ter mar 19, 2024
terça-feira, março 19, 2024

Onde está a revolução e onde está a contrarrevolução na Líbia?

Polêmica com o castro-chavismo e seus repetidores “trotskistas”

O processo revolucionário na Líbia dividiu águas, desde seu início, na esquerda mundial. O fato de produzir-se um levante popular – que rapidamente pegou em armas e originou uma guerra civil – contra um líder político, Muammar Kadafi, que a maioria da esquerda caracterizava de “anti-imperialista”, colocou a discussão sobre se o que acontecia na Líbia era ou não um processo distinto ao que se dava no restante da região: concretamente se estamos diante de uma revolução ou de uma contrarrevolução. Esta polêmica ganhou mais força ainda diante da enorme contradição que representou a intervenção militar imperialista da OTAN, que atuou contra Kadafi, por dentro do mesmo campo militar que os rebeldes armados.
Por Daniel Sugasti
 
A corrente casto-chavista, que tem um peso importante dentro da esquerda internacional, desde o princípio e até agora, se colocou incondicionalmente ao lado do ditador Kadafi e contra as massas insurretas. Para este setor, o caso líbio era completamente oposto ao da Tunísia ou Egito. O levante popular armado na Líbia não passava de uma macabra “conspiração imperialista” que pretendia derrotar um incontestável “lutador anti-imperialista”, cujo único pecado havia sido sempre defender a soberania e as riquezas de seu país frente às garras das multinacionais. A comprovação mais cabal desta conspiração, à qual todo revolucionário deveria se opor e denunciar, foi a entrada em cena da OTAN. Para finalizar, a queda de Trípoli e a posterior morte de Kadafi, para Hugo Chávez e para os Castro, não podiam senão significar uma enorme vitória do imperialismo, de seus agentes diretos do Conselho Nacional de Transição (CNT), enfim, da contrarrevolução e de seus mercenários pagos, os “rebeldes” (assim, entre aspas), que assassinaram sem piedade nem ‘respeito à vida’ aquele que estes expoentes do “socialismo do século XX” agora clamam como “um grande lutador, um revolucionário e um mártir”.
 
Mas a discussão não acaba por aí. A polêmica é tão profunda que se instalou inclusive nas fileiras do trotskismo. Nesse sentido, destacamos o debate aberto com o PTS argentino que, sem reivindicar abertamente o regime de Kadafi, acaba, por outro caminho e com seu costumeiro sistema de frases “ortodoxas”, na mesma posição do castro-chavismo. Eles afirmam que na Líbia quem triunfou foi o imperialismo – que desde que interveio mudou o caráter do processo de progressivo a regressivo apenas com sua aparição – e que as massas armadas organizadas em milícias, ao derrotar Kadafi, não estavam fazendo nenhuma revolução, mas atuando como “tropas terrestres da OTAN” ou “soldados do imperialismo” totalmente centralizadas pelo CNT e instaurando “um governo ainda mais pró-imperialista que o de Kadafi”. Apenas lhes faltou sustentar, pois falta-lhes a coerência que os castro-chavistas têm, que na guerra civil devíamos ter ficado militarmente com Kadafi, uma espécie de mal menor, que estava sendo atacado por nada menos que a “infantaria da OTAN”.
 
Nós da LIT, pelo contrário, sustentamos desde o começo que na Líbia o que se passava era uma revolução popular e antiimperialista, pois enfrentava a ditadura sanguinária de Kadafi, um dos principais agentes do imperialismo na região. Coerentemente com esta caracterização de onde estava a revolução e onde estava a contrarrevolução, nos colocamos ao lado das massas líbias e saudamos como uma tremenda conquista democrática a destruição do regime Kadafista e o justiciamento do ditador pelas mãos das milícias populares. Com a mesma força, também desde o primeiro momento, denunciamos a intervenção imperialista da OTAN como contrarrevolucionária. Levantando a palavra de ordem “Não à OTAN, Fora Kadafi”, explicamos que a contradição, expressa no fato de a intervenção imperialista ter se dado durante a guerra civil no mesmo campo militar das massas armadas e contra seu agente, Kadafi, se devia à dificuldade política que tem atualmente o imperialismo para invadir de forma direta com suas tropas e ao fato de que se viu obrigado a intervir por dentro de um levante popular armado para disputá-lo e derrotá-lo, tarefa primordial que Kadafi demonstrou ser incapaz de cumprir, convertendo-se assim em um elemento descartável.
 
