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quarta-feira, maio 15, 2024

Melodia de violinos: bicentenário de Friedrich Engels, o general comunista

Para considerar de maneira justa as ideias de Marx, é indispensável conhecer as obras de seu mais íntimo correligionário e colaborador, Friedrich Engels. É impossível compreender o marxismo nem expô-lo de um modo completo sem ter em conta todas as obras de Engels.

  1. Lenin, 1914.

Em 1893, pouco antes da publicação do terceiro volume de O Capital, o antigo dirigente cartista Julian Harney escreveu a Engels: “Estou feliz que sua longa viagem com O Capital de Marx esteja quase acabando […] Acredito que nunca, ao menos nos tempos modernos, um homem teve um amigo e um defensor tão fiel, tão dedicado como o que Marx encontrou em você” [1]. Tinha razão.  É quase impossível encontrar na história moderna uma simbiose intelectual tão perfeita como a dos autores do célebre Manifesto Comunista.

Por: Daniel Sugasti
Apesar disso, o nome de Engels descansa à sombra do de Marx. A redução de seu papel ao de amigo e suporte financeiro da família Marx é muito comum. Esta visão é equivocada e injusta, por mais que o próprio Engels, em repetidas ocasiões, tenha definido sua contribuição pessoal com excessiva modéstia: “O que contribuí […] Marx poderia ter contribuído mesmo sem mim. Por outro lado, eu não teria conseguido alcançar jamais o que Marx alcançou. Marx tinha mais grandeza, enxergava mais longe, argumentava mais e com maior rapidez que todos nós juntos. Marx era um gênio; nós, os demais, no máximo, homens de talento. Sem ele, a teoria não seria hoje, nem de longe, o que é. Por isso ostenta legitimamente seu nome”  [2].
Além de relegada, a obra de Engels foi sistematicamente atacada por diversos intelectuais desde o século XX – György Lukács, Jean Paul Sartre, Louis Althusser, entre outros– que, em nome de um pretenso marxismo purificado, se empenharam em separar seu pensamento do de Marx, destacando supostas diferenças teóricas, programáticas e metodológicas entre ambos. [3]
Novembro marca o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels, incansável revolucionário e um dos intelectos mais perspicaz do século XIX. O melhor modo de recordá-lo é conhecer, compreender e resgatar o verdadeiro significado de seu legado como co-fundador do socialismo científico.
Segundo nossa visão, reivindicar sua herança teórico-política não pode ser outra coisa que a defesa do marxismo como um todo. Concordamos com Lenin: “Depois de seu amigo Karl Marx, Engels foi o mais notável cientista e mestre do proletariado contemporâneo de todo o mundo”. Em outras palavras, o proletariado não possui um, mas dois mestres que, juntos, construíram a “obra comum” de ensinar a classe operária “…a conhecer e a tomar consciência de si mesma, e substituíram as ilusões pela ciência” [4].
Uma dupla indivisível
É inaceitável separar a obra de Marx da de Engels. A influência de um sobre o outro, indistintamente, atuou como uma constante fonte criadora para ambos.
O gênio de Marx é inquestionável, mas a qualidade intelectual e o atrevimento militante do “general”, como apelidaram Engels, não foram menores. Foram complementares. Engels se declarou comunista antes que Marx. Também foi o primeiro que se interessou pelo estudo da economia política. Seu artigo intitulado Apontamentos para uma crítica da economia política, redigido em fins de 1843 e publicado nos Anais franco-alemães, contribuiu imensamente para que Marx se interessasse pelo estudo da economia capitalista. O próprio Marx reconheceu este fato em 1859: “Friedrich Engels, com quem mantive um constante intercâmbio escrito de ideias desde a publicação de seu genial esboço sobre a crítica das categorias econômicas (nos Deutsch‑Französische Jahrbücher), tinha chegado por um caminho diferente ao mesmo resultado que eu” [5]. Isto mostra, em parte, que a participação de Engels na investigação que desembocaria em O Capital superou amplamente a contribuição material.
