O outono quente* e a esquerda fria
Os obstáculos à construção do partido que precisamos urgentemente
Escrito por Francesco Ricci
A sequência de Fibonacci e a de Ferrero[1]
A sequência de movimentos dos reformistas é previsível como a sucessão das estações do ano (de acordo, já não existem as “meias estações”) ou os números de Fibonacci[2],
Se relermos os comentários ao Congresso da Refundação Comunista do verão passado (ruptura com a “direita” partidária e eleição de Ferrero) veremos que o PdAC (Partido da Alternativa Comunista) foi um dos poucos que não acreditou no “giro à esquerda”. Levavam-se pelo entusiasmo com a saudação a punho fechado do ex-ministro Ferrero no palco do Chianciano a quem, acreditando no “giro”, esperava do renovado grupo dirigente “a prova” (a centésima prova).
Se os números de Fibonacci (para voltar à matemática, que é menos árida que certa política) são previsíveis, mas maravilhosos, porque possuem propriedades especiais, são encontrados nas pétalas das flores e nas obras de arte, como a música de Bach, os movimentos dos dirigentes reformistas, ao contrário, não satisfazem nem aos olhos nem à mente (ainda que paguem o apetite dos burocratas).
Imprevisíveis somente para quem não sabe fazer contas
Os números de Fibonacci são previsíveis para quem sabe contar; os giros realizados por Ferrero são previsíveis para quem sabe aplicar a experiência de décadas do movimento operário em matéria de “reformistas”. As coisas fazem-se mais complexas, em matemática, caso não se saiba fazer as contas; e, em política, se não se sabe ter em conta nem sequer a história mais recente. Uma história que demonstra que os dirigentes reformistas não se transformam quase nunca em revolucionários: menos ainda dez minutos após ter saído (com pesar) de um gabinete ministerial.
O bertinottismo[3], isto é, o reformismo dos tempos atuais, uma escola na qual cresceu não só Vendola[4] senão, também, Ferrero, é a melhor demonstração do teorema acima mencionado: cada aparente ação pela esquerda sempre tem servido, unicamente, para acumular forças para o posterior giro à direita. Isto é, para renegociar cargos de governo com a chamada “burguesia progressista” e, em troca, convencer os trabalhadores que a luta não deve se desenvolver, senão de modo atenuado e não pode ir além das colunas de Hércules: a sagrada propriedade capitalista e seus governos.
Uma vez mais à direita
O Comitê Político da Refundação Comunista, realizado em meados de setembro, aplicou o teorema. O giro à direita foi de proporções iguais e contrárias ao giro anterior à esquerda. Foram tão longe nas primeiras palavras – até suscitando os entusiasmos da esquerda interna, como Falcemartello[5], que colocou na primeira página uma entrevista com Ferrero: “Não se volta atrás no tema da revolução” – que agora chegam aqui para contrabalancear.
Tão brusco foi o “giro” que Falcemartello caiu da Secretaria – mantendo fora as outras minorias: Ernesto e Contracorrente – enquanto que incorporaram, com muita rapidez, à direita ex vendoliana, promovendo Rocchi e Rinaldi à Secretaria. Não é só um problema de grupos dirigentes – o que seria de pouco interesse -: com esta nova maioria, Refundação se apressa a buscar novos acordos de governo com o PD (Partido Democrático) para as eleições regionais. E, para demonstrar a quem quisesse, que os punhos fechados e as bandeiras vermelhas de Chianciano eram só uma cenografia, Ferrero chegou a falar, inclusive, de uma “legislatura de salvaguarda constitucional”, isto é, um “governo de um ano” que, no caso de que caía Berlusconi, se ocupe do “conflito de interesses, lei eleitoral e outras poucas coisas”.
Agora, que estamos em plena crise econômica do capitalismo e de uma retomada iminente do confronto de classe que se anuncia de dentro das fábricas[6]: qualquer um pode imaginar o que seriam as “outras poucas coisas” que faria um governo do PD e da UDC (Democracia Cristã).