Nove meses depois de aberto o processo revolucionário e quase dois após a morte de Kadafi, acreditamos que essa situação não se fechou. A Líbia continua sendo um dos pontos mais altos das revoluções no Norte da África e Oriente Médio, continua sendo um dos pontos culminantes da luta de classes em nível mundial. E o debate, assim como o cenário político, continua. A polêmica segue em um patamar superior, pois, justamente por se tratar de um processo aberto, os fatos começam a confirmar ou negar as diferentes análises, caracterizações e suas respectivas posições políticas. Nada mais evidente, sendo fiéis ao método marxista, que partir dos fatos da realidade para prosseguir navegando nas turbulentas e divididas águas desta fundamental discussão.
Um país devastado
 
A Líbia do tirano, apesar de ser um país extremamente rico em recursos energéticos, estava imersa na miséria e no atraso. Vejamos algumas cifras. A Líbia possui as maiores reservas de petróleo da África (44 milhões de barris), à frente da Nigéria (37.200 milhões de barris) e da Argélia (12.200 milhões). Em 2009, foi um dos 20 maiores produtores do mundo, sendo o quarto produtor de petróleo da África, depois de Nigéria, Angola e Argélia. Por sua produção de petróleo, a Líbia está na nona posição entre os 12 membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). A isso devemos acrescentar que o petróleo líbio é particularmente apreciado, pois contém pouco enxofre e é fácil de refinar. Oitenta por cento de todo esse ouro negro ia para Europa, principalmente para Itália e França. São conhecidas as grandes companhias presentes em solo líbio: a italiana Eni, a francesa Total e as gigantes anglo-saxônicas British Petroleum, Shell e ExxonMobil. A Líbia ainda conta com reservas de gás natural estimadas em 1.500 milhões de m³.
 
Diante de nós temos pintado o típico quadro de um país semicolonial. A economia da Líbia é muito dependente do mercado mundial, haja vista que a quase totalidade de suas exportações é de petróleo, enquanto que importa cerca de 90% de seus alimentos e de seus equipamentos industriais. O pequeno país navega em riquezas, enquanto um terço do povo líbio vive abaixo da linha da pobreza e existe cerca de 30% de desemprego. Encontraremos a explicação disto no saque sistemático que faziam – e que agora pretendem continuar fazendo – as empresas petroleiras imperialistas, das quais Kadafi se converteu em dócil agente, em especial a partir do início deste século.
 
Este modelo de extração foi afetado com o início dos levantes populares. Devido à guerra civil, as exportações de petróleo estão praticamente suspensas. Antes do estouro da crise, se produzia 1,8 milhões de barris de petróleo diários, dos quais se exportava 1,3 milhões. Suas reservas se estimavam em 44 milhões de barris. Toda essa produção caiu a 400 mil barris diários, provocando uma queda de 60% do PIB líbio. Isso é uma catástrofe se levamos em conta que o petróleo representava mais de 95% das exportações e 74% do orçamento estatal. É compreensível o desespero do imperialismo norteamericano e europeu para acabar com o processo revolucionário e retomar a produção anterior à guerra civil. Sobre isso, os analistas burgueses mais otimistas estimam – obviamente tendo em vista a hipótese de que acabe o processo revolucionário – que só em 2013 se poderá recuperar o nível de antes de fevereiro deste ano.
 
O cenário econômico é péssimo. A situação econômica é caótica e acentua todas as contradições sociais, sobretudo se à estagnação gerada pela situação de guerra civil acrescentamos os efeitos da crise econômica mundial no que diz respeito ao desemprego e ao aumento do custo dos alimentos; elementos que, de fato, estiveram entre as causas que detonaram a explosão popular iniciada em Bengazi. Nenhuma das aspirações socio-econômicas das massas foram resolvidas e esta é a base material que continua impulsionando a luta da classe trabalhadora e do povo líbio, uma luta que, para derrotar Kadafi, custou 50 mil vidas humanas desde fevereiro e que, em que pesem as contradições, conta com importantes condições para se aprofundar.
 
O CNT se reestrutura em meio a duras crises.
 
A morte de Kadafi abriu um novo momento da revolução líbia. O desaparecimento do “inimigo comum” evidencia todas as contradições de todos os setores que enfrentaram militarmente o ex-ditador.
 
Tanto para o castro-chavismo quanto para o PTS-FT, o CNT, como principal agente do imperialismo, seria o indiscutível vencedor político-militar de todo o processo de sentido contrarrevolucionário. Desta conclusão podemos deduzir que eles agora deveriam estar saboreando o doce néctar de sua vitória em meio a um passeio. No entanto, a realidade está confirmando outra coisa.
 