A intensa colaboração entre ambos alcançou o ponto em que é muito difícil discriminar quem escreveu qual parte nas obras assinadas conjuntamente. Existem textos que levam unicamente a assinatura de Marx, mas foram completados por Engels, como é o caso dos dois últimos volumes de O Capital. Ou, como se soube muito depois, podemos mencionar os artigos publicados com o nome de Marx no jornal estadunidense The New York Daily Tribune durante a década de 1850, que foram escritos inteiramente por Engels – entre outros motivos, porque dominava o inglês – para que Marx pudesse ter acesso a alguma renda. Ou então o capítulo que Marx escreveu para a célebre obra de Engels, o Anti-Dühring (tão criticado por certos “marxianos”) fato que talvez ninguém tivesse notado sem a revelação espontânea que seu autor fez no prefacio à segunda edição de 1887[6].
De passagem, digamos que a importância deste livro – assim como a publicação separada de uma de suas seções, que é conhecida com o título “Do socialismo utópico ao socialismo científico- é inestimável. Riazanov escreveu que “A jovem geração que começou a militar por volta de 1876-1880 soube por essa obra o que é o socialismo científico, quais são seus princípios filosóficos e seu método. O Anti-Dühring é a melhor introdução ao estudo de O Capital […] “[7].
Quando jovens, Marx e Engels escreveram A Sagrada Família (1844), A ideologia alemã (1846) e o Manifesto do Partido Comunista (1848). Pouco antes desses trabalhos comuns, em 1842, Engels já tinha realizado os primeiros contatos pessoais com o movimento owenista e cartista e, três anos depois, publicou sua icônica Situação da classe operária na Inglaterra, em base a um rigoroso estudo de estatísticas oficiais e, sobretudo, da observação direta das terríveis condições de exploração às quais estava submetido o proletariado de Manchester, a cidade-fábrica.
A intensa atividade intelectual de ambos se combinou sempre com a prática revolucionária. Organizaram a dura luta programática que transformou a utópica Liga dos Justos em Liga dos Comunistas. Quando começou a onda de revoluções democrático-burguesas de 1848, abandonaram a Bélgica para estabelecerem-se em Colônia. Nesta cidade publicaram, durante quase um ano, o jornal Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana). Em 1849, um aguerrido Engels se alistou como voluntário no exército revolucionário de Baden-Palatinado, especificamente no destacamento sob o comando do general Willich. Nele participou na elaboração de planos militares e interveio pessoalmente em quatro grandes batalhas. A contrarrevolução que sucedeu à derrota da Primavera dos Povos fez com que Marx e Engels, como milhares de outros revolucionários, sofressem uma dura perseguição que obrigou ambos a emigrarem para Londres.
Os anos em Manchester
No final de 1850, Engels teve que se instalar em Manchester para trabalhar na firma da qual seu pai era co-proprietário, a Ermen & Engels. A monotonia de estar sentado em um escritório somando colunas e atendendo a correspondência multilíngue da empresa, além de terrivelmente tediosa para um homem com seus dotes intelectuais, deixava pouco tempo para a atividade política prática – “sinto um tédio mortal aqui”, escrevia a Marx – . Ainda que detestasse sua rotina de trabalho no “comércio imundo”, compreendia que esse sacrifício era necessário para ganhar o dinheiro que permitisse a Marx dedicar-se inteiramente a escrever sua obra principal.
A contribuição material de Engels nem sempre é valorizada em sua real dimensão. As condições de vida da emigração eram duras ao extremo: “[…] se não fosse pela constante e abnegada ajuda econômica de Engels, Marx não só não teria podido acabar O Capital, como teria sucumbido inevitavelmente sob o peso da miséria”, explicou Lenin em 1914[8]. A esposa de Marx, Jenny von Westphalen, descreveu esses anos como de “grandes dificuldades, privações severas e contínuas, miséria completa” [9].