Mas não é só isso: se Berlusconi cair (pelos problemas judiciais derivados de uma anulação do laudo Alfano) as hipóteses mais prováveis são as eleições ou um governo de curto mandato com a “benigna abstenção” do PD (hipótese Scalfari). A disponibilidade mostrada por Ferrero é outro sinal ao PD e à burguesia: o grupo dirigente da Refundacão está colocando a casa em ordem (após a cisão bertinottiana) e está disposto a ocupar o papel de mordomo do governo: hoje, nas regiões – sobre a base dos habituais “acordos de programa, situação por situação” que, se aceitam apostas, se farão por todos os lados -, e amanhã, nacionalmente. Nesse ínterim a Refundacão cumpre o papel de tranqüilizar “as ruas do outono“, atuando no campo político, enquanto no sindical já o faz, permanentemente, a CGIL de Epifani (o que demonstra o jantar em Cernobbio com Marcegaglia[7]) e a suposta “esquerda sindical” de Rinaldini, que se ocupa de conter o “terreno mais avançado” (como já reconheceu a mesma Marcegaglia).
As posições sobre a guerra no Afeganistão também são uma prova adicional de confiabilidade aos olhos da burguesia, sem dúvida, Refundação não pode pedir outra coisa, que não a retirada das tropas (para que esqueçam que votou pelo seu envio); mas é uma solicitação inócua que vai acompanhada das afirmações de Ferrero – “a paz faz-se com os inimigos” – que clarificam a leitura ferreriana da consigna central dos comunistas diante da guerra – “o principal inimigo está em seu próprio país” –: Ferrero a lê ao contrário, da direita à esquerda (segundo a tradição reformista, do dia 4 de agosto 1914 em diante[8]). Os “próprios” governantes (os imperialistas) são convidados a sentar à mesa para discutir “a paz” com as populações que estão matando, como se tratasse de uma briga por merenda, em lugar de guerras pelos benefícios milionários sobre os quais está montado este sistema.
Neste esquema é que se move Ferrero (que sonha, quiçá, voltar um dia, não distante, a seu posto de ministro “de luta”). O problema para ele é que não está dito que o jogo de acumular forças à esquerda, para depois gastá-las à direita, ainda funcione: é certo que ele tem se saído bem neste “jogo”, mas não é o caso de acreditar ser Napoleão, senão quiser passar por louco.
Centristas produzem centristas
Quem nos lê sabe que, quando falamos de “centristas”, não pensamos nos Casini (no sentido de Pierferdinando) senão, retomando a Lenin, nos referimos às organizações que oscilam entre reformistas e revolucionários; em geral, ajustando as ações aos primeiros e o discurso aos segundos. Na Itália, as duas forças centristas mais conhecidas são Esquerda Crítica e o Partido Comunista dos Trabalhadores (PCL, sigla em italiano), que são as outras duas organizações que, como nós, nasceram das cisões da Refundação Comunista.
Do PCL não há muito de novo por dizer, sendo sua atividade limitada às participações na mídia (em queda) dos seus líderes. Salvo em algumas cidades, é um partido que não atua no mundo real, no sentido que do número de militantes declarados (três mil há um ano) ninguém nunca conseguiu ver mais do que uns cinqüenta nas praças, e três ou quatro nas assembléias nacionais sindicais ou do movimento social. E sua função – em que pese à boa fé da grande parte destes companheiros – é a de fazer de “pano de fundo” para seus líderes, na presença das câmeras de TV. A proposta central do PCL continua sendo a do “parlamento de esquerda”. O que é exatamente este “Parlamento”? Qual é seu objetivo? A quem está dirigido? Quem deveria fazer parte dele? São perguntas sobre cujas respostas vigoram a máxima discrição.
O discurso da Esquerda Crítica é distinto. Aqui nem sequer temos a “organização enraizada” da que falava Flavia D’Angeli na campanha eleitoral de um ano atrás. A verdade é que nenhuma das três forças à esquerda da Refundação tem hoje este “enraizamento”. Mas aqui se trata de encontrar militantes de carne e ossos e, eles reconhecem – enfim, um pouco de franqueza – nos textos para o seu iminente Congresso, que “daqueles que romperam com o PRC (Partido da Refundação Comunista) esperávamos mais” e que a situação não é fácil.