A realidade está demonstrando um processo aberto e em disputa mortal, onde, de um lado, tanto o imperialismo mundial como o CNT se jogam com tudo para liquidar o processo revolucionário, cuja sua primeira condição é desarmar completamente as centenas de milícias populares.
 
Sua tática central, como desenvolveremos adiante, parece ser a de canalizar as aspirações democráticas e a sede de mudanças reais das massas utilizando um discurso democrático que inclui a promessa de uma saída eleitoral. Em síntese, a tarefa central do imperialismo, através do CNT, é reconstruir urgentemente as Forças Armadas e um estado burguês sobre o desmonte da revolução, colocando esse novo estado a serviço de sugar as riquezas do povo líbio. Do outro lado estão as massas populares, que mantêm sua moral altamente elevada por suas tremendas conquistas democráticas, que desconfiam do CNT e, o mais importante, que continuam armadas e organizadas em milícias.
 
O CNT, ao contrário do que diz o castro-chavismo e suas variantes, é consciente de que não existe uma correlação de forças totalmente favorável e dá seus passos como se estivesse atravessando um campo minado; se move como um elefante em uma loja de cristais. Pouco depois da queda de Trípoli, em fins de agosto, o CNT anunciou a conformação de um novo governo interino com ampla representação de todas as regiões. Devido às crises políticas, a lista de ministros foi postergada várias vezes e até o então primeiro ministro, Mahmud Yibril, ameaçou renunciar. Encontramos os motivos da demora nos choques de interesses entre os representantes do CNT, empresários formados no exterior ou ex-ministros de Kadafi, e as direções políticas das milícias. Cidades como Misrata, cujas milícias ofereciam uma feroz resistência contra Kadafi (que em certo momento lançou contra esta cidade mais de 18 mil soldados) e exigiam ter mais participação que outras no gabinete. O mesmo ocorria com as milícias de Zintan. Yibril, representante fiel do caráter reacionário do CNT, se opunha alegando que “a guerra e as lutas, não podem ser uma medida na representação de um país” (El País, 30/11).
 
Em 30 de outubro, como exemplo destas crises, em Misrata aconteceram várias reuniões de rebeldes armados para discutir sua relação com o CNT, instalado em Trípoli. Em uma reunião ampla decidiram continuar sua luta pela “libertação total” e impor seu controle sobre aqueles que pretendem se apropriar de sua revolução e de seus sacrifícios. Uma das propostas foi marchar sobre a capital contra o CNT. Foi assim que se realizou, na noite de quinta-feira, 17 de novembro, uma manifestação de milhares de combatentes armados com fuzis automáticos e acompanhados por camionetes equipadas com morteiros e metralhadoras pesadas, dizendo que eram eles os que deviam aprovar o novo governo. Imaginemos tal cena. Pouco antes dessa manifestação armada, um grupo de 30 comandantes de milícias se reuniu para organizar uma frente comum que consolide sua influência política. Até o momento, a coesão entre as diferentes milícias não é algo assegurado e não foram formuladas demandas específicas. Mas bem poderiam converter-se em um setor político que exerça forte pressão sobre o governo servil do CNT. Em uma declaração, estes líderes milicianos advertiram que “não toleraremos nem perdoaremos que nenhum oportunista crie obstáculos a nossa revolução” (Associated Press, 18/11)
 
Em meio a toda essa crise política, ao mesmo tempo em que negavam espaços de poder às regiões mais combativas, as autoridades do CNT declaravam suas intenções de instaurar os preceitos legais do islamismo político. Mustafá Abdel Yalil, presidente do CNT, no momento de declarar a “libertação do país”, em 23 de outubro em Bengazi, anunciou diante de dezenas de milhares de pessoas que nenhuma norma poderá contrariar a sharía, o corpo de direito islâmico, que, segundo sustentou, se converterá na principal fonte da legislação do país. Abdel Yalil foi mais longe e falou, inclusive, de instaurar um Estado islâmico onde “qualquer lei que contradiga a sharía será abolida”, onde se acabará com o direito de divórcio, pois “as leis sobre o matrimônio devem ser rechaçadas porque limitam a poligamia e limitam a lei islâmica”.
 