O positivo deste longo período – de 1850 a 1870 – é a correspondência quase diária que manteve com Marx, generosa em lições sobre numerosos problemas teóricos e políticos. Marx, que o chamava de “enciclopédia ambulante”, em muitas ocasiões pediu dados ou opiniões para O Capital. De fato, para ele não existia julgamento mais autorizado que o de Engels.
Ainda que separados fisicamente, a estreita colaboração intelectual também oferecia momentos de profunda emoção que, à sua maneira, ajudam a ilustrar os laços de camaradagem e a humanidade entre ambos.
Entre outras, existe uma carta comovedora que Marx escreve para Engels para informar que tinha finalizado o primeiro tomo de O Capital: “Por fim este tomo está terminado. Devo a você ter conseguido concluí-lo. Sem tua ajuda ilimitada jamais teria podido finalizar o trabalho prodigioso de três tomos. Te agradeço com todo o coração e te abraço” [10].
“Sem você, nunca teria podido levar o trabalho até o final – escrevia Marx ao seu amigo em maio de 1867 –e posso assegurar que sempre pesou sobre mim como uma cruz em minha consciência que tenhas permitido que tuas preciosas energias fossem desperdiçadas e se oxidassem no comércio, principalmente por minha culpa, e, para piorar, que tenha tido que compartilhar todas minhas petites misères[11].
De fato, o sustento oferecido por Engels foi fundamental para a culminação desta obra. Diante de cada necessidade de Marx, teórica ou pessoal, Engels sempre amparou incondicionalmente. A ajuda material, além de uma prova de profunda amizade, sempre foi concebida por Engels como uma contribuição concreta a uma causa comum. Diante de cada pedido de Marx, seu principio de sempre foi: “estou disposto a fazer tudo aquilo que dependa de mim”. Quando O Capital veio à luz, Engels sentiu que seus anos de sacrifício em Manchester, afundado em um trabalho “desmoralizante”, tinham sido coroados.
Sem pausa, Engels se colocou a escrever resenhas a partir de muitos ângulos sobre o novo livro. Com o objetivo de neutralizar a “conspiração burguesa do silêncio”, enviou seus artigos a jornais operários e burgueses em vários países. A ousada campanha de divulgação que Engels encabeçou contribuiu enormemente para que o marxismo se tornasse mais conhecido e, pouco a pouco, se fortalecesse no movimento operário europeu.
Outros três anos se passaram até que Friedrich anunciasse ao seu sócio Ermen que deixaria a companhia. Assim, em 1 de julho de 1869, um animado Engels pode escrever a Marx: Viva! Hoje, acabou-se para mim o doce comércio e sou um homem livre ”[12].
O general estava pronto para retomar a ação. “Nos últimos 18 anos, não pude fazer quase nada diretamente pela nossa causa, tendo que dedicar-me a atividades burguesas ”[13], explicou a Friedrich Lessner, um veterano de 1848. Em seus 49 anos, estava ansioso para reencontrar-se com Marx nas mesmas trincheiras ideológico-políticas que juntos haviam cavado desde a década de 1840. Marx sentiu o mesmo, que celebrou a “fuga do cativeiro egípcio” de seu fiel amigo deixando-se levar pela tentação de “beber uma taça à sua saúde” [14].
Engels agora podia dispor de todo seu tempo, energia e qualidades para dedicar-se à causa comunista. Transbordava vitalidade: “Sou outro homem e me sinto dez anos mais jovem”, escreveu à sua mãe. Sua participação, indispensável, viria em bom momento.
Regent’s Park Road, o quartel general
Em 1870, Engels voltou a Londres. Depois de quase duas décadas, pode voltar a trabalhar presencialmente junto com Marx.
