Equador | O “Paro” não para

Por: Lena Souza e Vero Chulde
“El Paro no para – A Paralização não acaba”. Esta é a consigna que ressoa em todo o Equador. Em meio a atropelos vindos de cima e rebeliões vindas de baixo, a luta do povo equatoriano continua. Tensões e contradições se aprofundam em meio a uma valente resistência que enfrenta a repressão estatal, a manipulação da mídia e a criminalização do protesto social.
Atropelos vindo de cima
Embora o governo de Daniel Noboa se sustente, por um lado, na força bruta da repressão e, por outro, na desinformação sistemática disseminada pela grande mídia aliada ao poder econômico e político, as contradições internas do regime não podem mais ser ocultadas.
Nos últimos dias, enquanto se desatava a violenta repressão na província de Imbabura, particularmente na cidade de Otavalo, o aparato midiático do governo tentou vincular a resistência popular com a mineração ilegal e com os atentados de grupos narcotraficantes, como o carro-bomba em Guayaquil e outros incidentes violentos. No entanto, as mentiras não se sustentam: os próprios veículos de comunicação que repetiram as versões oficiais foram forçados a retificar.
O Ministro do Interior, John Reimberg, acabou admitindo que o ataque foi obra do grupo criminoso organizado “Los Lobos”, desmentindo as declarações anteriores do Ministro dos Transportes, Roberto Luque, e do Governador de Guayas, Humberto Plaza, que haviam insinuado que os manifestantes estavam por trás desses atos.
Essa contradição expõe a dupla moral do governo, que está mobilizando mais de 5.000 efetivos das forças de segurança para atacar brutalmente manifestantes em Otavalo e outras cidades, enquanto nas regiões mais afetadas pelo narcotráfico, criminosos continuam agindo impunemente, assassinando autoridades locais, extorquindo comerciantes e semeando o terror sem nenhuma resposta real do Estado.
Além disso, na semana passada, a grande mídia, que repete a narrativa oficial – segundo a qual os manifestantes são “terroristas” e “violentos” – foi forçada a reconhecer fatos que contradizem sua própria narrativa. Em um dos casos mais emblemáticos, um jornalista de uma das principais redes de televisão do país foi agredido pelas forças de segurança enquanto cobria as manifestações.
Ao mesmo tempo, dezenas de ataques foram registrados contra a imprensa comunitária e independente, cujas reportagens sobre repressão, invasões ilegais e detenções arbitrárias de líderes sociais são sistematicamente silenciadas ou invisibilizadas pela grande mídia.
Assassinatos e Criminalização

Até o momento, organizações de direitos humanos relataram centenas de prisões arbitrárias, desaparecimentos e pelo menos três pessoas assassinadas pelas forças de segurança durante os protestos. A terceira vítima foi José Alberto Guamán Izama, membro da comunidade Kichwa, de 30 anos, pai de dois filhos e agricultor da comunidade de Chachibiro, em San Rafael de Otavalo. Ele morreu após ser baleado no peito pelas forças de segurança na última quinta-feira, durante o 24º dia da paralisação.
Com o falecimento de Guamán, agora são três mortes confirmadas durante a paralisação nacional iniciada em 22 de setembro em protesto contra o decreto que eliminou o subsídio ao diesel. As outras vítimas são Efraín Fuérez, dirigente comunitario de Imbabura, que recebeu três tiros nas costas, e Rosa Elena Paqui, uma mulher Kichwa de 61 anos de Saraguro, que morreu após sofrer uma parada cardíaca causada pela inalação de gás lacrimogêneo disparado pelas forças repressivas durante um protesto na provincia de Loja.
Essas mortes não são fatos isolados: são o resultado direto da repressão brutal do governo contra um povo que exige justiça, dignidade e o direito de viver sem fome ou exclusão.