O titular do CNT, no entanto, adornou seus pronunciamentos falando de respeito aos direitos humanos e aos direitos das mulheres. Nos parece improvável que a intenção real do CNT, composto por liberais laicos, seja instaurar um estado teocrático ao estilo iraniano. Em suma, pelo que parece, poderão avançar no sentido de um islamismo moderado. O apelo ao islamismo, neste caso, tem mais a ver com tentativas de ganhar popularidade e maior aceitação política em um país onde 97% da população professa a religião islâmica.
 
Finalmente, em 22 de novembro, o CNT nomeou e anunciou um novo gabinete, produto de uma política que pretende aliviar as rivalidades entre as frações regionais. Com 26 votos dos 51 membros atuais do CNT, foi designado como novo primeiro ministro o empresário e professor Abdelrahim Elkib, que possui estreitos vínculos com empresas e universidades estadounidenses e era um alto executivo do setor petroleiro dos Emirados Árabes Unidos. Yibril, corroído pelo desgaste, teve que renunciar pouco antes da nomeação de Elkib, que é outro agente do imperialismo, apenas menos queimado.
 
A nova conformação do CNT evidencia uma mudança de tática em relação às milícias. Essa instância está demonstrando intenções de debilitar a ação daquelas milícias conflituosas através da cooptação de seus líderes no novo gabinete. O novo primeiro ministro declarou, ao revelar seu gabinete, que “toda Líbia está representada”. Elkib acrescentou, “é difícil dizer que alguma área não está representada” (Terra Notícias, 22/11)
 
Com efeito, a nova composição do CNT inclui, como Ministro da Defesa, Osama Al-Juwali, comandante do conselho militar da cidade de Zintan, uma das cidades mais combativas na guerra civil, situada nas montanhas de Nafusa, no oeste da Líbia. Juwali, que estava entre os mais críticos ao governo interino, ficou com o cargo depois que suas tropas capturaram, há algumas semanas, Saif al-Islam, o filho de Kadafi. O cargo de Ministro do Interior foi assumido por Fawzy Abdel Aal, um ex-líder das milícias de Misrata. O cargo de Ministro de Relações Exteriores foi ocupado por Ashour Bin Hayal, um diplomata pouco conhecido, originário de Derna, no leste do país, também uma das cidades que mais sofreu a repressão da ditadura kadafista. Hassan Ziglam, um antigo executivo da indústria do petróleo, está a frente da Fazenda. Finalmente, Abdulrahman Ben Yeza, ex-executivo da gigante petroleira italiana ENI, assumiu o Ministério do Petróleo.
 
A nova conformação do CNT mantém e reforça o caráter burguês-contrarrevolucionário deste organismo. A incorporação de alguns líderes das milícias mais combativas e opositoras ao governo interno é claramente parte de um plano mais amplo para dividi-las e liquidá-las. Mas isso ainda está por vir.
 
Desta forma, o CNT pretende avançar em seus planos de aplacar o ímpeto revolucionário existente através de eleições constituintes, controladas por eles, que estão anunciadas para meados de 2012. O Parlamento surgido dessas eleições, em teoria, deveria redigir uma Constituição e submetê-la a referendo popular. Finalmente, o último passo anunciado seria convocar, em 18 ou 20 meses, comícios presidenciais. Esse é o plano; a luta de classes dará a última palavra.
Desarmar as milícias…
 