Engels ficou muito contente com a casa que terminou alugando na capital britânica (um imóvel no 122 da Regent’s Park Road), principalmente porque “não ficava nem a 15 minutos de distancia de Marx ”[15]. O “mouro”, como o chamavam carinhosamente, residia em Maitland Park Road, para onde Engels se dirigia quase diariamente. Eleanor, a filha menor de Marx, anotou que “às vezes saíam para caminhar juntos, mas era igualmente comum que ficassem no quarto de meu pai […] era frequente que caminhassem juntos daqui para ali em silêncio, um ao lado do outro. Ou, então, cada um falava sobre aquilo que mais ocupava seus pensamentos até que ficavam de frente um para o outro e riam alto, reconhecendo que tinham estado refletindo sobre projetos contrários durante a última meia hora” [16].
O trabalho comum possuía uma divisão de tarefas que Engels explicou: “Como consequência da divisão do trabalho que existia entre Marx e eu, coube a mim defender nossas opiniões na imprensa jornalística, o que, em particular, significava lutar contra as ideias opostas, a fim de que Marx tivesse tempo de acabar sua grande obra principal. Isto me levou a expor nossa concepção, na maioria dos casos de forma polêmica, contrapondo-a às outras concepções” [17].
Acerca desse infatigável – e fundamental- trabalho de polemista e divulgador, comentou David Riazanov em uma de suas conferências de 1922: “Engels se serve de um artigo qualquer que o impressionou ou de um fato atual para mostrar a profunda diferença entre o socialismo científico e os outros sistemas socialistas, ou para esclarecer um problema prático a partir do ponto de vista do socialismo científico e ensinar a maneira de aplicar o método…” [18].
Engels, com certeza, tinha participado em 1864 do processo de fundação da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, mas até 1870 não desempenhou um papel principal. Uma vez em Londres, Engels assumiu uma função protagonista no Conselho Geral, a condução cotidiana da Internacional. Assumiu as tarefas de secretário responsável pelas relações com a Bélgica, Itália, Espanha, Portugal e Dinamarca, além de membro do comitê de finanças. Participou energicamente em toda sorte de disputas programáticas e organizativas contra a nociva influência dos seguidores de Giuseppe Mazzini, de Lassalle, de Pierre-Joseph Proudhon, de Louis Auguste Blanqui, dos tradeunionistas (sindicalistas ingleses) e de Mijaíl Bakunin. A imensa energia desdobrada por Engels aliviou o trabalho político e organizativo que Marx até então tinha levado adiante, que assim pode dedicar-se quase plenamente aos seus estudos para os próximos tomos de O Capital.
Em seu leito de morte, Engels confessaria a Kautsky que aqueles anos, de 1870 a 1872, tinham sido os mais importantes da vida pública de Marx e da sua própria.
Depois da morte de Marx, Engels teve que suportar todo o peso que implicava continuar a tarefa empreendida junto com seu companheiro. Passou a ocupar o primeiro plano depois de ter ocupado toda sua vida, segundo suas próprias palavras, o segundo.
Assumiu sua nova responsabilidade não sem preocupação. Ninguém melhor do que ele compreendia a gravidade de ter perdido Marx. Em 1884, escreveu a Becker: ”Meu infortúnio é que, desde que perdemos Marx, pretende-se que eu o represente. Passei uma vida (…) tocando o segundo violino; e, sem dúvidas, creio que o fiz razoavelmente bem.(…) Mas agora, de repente, espera-se que tome seu lugar” [19].
Havia muito por fazer. Engels se dispôs a ordenar o legado científico de Marx. Entre seus papéis, encontrou os manuscritos inacabados de O Capital. Deixou de lado suas próprias obras e dedicou-se a completar o que conhecemos como o segundo e terceiro livros de O Capital, publicados em 1885 e 1894, respectivamente [20]. Engels não teve tempo de preparar-se para a impressão do quarto tomo, que ficou conhecido como Teorias da mais valia devido ao título que Kautsky lhe deu quando o publicou em alemão entre 1905-1910.
