a revolução não triunfasse no resto do mundo, particularmente nos países mais avançados, pois pensar numa sociedade comunista no marco de uma economia mundial dominada pelo imperialismo era algo que não entrava na cabeça de nenhum marxista.

Os bolcheviques, conscientes disso, abriram dois caminhos com um mesmo objetivo: a vitória do socialismo. Por um lado, começaram a tomar o poder na Rússia e, ao mesmo tempo, utilizaram essa vitória para desenvolver a revolução internacional impulsionando a construção da III Internacional, o partido mundial da revolução socialista. Os bolcheviques, seguindo a tradição de Marx e Engels, no meio da Guerra Civil, colocaram-se à frente da fundação desta organização mundial.

Entre 1919 e 1922, a III Internacional realizou um congresso mundial por ano, os quais duravam cerca de um mês cada um. Neles, discutia-se os problemas mais candentes da revolução mundial, assim como a situação e a política para cada país.

Documentários da época mostram Lenin e Trotsky ovacionados por todos os delegados, abandonando suas tarefas para participar ativamente desses congressos. Lenin, do Estado; Trotsky, o comando do Exército Vermelho. Por outro lado, esses filmes também mostram que os congressos da III Internacional eram o acontecimento mais importante do país. Eram organizados desfiles e atos de massas para celebrar a abertura de um novo congresso. E é importante destacar que os principais oradores desses atos não eram os dirigentes russos, mas os delegados dos diferentes países.

A tomada do poder pela classe operária, a expropriação da burguesia, o monopólio do comércio exterior, a economia centralmente planificada por um lado e a construção da III Internacional por outro foram o caminho adotado pelos bolcheviques para marchar em direção ao socialismo.

No entanto, esse caminho iniciado pela Revolução Russa foi bruscamente interrompido pelo stalinismo.

II – O stalinismo interrompeu o caminho ao socialismo

O atraso das massas russas, majoritariamente camponesas, o quase desaparecimento da classe operária durante a guerra civil, o cansaço das massas como produto dessa mesma guerra, a derrota da revolução alemã e o refluxo da mobilização foram fortalecendo um espírito conservador entre as massas. Dessa maneira, deu-se a base para o fortalecimento dos setores mais burocráticos e conservadores do Partido Bolchevique e do Estado. Junto a isso, a doença e a morte de Lenin potencializaram esse processo.

Na vida de Lenin, pelas razões apontadas, existia a burocracia dentro do Estado e os desvios burocráticos dentro do Partido Bolchevique. Mas Lenin, com seu enorme prestígio, advertia e combatia isso desde 1919. Sua morte prematura significou não apenas uma diminuição qualitativa desse combate, mas também abriu o caminho para que a burocracia se apossasse do poder.

À frente desse processo, apareceu o mais medíocre dirigente do Partido Bolchevique: Joseph Stalin, que havia cumprido um papel secundário na revolução, mas acabou cumprindo um papel central quando chegou a hora de aprofundar o retrocesso e as derrotas, assim como a burocratização do Estado e do partido. Stalin, já em 1923 (quando Lenin estava prostrado por sua doença grave), elaborou uma teoria justificativa, que se apoiava no cansaço e na desmobilização das massas. Ele a chamou de socialismo num só país e a complementou com uma política: coexistência pacífica com o imperialismo.

Para as massas cansadas, dizia: paremos de lutar; não é necessária a revolução mundial para chegar ao socialismo; nós podemos fazer o socialismo sozinhos, em nosso país; para isso, basta que nos coloquemos de acordo com as potências imperialistas; vamos coexistir pacificamente com elas. Essa orientação levou Stalin não só a deixar de lado a luta pelo triunfo da revolução internacional, mas a assinar acordos com as mais importantes potências imperialistas para evitar que isso acontecesse.

O primeiro foi com a Alemanha de Hitler. Um pacto de não agressão e de divisão de áreas de influência pelo qual Stalin se comprometia a não fazer nada diante da futura invasão de Hitler à Polônia para ocupar metade do seu território. Em compensação, Hitler permitia que Stalin ocupasse a outra metade do território polaco.

Depois, quando Hitler rompeu esse pacto e invadiu a URSS, Stalin se viu obrigado a entrar na Segunda Guerra Mundial em aliança com os EUA e a Inglaterra. Essa aliança culminaria num novo pacto de Stalin com seus novos aliados, com o mesmo caráter contrarrevolucionário que ele havia assinado anteriormente com Hitler: coexistência pacífica e divisão de áreas de influência.