Este é o ponto crucial da revolução líbia. Nesse momento, podemos afirmar que a única garantia de continuidade do processo revolucionário está na manutenção da organização de amplos setores de massas em milícias armadas. Atualmente continuam existindo centenas de milícias populares que derrotaram as forças kadafistas e que estão em posse de todo tipo de armas. Essas milícias, com toda razão, desconfiam do CNT e resistem, em maior ou menor grau, a entregar suas armas e a submeter-se ao governo provisório.
É sabido que o armamento da classe trabalhadora e dos setores populares é incompatível com o sistema capitalista. A condição básica de um Estado burguês é possuir o monopólio das armas. Por essa razão, para o imperialismo, Israel, as burguesias árabes, o CNT, enfim, para todos os inimigos das revoluções que estão acontecendo naquela região, a tarefa principal é acabar com as milícias. É uma condição básica para poder reconstruir um estado burguês na Líbia. Tal é a estratégia que determina as diferentes táticas políticas do CNT neste sentido.
Pouco depois da queda de Trípoli, o CNT se referia ao desarmamento das milícias em tom agressivo, aplicando uma tática de solução rápida. O ex-ministro do interior, Ahmad Darrat, anunciava, em fins de agosto: “Vamos colocar todas as milícias sob controle militar e recolher todas as armas em mãos da população” (Terra Notícias, 30/08). A intenção expressa era exigir de todos a entrega das armas e incorporar algumas milícias na nova polícia. Mas o tempo e os conflitos de todo tipo com as milícias acabaram por demonstrar aos líderes do CNT que estavam muito longe de ter a autoridade para centralizar o povo armado. Então, mudaram de tática, baixaram os decibéis do discurso. Buscaram novas formas para um mesmo objetivo.
Mais de acordo com a correlação de forças, o novo primeiro ministro Elkib declarou recentemente que “desarmar os ex-rebeldes líbios poderia demorar meses e, além disso, as armas não serão tomadas pela força”. Prosseguiu: “Não obrigaremos o povo a tomar decisões e ações apressadas, nem promulgaremos leis que o impeçam de manter suas armas”. Insistiu em que “não é uma questão lhes dizer: ‘Ok, dê sua arma e volte para casa’, essa não é a forma que temos de fazer as coisas”. Em troca prometeu que o governo oferecerá alternativas aos ex-combatentes como educação e empregos. “Trataremos todos os assuntos, os avaliaremos e geraremos programas para darmos conta deles e fazê-los sentir-se importantes”, afirmou. Em um tom muito mais paciente e diplomático finalizou reafirmando sua confiança em que o calendário de transição do CNT chegue a bom termo: “Esperamos que antes de que se concluam os oito meses possamos fazer com que esses combatentes deponham as armas e voltem a suas atividades.” (Associated Press, 4/11).
Por este caminho, o CNT anunciou a criação de um Comitê Supremo de Segurança em Trípoli, que tem como chefe Ali Tarhouni, ex-ministro do petróleo. O governo declarou que a finalidade deste órgão seria, supostamente, garantir assuntos de segurança na capital. Na verdade é uma instância concebida para desmobilizar as milícias.
Para conformar e tentar legitimar este organismo, o CNT se valeu de traições, como a do próprio presidente do Conselho Militar de Trípoli, Abdel Hakim Belhaj, prestigiado ex-lider do Grupo de Combatente Islâmico da Líbia. Belhaj, o mesmo que foi torturado por 7 anos na prisão de Abu Salim, mediante um acordo de Kadafi com a CIA e o MI6, agora é um defensor do desarmamento das milícias e da construção de um exército centralizado pelo CNT. Foi assim que Belhaj se comprometeu publicamente em dissolver rapidamente suas milícias em Trípoli e aceitou ser parte dos 21 membros do Comitê Supremo de Segurança, a ponto de anunciar sua conformação junto com Tarhouni. Recentemente declarou que o exército daria aos “paramilitares” a opção de “incorporar-se ao Ministério de Defesa ou à polícia, ou entregar as armas e voltar à vida civil” (New York Times, 23/11).
…uma tarefa difícil
No entanto, apesar das reacomodações táticas retóricas e as traições de alguns comandantes, a realidade está demonstrando que a tarefa de desarmar as milícias populares não é, nem será, tarefa fácil. Apesar do CNT estar conseguindo cooptar alguns comandantes milicianos, a base das milícias demonstra uma desconfiança importante em relação ao governo interino.
No mesmo sentido, o New York Times informou sobre o surgimento do “Novo Exército Nacional Líbio”, conformado a partir de algumas milícias que foram incorporadas. Este “novo exército” seria um passo adiante do CNT no sentido de cumprir sua obrigação. No entanto, este passo é tão débil que o próprio general Abdul Majid Fakih, responsável pelo mesmo e ex-instrutor da academia militar kadafista, consultado ante o fato de que suas tropas fumam ou atendem celulares enquanto desfilam, afirmou “Ainda não temos bons militares, realmente bons… apenas estamos começando a construir o exército”. E o general tem razão, pois quando este “novo exército” lida com os conflitos armados que se dão entre milícias, poucas vezes sai bem sucedido. Em 15 de novembro, quando foram a Zawiyah (cidade famosa por sua resistência tenaz a Kadafi), segundo a mesma fonte, as milícias mataram 13 soldados regulares, romperam sua promessa de entregar as armas e instalaram uma barreira na principal estrada a oeste da base do exército. Os milicianos disseram que não iriam sair dali. Ali Dow Mohammed, chefe das milícias de Zawijah, disse naquele checkpoint: “O conselho de Zawijah vai decidir o que faremos com nossas armas”. Enquanto isso ocorria os soldados do flamejante exército se dedicavam a pintar os muros de sua base de branco.
Uma mostra contundente do terreno pantanoso em que se move o CNT é a atuação das milícias de Zintan, contraditoriamente, a localidade de onde vem o novo Ministro da Defesa. Mesmo com a cooptação de um alto chefe das milícias o povo segue organizado, armado e controlando estradas e pontos estratégicos em várias cidades. Em 4 de dezembro ocorreu um enfrentamento entre milícias provenientes dessa cidade e o que se descreve como novas tropas regulares em Janzour, uma localidade situada a cerca de 17km a oeste da capital. O enfrentamento deixou um oficial regular morto. Um capitão do que se pretende que seja o novo exército oficial, Hakim al Agouri, comandante do exército em Al Maya, frente a tudo isto, concluiu que “não podemos mandar às milícias que entreguem suas armas… existe gente que não vai entregar as armas” (New York Times 23/11).
Vejamos outro caso mais eloquente. O general Jalifa Hafta, nomeado chefe do Estado Maior das Novas Forças Armadas líbias, no último 18 de novembro, foi alvo de tiroteio duas vezes na localidade de Kasr Ben Ghechir por milícias de Zintan, em um atentado que deixou quatro pessoas mortas e do qual o alto chefe saiu ileso. Mas a tensão se agravou ao ponto de aproximadamente 3 mil rebeldes fortemente armados, procedentes da mesma localidade, reforçarem suas posições no aeroporto de Trípoli – que controlam desde a tomada da capital – e fecharem as vias de acesso ao mesmo ao longo de 10km. Isto produziu enfrentamentos com o suposto novo exército regular que deixou um morto (EFE, 10/12). Frente a acusação de haver atentado contra a vida do general Hafta, o portavoz dos revolucionários de Zintan, Khalid el-Zintani, disse: “O que esperam que façam os combatentes quando um comboio de militares fortemente armados trata de passar postos de controle [em direção ao aeroporto] sem aviso prévio?”. Consultado, segundo reproduz o The Tripoli Post, sobre o “Exército Nacional”, el-Zentani disse que o exército está muito mal organizado para que eles se submetam a sua autoridade: “Até agora não sabemos nada sobre o exército nacional da Líbia. Quem está no comando?, onde estão as bases militares?, qual é seu domínio (…) sobre o território?, o chamado exército nacional ainda não é nada.” (Libia Libre, 11/12)
Outro grupo de milicianos, também originário de Zintan, lançou um ataque na localidade de Echguiga, próxima à cidade de Mezda, com o objetivo declarado de expulsar possíveis ex-representantes ou simpatizantes do regime de Kadafi. O fato se choca com as declarações de Mustafa Abdel Yalil afirmando que o novo governo está disposto a perdoar todos os partidários de Kadafi: “A Líbia está disposta a aceitar cada um”, disse o presidente do CNT ao abrir uma Conferência sobre a Reconciliação Nacional, realizada em Trípoli. “Somos capazes de perdoar nossos irmãos que combatiam ao lado de Kadafi, entendê-los e mostrar tolerância”, sentenciando categoricamente que “somos capazes de perdoar e tolerar”. Este chamado à impunidade foi seguido por Elkib: “Não se pode construir um novo futuro à base da vingança. A reconciliação de todas as partes é uma condição imprescindível para criar um país democrático e constitucional.” (RT em Espanhol, 12/12). Será que as bases das milícias que lutaram contra Kadafi e seu regime estarão dispostas a perdoar seus antigos carrascos?
A realidade é que existe um povo que está armado, que aprendeu a usar essas armas, que tomou consciência de seu poder e que não vai desfazer-se delas tão facilmente. Estamos diante de um processo em curso, de um processo aberto que prevê um longo período de enfrentamentos, de idas e vindas, de avanços e retrocessos, tanto para a revolução como para a contrarrevolução. O CNT pode dar passos no sentido do desarmamento, mas veremos se conseguirá este objetivo antes que as massas percam a paciência e se voltem contra eles.
 