A edição dos dois últimos tomos implicou um imenso trabalho. Engels teve que ordenar os papéis e retomar o trabalho a partir de onde Marx o deixou incompleto, especialmente os materiais do terceiro tomo, que eram pouco mais que anotações soltas: teve que realizar novas pesquisas e aprofundar outras; ordenar manuscritos e entender notas e abreviações com a caligrafia quase ilegível de Marx; cortar; editar; verificar rigorosamente as traduções (“tente ser mais fiel ao original!”). “Citações de fontes sem nenhum tipo de ordem, pilhas delas amontoadas, compiladas somente com vista a uma seleção futura. Ademais, estão os textos manuscritos que certamente não podem ser decifrados por ninguém mais que eu e, mesmo assim, com dificuldades ”[21], escreveu a Bebel um Engels aturdido diante do estado caótico em que se encontravam os arquivos de seu amigo.
Ainda assim, Engels cumpriu esta árdua tarefa com satisfação: “posso realmente dizer que, enquanto trabalho nesta obra, estou vivendo em comunhão com ele [Marx][22].
 Sem Engels, a obra magna de Marx, a mais profunda análise científica sobre o funcionamento da produção capitalista e da luta que sobre sua base estabelecem o burguês e o operário, teria ficado incompleta. Esta tarefa adquire peso histórico, já que não existia outra pessoa capaz de concluí-la. Com justiça, Lenin sentenciou que : “De fato, esses dois tomos de O Capital são a obra dos dois, Marx e Engels”.
Em meio da edição das obras de Marx, Engels pode publicar importantes obras suas, como A Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884); Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886); os manuscritos que compuseram depois Dialética da natureza, além de escrever prefácios às edições de textos anteriores.
Isto, sem contar que depois de 1883, Engels também ficou como o principal dirigente do processo de construção do que seria a II Internacional, no contexto de um notável fortalecimento do movimento operário europeu, e do marxismo entre suas fileiras, aconselhando quadros e partidos de diversos países sobre problemas de princípios, de tática e de organização. Em sua casa reuniam-se dirigentes socialistas de diferentes países. Até sua morte, a 122 da Regent’s Park Road funcionou como sede do “Estado maior” do socialismo europeu.
O final
O lado militante de Marx e Engels, como se sabe, é sistematicamente minimizado – quando não criticado ou simplesmente omitido – por diferentes correntes de literatos e académicos, por mais que muitos deles se digam marxistas.
A academia apresenta os fundadores do socialismo científico como filósofos de gabinete. Isto é uma falsificação histórica. Nem Marx nem Engels foram comentaristas da realidade. Todo seu esforço teórico esteve a serviço de dotar o proletariado de um programa científico que pudesse ser assumido pelos melhores elementos da classe operária.
Para eles, não se tratava só de interpretar o mundo, mas de transformá-lo.
Engels, nesse sentido, além de um teórico brilhante foi um político apaixonado por problemas concretos colocados pela luta de classes de seu tempo; por problemas sindicais; por problemas de construção e organização partidárias; pela formação teórica de novas gerações de quadros comunistas. Pouco antes de morrer, mantinha o mesmo espírito inquieto, a mesma paixão que inflamou sua juventude. ”Tenho que acompanhar o movimento em cinco países europeus grandes e muitas nações pequenas, e nos Estados Unidos da América”, escreveu para Laura Marx Lafargue em 1894. Contava, além disso que sua caixa postal era “um poço sem fundo de correspondência internacional”. Diante das crescentes demandas exigidas por um movimento marxista em crescimento, todos acudiam ao velho general. Possuía notável habilidade para conceber táticas, mas sempre as subordinando aos princípios e ao programa comunista que elaborou junto com Marx. Entre outras passagens, em 1891, alertava : “os oportunistas ‘honestos’ são os mais perigosos para a classe operária” [23].