Como parte desse pacto, Stalin, por recomendação do primeiro ministro inglês Wiston Churchill, dissolve a III Internacional e entrega ao imperialismo, para manter a coexistência pacífica, as revoluções na França, Itália e Grécia.

A vitória do terror

Toda essa política de Stalin, que começou a se desenvolver a partir de 1923, embora favorecida pela desmobilização e pelo cansaço das massas russas, encontrou uma forte resistência no Partido Bolchevique. Mas Stalin ganhou essa batalha. Não no campo das ideias, mas no do terror.

Os opositores de Stalin, a maioria dos quais haviam tido um papel destacado na Revolução de Outubro e na Guerra Civil, começaram a ser caluniados, depois removidos dos cargos de responsabilidade para, a partir daí, serem expulsos do partido, levados presos e finalmente fuzilados. Dessa forma, stalinismo se impôs na Rússia e na ex-URSS.

O que aconteceu na URSS na década de 1930 foi o triunfo de uma contrarrevolução.

Da contrarrevolução à restauração

Muitas vezes, quando se fala da Rússia, diz-se “da revolução socialista à restauração capitalista”, quando o correto seria dizer “da contrarrevolução stalinista à restauração capitalista”, porque é justamente a partir do triunfo da contrarrevolução stalinista que se interrompe o caminho em direção ao socialismo e se inicia um novo caminho, agora de retorno ao capitalismo, ainda que, nesses anos, a aparência indicasse o contrário.

Na década de 1930, apesar de todas as proezas contrarrevolucionárias de Stalin, a economia e a cultura não paravam de crescer, a tal ponto que Stalin chegou a declarar que a Rússia e a URSS já haviam chegado ao socialismo e caminhavam rumo ao comunismo. No entanto, a realidade era bem diferente. A política de Stalin de colaboração com as potências imperialistas ia deixando a URSS cada vez mais isolada no marco de uma economia mundial dominada por essas potências imperialistas.

Nesse sentido, se a URSS continuava crescendo, não era devido à política de Stalin, mas apesar dela. Continuava crescendo porque ainda se mantinha o impulso dado à economia pelas principais medidas econômicas tomadas a partir da Revolução de Outubro. Mas essa realidade, em função da condução da burocracia stalinista do Estado, não se manteria por muito tempo.

É por isso que Trotsky, ao mesmo tempo em que reconhecia esse crescimento espetacular, apontava em 1938:

O prognóstico político tem um caráter alternativo: ou a burocracia, convertendo-se cada vez mais no órgão da burguesia mundial no Estado operário, derrubará as novas formas de propriedade e voltará a afundar o país no capitalismo ou a classe operária derrubará a burocracia e abrirá o caminho do socialismo.[5]

Os acordos de Stalin com o imperialismo teriam um alto custo para a URSS. Em 1941, a URSS esteve muito próxima de ser destruída quando Hitler, unilateralmente, rompeu o pacto com Stalin e invadiu a URSS.

Depois da Segunda Guerra Mundial, havia planos dos EUA para fazer o mesmo que Hitler, mas a correlação de forças não permitiu. No entanto, isso não facilitou as coisas para a URSS.

O atraso tecnológico em relação aos países mais avançados por um lado e, por outro, a condução burocrática fizeram com que já no final dos anos 1950 o crescimento econômico começasse a diminuir. A economia continuava crescendo, mas num ritmo bastante inferior.

Entre os anos de 1963 e 1968, em todo o Leste Europeu foram levadas adiante reformas profundas para tentar superar a situação. Essas reformas que, por um lado, pretendiam modernizar a gestão e, por outro, aumentar o comércio exterior para trazer novas tecnologias, terminaram num grande fracasso, não só na URSS, mas no conjunto dos países do Leste Europeu, que começaram a entrar numa crise econômica sem saída.

Por um lado, a própria burocracia, ao tentar aplicar os novos planos de gestão, resistiu a eles, porque via seus interesses questionados. Todos estavam a favor desses planos, desde que não fossem aplicados em seu setor. Por outro lado, o aumento do comércio exterior (essa etapa foi conhecida como a “Idade de Ouro do Comércio Leste-Oeste”) terminou numa crise brutal, porque foi um comércio –igual o imperialismo faz com suas colônias– desigual.