De início, é prudente duvidarmos se poderão acabar com as milícias, ainda mais em peremptórios oito meses, como está estabelecido em seu calendário eleitoral. Yalil, pressionado pela situação, teve que dizer que pretende restabelecer minimamente a polícia e os guardas fronteiriços em aproximadamente 100 dias. No entanto, o general Hafta, depois de salvar a vida, sofreu um ataque de sinceridade e admitiu que a coisa está mais difícil e que levará de três a cinco anos até que a Líbia possa contar com um exército “suficientemente forte” para ser digno de tal nome. Nem um nem outro puderam responder sobre o tamanho das forças armadas que pretendem formar (Associated Press, 12/12).
O problema do CNT é que, na verdade, este não tem a autoridade política necessária parar encarar o desmonte das milícias em um tempo relativamente curto. As massas desconfiam do CNT e, ao fazer sua experiência, apostamos em que o povo explorado da Líbia termine por concluir que esse órgão é um covil de bandidos, de empresários petroleiros e ex-representantes do regime cujo líder lincharam ante os olhos do mundo.
Com a revolução ou com a contrarrevolução?
Colocados os principais fatos, apontemos algumas reflexões sobre a polêmica com o castro-chavismo e aqueles que, sem a boina, mas com o mesmo palavreado, reproduzem suas posições em nome do trotskismo. A realidade demonstra que o povo líbio, de armas em punho, obteve uma primeira e fundamental vitória democrática ao destruir o regime ditatorial ao ponto de liquidar fisicamente Kadafi. A força das massas acabou com as Forças Armadas burguesas e, com elas, com o pilar do estado burguês líbio. O castro-chavismo e seus porta-vozes, que afirmam que tudo se trata de uma vitória do imperialismo, devem nos explicar como o imperialismo pode triunfar onde as massas estão armadas e destruíram um estado capitalista, onde a classe capitalista e proimperialista perdeu o monopólio das armas.
Em meio aos fatos, é difícil não nos determos naquela caracterização do castro-chavismo ou do PTS-FT que sustenta que as milícias do povo pobre da Líbia são mercenários pagos ou diretamente “tropas terrestres” que atuam como “infantaria da OTAN” e que estão completamente “centralizadas” pelo CNT. No calor da realidade, esta afirmação, que desdenha profundamente a ação das massas e pretende anular a tremenda conquista democrática do povo líbio para reivindicar ou, no mínimo, embelezar Kadafi, está caminhando do surpreendente ao ridículo.
Sem falar do estranho que seria supostas tropas imperialistas terem optado por linchar Kadafi em plena rua, um método típico das revoluções populares, cujo exemplo insuflou o fervor revolucionário de toda a região contra seus ditadores, sobretudo na Síria, pensamos que vale a pena refletirmos sobre:
 