Entre final de 1880 e início de 1890, o movimento operário inglês experimentou um ressurgimento esperançoso. Em julho de 1888, a greve das operárias da fábrica de fósforos Bryant & May (Matchgirls Strike) em Londres envolveu mais de 3.000 trabalhadores, de uma forma ou outra. Em agosto de 1890 foi deflagrada uma poderosa greve de mais de 100.000 trabalhadores portuários em Londres (Great Dock Strike), que terminou com uma estrondosa vitória proletária.
Em 4 de maio de 1890, uma impressionante marcha de 200.000 operários em Hyde Park impactava a política britânica. Engels, presente no ato, exclamava: “O que eu não daria para que Marx pudesse ter visto este despertar, ele que, neste mesmo solo inglês, estava atento ao mínimo sintoma” [24]. Após a vitória da greve nos portos londrinos, escreveu: “Até agora o East End[25] encontrava-se em um estado de paralisia causado pela pobreza, sendo sua marca registrada a apatia dos homens, cujo espírito tinha sido vergado pela fome e que abandonaram toda e qualquer esperança […] E, então, no ano passado ocorreu a greve vitoriosa das mulheres dos fósforos. E, agora, esta greve gigantesca dos elementos mais desmoralizados do mundo, os trabalhadores dos cais” [26].
Entre agosto e setembro de 1888, viajou aos Estados Unidos onde presenciou um movimento operário jovem que, despojado dos vícios e tradições esclerosadas da política europeia, mostrava um tremendo “vigor americano”. Em agosto de 1893, a Segunda Internacional se expandia em todo o continente europeu. Engels participou de seu congresso em Zurique. Os mais de 400 delegados ovacionaram seu discurso de encerramento. Em setembro, fez uma conferência em Berlim diante de milhares de militantes socialdemocratas e ativistas operários [27]. O futuro se mostrava promissor. Engels repetia : “Como eu gostaria que Marx estivesse vivo para ver isto”.
Além de sua paixão pela política, Friedrich Engels foi um homem entusiasmado com os descobrimentos científicos e avanços tecnológicos de fins do século XIX, principalmente no campo da biologia, a antropologia, a matemática, a física, a química…A ciência militar, por outro lado, ocupou sua mente durante muitos anos.
Considerando esta apertada síntese da obra de Engels, é difícil admitir sua modesta autodenominação de “segundo violino” em relação a Marx. Wilhelm Liebknecht –o pai de Karl– fez notar a esterilidade da discussão acerca do peso de ambos: “O que contribuiu um; o que, o outro? Uma pergunta ociosa! É de uma peça, e Marx e Engels são uma só alma, tão inseparáveis no Manifesto Comunista como continuaram sendo até a morte em todos seus trabalhos e planos” [28].
A morte impediu Engels de cumprir seu desejo “de poder contemplar de um buraquinho a chegada do novo século”. Em janeiro de 1895, tinha começado a trabalhar na edição das obras completas de Marx e das suas. Em abril, começou a preparar o que teria sido o quarto volume de O Capital.  Planejava, por outro lado, reeditar sua obra A guerra dos camponeses na Alemanha, além de escrever uma biografia de Marx e uma história da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Tudo ficou inacabado.
Engels padecia de um câncer de esôfago. O avanço da doença, entretanto, fez pouca diferença em sua personalidade vital, alegre, penetrante. Engels, para escândalo de certos meios acadêmicos, que destilam puritanismo, sempre celebrou a vida. Bom anfitrião, gostava de abrir as portas de sua casa para seus amigos e camaradas, regando as discussões políticas com vinho e cervejas tipo Pilsener. As celebrações de seus aniversários, natal ou as reuniões que seguiam à contagem de votos para o Reichstag alemão, costumavam estender-se até a madrugada. Era amante da arte, da poesia, da música, dos idiomas, das viagens, adorava andar a cavalo, conhecer pessoas e lugares novos. Desfrutava ao máximo suas férias nas praias de Eastbourne.