A próxima fase das direções burocráticas foi a tentativa de sair da crise por meio dos empréstimos tomados do imperialismo. Dessa forma, as economias do Leste Europeu ficaram presas pela dívida externa com o imperialismo, o que os levou a uma crise terminal.

A burocracia governante, culpada de ter isolado a URSS com sua política de coexistência pacífica com o imperialismo, descarregava a crise nas costas dos trabalhadores. Alguns números mostram isso com nitidez. Na URSS, a educação, que na década de 1950 consumia 10% da renda nacional, no início dos anos 1980 consumia só 6%. E algo mais trágico: a expectativa de vida, que naquele período aumentava em todo o mundo, na URSS diminuía de forma alarmante. Em 1972, era de 70 anos. No início dos anos 1980, havia caído para 60 anos.

Dessa forma, a paródia stalinista do socialismo num só país, que na verdade era “longa vida ao imperialismo”, chegava ao seu fim.

A URSS e o resto dos estados operários tinham só uma alternativa para sair da crise econômica terminal que o imperialismo havia imposto a eles: apelar à revolução mundial. Mas eles não estavam dispostos a recorrer a esse caminho. Preferiram se oferecer como sócios menores do imperialismo e foi isso o que fizeram. Da mão de seus amos, restauraram o capitalismo em todos esses Estados.

Assim, os burocratas governantes levaram até o fim a política de Stalin e se converteram nos coveiros das poucas conquistas restantes da gloriosa Revolução de Outubro.

III – Novos caminhos para o socialismo?

Em nome de um suposto realismo, estão os que dizem que o socialismo fracassou porque era uma utopia de Marx e Engels. Estão também os que afirmam que não era uma utopia, mas que se trata de buscar novos caminhos para o socialismo, pois o que fracassou é o caminho adotado pelos bolcheviques. Ambas ideias estão equivocadas.

De qual utopia se pode falar quando, com os métodos socialistas, um país atrasado como a Rússia conseguiu, em menos de vinte anos, transformar esse país em potência mundial no campo da economia e da cultura? Por que pensar em novos caminhos para o socialismo se foi o caminho traçado pelos bolcheviques (o caminho de Marx e Engels) que possibilitou esses primeiros e triunfantes passos em direção ao socialismo?

O socialismo e o comunismo não são uma utopia. Os fatos demonstraram isso. O que é uma utopia é pensar que o capitalismo pode libertar a humanidade da fome, da exploração, da opressão e da destruição da natureza.

Não se trata de buscar novos caminhos. O stalinismo já buscou um novo caminho: chegar ao socialismo sobre a base dos acordos com o imperialismo em nível internacional e chegar ao socialismo, em cada país, sobre a base de governos de conciliação de classe, os chamados governos de frente popular.

Trata-se de retomar o caminho que Marx e Engels formularam, que os bolcheviques concretizaram, e os stalinistas interromperam.

Trata-se de remover os obstáculos que se colocaram nesse caminho, o que possibilitou que, ao invés de chegar ao socialismo, retornasse o capitalismo.

As massas do Leste Europeu, ao derrubar o aparato stalinista em nível internacional (ou no mínimo feri-lo de morte), removeram, em grande medida, esse obstáculo. Trata-se agora de culminar essa tarefa removendo da consciência da vanguarda operária as ideias que o putrefato aparato stalinista deixou em suas cabeças e que estão vivas no programa de todos aqueles que hoje, em nome do realismo, falam de novos caminhos.

Trata-se de acabar com a ideia de que se pode chegar ao socialismo conciliando com a burguesia; que podemos chegar ao socialismo sem democracia operária ou que é possível chegar ao socialismo sem construir o partido mundial da revolução.

O caminho de Marx e Engels, o caminho dos bolcheviques, o caminho dos primeiros anos da III Internacional, é o caminho que abre as possibilidades da vitória. O caminho do stalinismo, que até hoje é adotado pelos novos e velhos reformistas, é o caminho da derrota. De novas e novas tragédias. É necessário estudar a Revolução Russa. É necessário aprender com a Revolução Russa.

Notas:

[1] Lenin recomendou este livro por considerar que traçava “… um quadro exato e extraordinariamente vivo dos acontecimentos…”.

[2] Ver a respeito o estudo de Wendy Z. Goldman: “A mulher, o Estado e a revolução”.

[3] TROTSKY, Leon. La Revolución Traicionada. Editorial Fontamara, p. 27.

[4] Ibid., pp. 33-34.

[5] TROTSKY, Leon. Programa de Transição.

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