a) Se as milícias fossem a “infantaria da OTAN” e estivessem completamente disciplinas ao CNT, por que a OTAN, seus supostos comandantes militares, nunca lhes proporcionaram armas e equipamentos avançados? A OTAN, que saibamos, possui melhores arsenais que os antiquados AK-47 com os quais até agora vemos as supostas “tropas terrestres”;
b) Por que a OTAN se retirou no fim de outubro, quando o ideal e completamente lógico teria sido que entrassem com tudo em um país dominado e controlado por suas “tropas terrestres”? Como explicam que até o CNT anda suplicando à ONU “para administrar o país”, que se descongelem os mais de 150 bilhões de ativos que tem o país no exterior (dos quais só liberou 18), negados com o argumento de que o governo não está “suficientemente unido e coeso para confiar-lhe o dinheiro”? Por acaso não confiam nos comandantes de suas próprias “tropas terrestres”?
c) Como é possível que a infantaria de um órgão imperialista como a OTAN, comandado pelos EUA, possa estar questionamento permanente seus supostos comandantes do CNT, ao ponto de assassinar ou tentar assassinar o chefe de seu Estado Maior? Que tipo de infantaria é essa que faz manifestações de rua e diz publicamente que desconhece a autoridade militar de seus supostos superiores?
d)Ainda mais básico e importante: Como explicam o afã, declarado explicitamente, e central na situação política da líbia, que tem o CNT e o imperialismo, de desarmar as milícias? Por que o CNT e todo o imperialismo quereria desarmar sua própria infantaria? Subitamente tornaram-se suicidas?
As contradições do PTS-FT são de ferro. O problema é gravíssimo, pois uma condição básica para uma organização que se diz revolucionária é identificar com precisão onde está a revolução e onde está a contrarrevolução; sobretudo em uma guerra civil. E a realidade confirma que as milícias populares armadas são parte da revolução, não da contrarrevolução. Todo o contrário da tese castro-chavista que o PTS repete em sua essência: as milícias não só não são “tropas terrestres” da OTAN ao mando do CNT, mas estão se enfrentando com a contrarrevolução encarnada no CNT.
Se as milícias estão enfrentando o CNT, que são agentes do imperialismo da pior espécie; se as milícias estão resistindo com tudo o que possuem para não entregar as armas, de que lado estão o castro-chavismo e o PTS-FT nesse enfrentamento armado? Do lado das milícias ou do CNT? Do lado da revolução ou da contrarrevolução?
É fundamental tomar uma posição em uma situação sem espaço para “nem, nem”. Se agora optam por apoiar as milícias populares, o que seria muito progressivo, então devem corrigir sua caracterização e, no mínimo, fazer a autocrítica. Se mantêm sua caracterização – na verdade, uma calúnia – de que as milícias populares são os “soldados do imperialismo”, então devem ser coerentes até o final e apoiar com tudo o CNT na tarefa de desarmá-las o mais rápido possível, pois não poderia haver nada tão progressivo, como urgente, que desarmar – e derrotar – tropas do imperialismo.