Em novembro de 1894 chegou uma boa soma de dinheiro ao partido alemão aos cuidados de Beber e Singer, a quem pediu “bebam em minha lembrança uma garrafa de bom vinho”. A última carta da qual se tem conhecimento foi dirigida a Laura Marx. Lamentou a “crise que se aproximava “no doloroso “campo de batatas” que havia se formado na garganta. Depois a despedida: “Não tenho a força para escrever longas cartas, então adeus. Por tua saúde, um copo cheio de ponche de ovo com uma dose de conhaque ”[29].
Morreu em 5 de agosto de 1895 aos 74 anos. De acordo com seu “último desejo”, as cinzas foram lançadas ao mar em Beachy Head, perto de Eastbourne.
[1] HUNT, Tristam. Comunista de casaca. A vida revolucionária de Friedrich Engels. São Paulo: Record, 2010, p. 338.
[2] ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofía clásica alemana [1886]. Madrid: Fundación de Estudios Socialistas Federico Engels, 2006, p. 37.
[3] WELMOWICKI, José. As contribuições de Engels ao marxismo. Revista Marxismo Vivo – Nueva Época, n.º 16, 2020, pp. 55-68.
[4] LENIN, V. I. Federico Engels. Disponível em : <https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1890s/engels.htm>.
[5]  MARX, Karl. Prólogo a la Contribución a la Crítica de la Economía Política. Disponível em: < https://www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/criteconpol.htm#_ftn5>.
[6] Escreve Engels: “Quero fazer observar incidentalmente o que segue: como o ponto de vista aqui desenvolvido foi em sua máxima parte fundado e desenvolvido por Marx, e em sua mínima parte por mim, era óbvio entre nós que esta exposição minha não podia ser realizada sem colocá-la em seu conhecimento. Li para ele o manuscrito inteiro antes de levá-lo à gráfica, e o décimo capítulo da seção sobre economia (“Da História Crítica”) foi escrito por Marx; eu não tive senão que encurtá-lo um pouco, desgraçadamente, por causa de considerações externas. A colaboração de Marx se explica porque sempre foi costume nosso ajudar-nos reciprocamente em questões científicas especiais”.
[7] RIAZANOV, David. Marx y Engels. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2012, p. 276.
[8] LENIN, V. I. Carlos Marx. Breve esboço biográfico, com uma exposição do marxismo [1914]. Disponível em: < https://www.marxists.org/espanol/lenin/obras/1910s/carlos_marx/carlosmarx.htm#tactica>.
[9] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 209. Estes são os anos em que Marx e Jenny perderam três bebês devido à sua miséria: Heinrich Guido, Franziska e Edgar.
[10] Idem, p. 264.
[11] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 265.
[12] MAYER, Gustav. Friedrich Engels: una biografía [1934]. Madrid: FCE, 1979, p. 537.
[13] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 270.
[14] MAYER, Gustav. Friedrich Engels…, p. 537.
[15] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 273.
[16] Idem, p. 175.
[17] ENGELS, F. Contribución al problema de la vivienda. Disponível em : < https://www.marxists.org/espanol/m-e/1870s/vivienda/index.htm>.
[18] RIAZANOV, David. Marx y Engels. Buenos Aires: Ediciones IPS, 2012, p. 273.
[19] Engels a Johann Philipp Becker, 15/10/1884.
[20] O terceiro volume foi publicado em Hamburgo, em dezembro de 1894, apenas oito meses antes da morte de Engels.
[21] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 333.
[22] Idem, p. 335.
[23] LENIN, V. O oportunismo e a falência da Segunda Internacional. Disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm#n7>.
[24] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 356.
[25] East End era a área mais pobre e descuidada de Londres, associado com pobreza, doenças, superlotação e criminalidade.
[26] Idem, p. 368.
[27] MAYER, Gustav. Friedrich Engels…, pp. 879-880.
[28] La izquierda diario. El joven Engels. Disponível em: <https://www.laizquierdadiario.com/El-joven-Engels>.
[29] HUNT, Tristam. Comunista de casaca…, p. 388.
Tradução: Lilian Enck

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