Os documentos do seu Congresso afirmam uma série de coisas bastante genéricas e genericamente compatíveis sobre a análise do mundo. O problema está com o que falta na proposta política e estratégia. Falta (ou melhor, é eliminada) a necessidade de construir um partido; falta (ou melhor, é excluído) o conceito de programa transitório para ganhar as massas em uma perspectiva de poder dos trabalhadores. E estas duas faltas – partido e programa – combinam-se bem com a permanente confusão centrista sobre a questão do poder: não há nenhuma autocrítica sobre o apoio, ainda que “distante”, acordado com Romano Prodi por parte de Turigliatto, por um longo período.
A isto há que agregar que, sobre a necessidade de um partido comunista internacional, se dá um passo atrás: não será mais – como o NPA, Novo Partido Anticapitalista, de Besancenot na França- a seção do Secretariado Unificado (organização que vai a uma substancial dissolução e continuará sendo somente “uma rede de informação”). Partido, programa, poder, internacional: os pilares de um partido comunista estão sendo retirados. A proclamada fortaleza “anticapitalista” transforma-se em uma ruína em pó.
Não é estranho, então, que em contraposição ao documento da Maioria, se discutiu um texto alternativo (de Antonio Ardolino e outros) que, com grande lucidez, propõe explicitar o que no texto de Turigliatto é implícito, desenvolvendo a linha da Esquerda Crítica até as suas últimas consequências: a necessidade “para esta etapa” de um programa “radicalmente reformista” e a entrada (visto que não se fala de construir um partido) na Federação de Esquerda junto com o PRC e PdCI.[9]
Que propomos fazer, em alternativa?
Acompanhando de perto a esquerda reformista e centrista, é evidente que nenhum destes projetos cumpre as exigências desta etapa, e um crescimento organizado das lutas, e por esta via a construção de uma unidade da classe: unidade que só pode se efetuar com plena independência da burguesia, de seus partidos, de seus governos e de seus agentes burocráticos nos sindicatos e nos partidos, em uma perspectiva de alternativa de poder dos trabalhadores.
Esta exigência é o centro do debate do II Congresso do PdAC (janeiro de 2010). Esta é a linha que estamos mantendo com grande esforço. De fato, sozinhos à esquerda (que outras forças têm tomado, por exemplo, uma posição internacionalista após a morte dos jovens soldados da Folgore na guerra colonial do Afeganistão?).
Continuaremos neste caminho, com nossa pequena, mas organizada força, e sabendo que sozinhos não o faremos e tentando envolver o maior número de companheiros que – até agora, nos observaram, acompanham nossa imprensa e nosso site, têm estado conosco nas ruas, e agora estão lendo este artigo – queiram se comprometer conosco na construção do Partido Revolucionário que se faz urgente e necessário.
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Artigo publicado no site do PdAC, em 02/10/2009
* Referência as lutas sindicais operárias que se desenvolveram a partir do outono de 1969 na Itália – ver no site do PSTU “Especiais” artigo de Ruggero Mantovani do PdAC;
[1] Paolo Ferreno: dirigente da Refundação Comunista;
[2] Sequência de números, na qual o próximo número é a soma dos dois anteriores e assim sucessivamente.
[3] Referência a Fausto Bertinotti fundador da Refundação Comunista e, por vários anos seu principal dirigente;
[4] Nichi Vendola: ex dirigente da Refundação Comunista. Rompeu pela direita para somar-se a construção do PD (Partido Democrático);
[5] Revista de uma corrente da ala esquerda da Refundação Comunista;
[6] Referência a vários conflitos ocorridos na Itália em que os trabalhadores ocuparam os tetos das fábricas para chamar atenção da imprensa;
[7] Emma Marcegagglia: presidente da Confindustria, principal organização da patronal italiana;
[8] Data do início da I Guerra Mundial, quando os principais partidos europeus da Segunda Internacional apoiaram a seus respectivos governos imperialistas.
[9] PdCI – Partido dos Comunistas Italianos.