As milícias devem manter suas armas contra o CNT e contra o imperialismo!
Nós da LIT nos opomos categoricamente à caracterização e à política para Líbia que defendem o castro-chavismo e sua correia de transmissão dentro do trotskismo, o PTS-FT. Apostamos em que se aprofundem ao máximo as contradições que existem entre as aspirações democráticas e econômicas das massas (que estão conscientes de sua vitória) e os planos contrarrevolucionários do CNT e do imperialismo. O projeto burguês e entreguista do CNT e o agravamento da situação de fome que padece o povo pobre da Líbia coloca a necessidade urgente de levantar um programa que aponte a garantia dos direitos e tarefas democráticas, começando pela libertação do país da dominação imperialista, na perspectiva de um governo operário e popular. Para lutar por isto, defendemos que as milícias mantenham suas armas e sua organização completamente independente do governo e do imperialismo.
O CNT pretende desmontar a revolução através da canalização dos anseios por mudança, fazendo promessas de eleições e de uma assembleia constituinte controlada de cima. As milícias populares não podem depositar confiança no CNT por sequer um minuto. Isso equivaleria ao fim da revolução. As milícias populares devem manter-se armadas como única garantia para que a tremenda conquista de haver derrotado o regime de Kadafi não lhes seja roubada. Não só isto, no calor da revolução, é questão de vida ou morte a centralização das milícias armadas sob uma direção revolucionária e socialista.
A falta de uma direção marxista-revolucionária é o centro do problema na Líbia e no resto das revoluções que sacodem o norte da África e o Oriente Médio. Essa ausência é um ponto importantíssimo a favor da contrarrevolução. No entanto, podemos ser otimistas no sentido de que as mobilizações, insurreições e situações de guerra civil geraram as condições favoráveis e abrem maiores espaços para o surgimento, através de uma política e ação conscientes, de uma direção revolucionária.
As massas líbias devem lutar pela concretização de uma assembleia nacional constituinte livre e soberana, que refunde o país sobre novas bases econômicas e sociais. Isto é central em um país que historicamente foi submetido pelo imperialismo através de ditaduras sanguinárias. O central é garantir a libertação do país do imperialismo e de suas garras, que sempre roubaram suas riquezas. São fundamentais as tarefas no sentido de conquistar a independência nacional na Líbia. Para concretizar esse programa democrático, no entanto, é condição indispensável derrotar o CNT. Enquanto exista esse governo títere das multinacionais imperialistas não se pode pensar nem em liberdades democráticas reais nem em um melhoramento da qualidade de vida das maiorias trabalhadoras. Em seu lugar, as milícias devem lutar por instaurar um governo da classe trabalhadora e do povo líbio. A sustentação desse governo devem ser as milícias armadas e as organizações da classe que podem estar surgindo.
Só um governo operário e popular, que inicie a construção do socialismo, poderá: a) garantir liberdades democráticas para que seja o povo líbio quem realmente dirija seu destino apoiado em novas instituições populares; b) anular todos os contratos de Kadafi, que o CNT quer manter, com as grandes empresas dos países imperialistas; c) nacionalizar o petróleo e todas as fontes de riqueza do país, colocando-as a serviço de satisfazer as necessidades do povo e sob controle da classe trabalhadora organizada; d) castigar os responsáveis por todos os crimes de lesa humanidade cometidos durante a ditadura kadafista que o CNT quer perdoar. Este governo da classe trabalhadora é imprescindível para lutar na perspectiva de uma Federação das Repúblicas Socialistas Árabes.
 
Tradução: Otávio Calegari

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