Por baixo: rebeliões na base e justiça indígena frente a dirigentes que negociam sem consultar
Enquanto Daniel Noboa mantém sua retórica “valente”, afirmando que não cederá à pressão social, as bases indígenas e camponesas continuam sua luta. Nesta quinta-feira, em meio a uma aparente trégua, negociações ocorreram com alguns/as dirigentes. Após mais de três semanas de paralisação e confrontos na província de Imbabura, uma delegação governamental liderada pelo Ministro do Interior, John Reimberg, reuniu-se em Otavalo com representantes da Federação Indígena e Camponesa de Imbabura (FICI) e da União das Organizações Camponesas de Cotacachi (UNORCAC), entre eles Mesías Flores, Martha Túquerres e Manuel Catucuago. A CONAIE não esteve representada na reunião.
A reunião, que durou aproximadamente cinco horas, chegou em um acordo parcial que o governo divulgou como o fim da paralisação na província, embora muitas comunidades não o reconheceram.
Principais pontos do acordo:
• Estabelecimento de mesas técnicas entre o governo e as organizações locais para analisar as demandas territoriais.
• Analisar o congelamento do preço do diesel
• Rever os procedimentos judiciais e libertar alguns detentos presos durante os protestos.
• Assistência médica aos feridos e às famílias das vítimas.
• Retirada progressiva das forças policiais e militares das comunidades mobilizadas.
Embora esses/as dirigentes tenham concordado em iniciar conversas com representantes do governo, a maioria das bases rejeitou qualquer negociação sem consulta prévia, exigindo que a paralisação continue até que as principais reivindicações sejam atendidas: o restabelecimento do subsídio ao diesel, a libertação dos detidos, o esclarecimento dos assassinatos cometidos pelas forças de segurança e o respeito aos territórios comunitários diante da mineração e da militarização. O governo anunciou a libertação de doze detentos, que estavam em prisões de alto risco. No entanto, as comunidades receberam a notícia com cautela, pois muitos dos detidos permanecem processsados e sem garantias judiciais.
“Não se negocia com sangue derramado”
Entre as comunidades, permanece um profundo sentimento de descontentamento com os/as dirigentes que decidiram negociar sem o consentimento das assembleias. Em vários territórios, mecanismos de justiça indígena foram aplicados contra aqueles que, segundo a base, “agiram pelas costas do povo”. Dirigentes comunitários expressaram que “não se pode negociar enquanto companheiros estão sendo assassinados, desaparecidos e presos”.
Apesar das tentativas do governo de projetar uma imagem de calma, a luta continua ativa. Enquanto focos de resistência permanecem em Imbabura, as mobilizações continuam em outras províncias. Em Quito, estudantes da Universidade Central do Equador voltaram às ruas em apoio à paralisação, denunciando a repressão e exigindo justiça para os manifestantes assassinados. No sul, o povo Saraguro tem mantido bloqueios na rodovia Loja-Cuenca, reafirmando sua rejeição ao aumento do preço do diesel e à militarização de seus territórios. Da mesma forma, o povo Kitu Kara e organizações urbanas bloquearam intermitentemente as estradas de acesso à capital, enquanto em províncias como Cotopaxi, Chimborazo e Pastaza, os bloqueios de estradas e as manifestações populares persistem, demonstrando que a luta se estende para além das direções e que o país continua mobilizado a partir das bases.
Uma trégua frágil e uma segunda-feira incerta
Por enquanto, prevalece uma calma tensa, mas a trégua pode se romper a qualquer momento. Organizações locais alertam que, se não houver respostas concretas e respeito às decisões coletivas, as mobilizações serão retomadas com maior força na próxima segunda-feira.
Continuidade histórica da resistência a partir das bases
Os povos não esperam ordens ou intermediários, mas agem coletivamente, com suas próprias formas de tomada de decisão, justiça e organização. Esta nova fase de resistência, que combina a memória de outras revoltas com a experiência cotidiana de repressão e pobreza, questiona não apenas o governo Noboa, mas também um modelo político que tenta domesticar a rebelião popular.
Enquanto o governo tenta impor um estado de emergência permanente, o povo equatoriano demonstra que a dignidade não se rende. O Paro não para, porque a luta do povo equatoriano é pela vida, pela justiça e pela soberania diante de um modelo que só oferece violência e miséria.