Palestina: Genocídio e guerra de libertação
Por: Bernardo Cerdeira e José Welmowicki |
Quando esse artigo estava sendo escrito, completavam-se 420 dias do genocídio promovido pelo Estado nazista de Israel contra a população de Gaza resultando em 44 mil mortos e 104 mil feridos. A estes crimes podemos acrescentar 800 mortos na Cisjordânia, 3.600 no Líbano; 11.700 palestinos presos por Israel na Cisjordânia e muitos milhares mais em Gaza (não existe uma contagem conhecida).
O genocídio atual (o genocídio histórico contra os palestinos já dura mais de 70 anos) é fruto de uma guerra que começou com o ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, mas que Israel aproveitou para desencadear o massacre da população civil em Gaza e uma guerra regional atacando em 7 frentes, algumas com mais intensidade e confrontos diários (Gaza, Líbano e Cisjordânia) outros com bombardeios mais esporádicos de parte a parte (Iêmen, Iraque e Irã) e ataques a Síria por parte de Israel.
Em diferentes artigos anteriores, a LIT havia assinalado alguns elementos centrais da situação da guerra em curso:
Primeiro que havia “…um relativo fortalecimento de Netanyahu e Israel imediatamente após a ofensiva no Líbano, o assassinato de Nasrallah e a maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar, o principal líder do Hamás.”
Ao mesmo tempo se prevenia que: (…) esse fortalecimento é relativo porque a resistência palestina e do Hezbollah não foi derrotada. Embora as vitórias israelenses tenham sido o produto de sua superioridade militar, particularmente no ar e no campo da inteligência, Israel também está sofrendo perdas (mais do que afirma).
Além disso, Israel não conseguiu estabilizar sua ocupação terrestre de Gaza e do sul do Líbano. A história já mostrou que as guerras de libertação nacional envolvendo milhões de pessoas podem derrotar as ocupações terrestres até mesmo pelos exércitos mais fortes, como no caso do Vietnã, Iraque, Afeganistão ou mesmo a derrota de Israel pelo Hezbollah no Líbano em 2000 e 2006.
Por outro lado, alertava que: “(…) as vitórias israelenses exigem uma política de contrarrevolução permanente, de expansão da Nakba no plano do “Grande Israel”. Externamente, Israel continua a perder a batalha pelos corações e mentes das classes trabalhadoras e da juventude, com uma crescente rejeição de Israel entre uma parte significativa das massas do mundo e tensões entre as massas árabes contra a capitulação dos governos da região ao genocídio sionista. ”
Apenas 15 dias depois desses acontecimentos, confirmou-se o acerto da caracterização de que o fortalecimento do governo de Netanyahu era relativo e que as vitórias de Israel com o assassinato da maior parte da liderança do Hezbollah e de Sinwar do Hamas, embora muito importantes, eram táticas e não superavam as agudas contradições de Israel. Na verdade, a realidade mostrou que essas contradições são mais profundas.
Recuperação do Hezbollah e guerra regional
Como em toda guerra, é preciso analisar, em primeiro lugar, a situação no campo de batalha. O ataque de Israel ao Líbano e a tentativa de invadir e ocupar o Sul deste país, marcaram um novo patamar para a guerra, que já pode ser caracterizada como uma guerra regional. Apesar do Hezbollah ter sofrido um duro golpe com o assassinato de seu secretário-geral e da maior parte da sua liderança, os dias seguintes mostraram que isso não destruiu suas capacidades militares.
Ao contrário, o Hezbollah intensificou sua ação militar nos dois terrenos: bombardeios sobre o norte e o centro de Israel e o confronto terrestre com as divisões de Israel que tentaram ocupar o Sul do Líbano, mostrando uma alta capacidade de recuperação.
Na guerra aérea, os drones e misseis estão cumprindo um papel fundamental. O Canal 12 da TV israelense, destacou que desde o início de novembro de 2024, foi lançado um número recorde de drones em direção a Israel, em meio a uma guerra em várias frentes, observando que “nas últimas semanas, os lançamentos de drones se tornaram rotina”.
O canal relatou que nos primeiros 13 dias deste mês, houve 40 ataques de drones, com média de 3,3 ataques por dia, com vários drones em cada ataque totalizando “1.300 drones lançados de todas as frentes” em direção a “Israel” desde o final de outubro de 2024. O canal ainda observou que 61% dos drones lançados em direção a “Israel” em novembro tiveram origem no Líbano, com um grande número também vindo do Iêmen e do Iraque.
O mesmo canal relatou que, desde o início da guerra, mais de 200 drones penetraram com sucesso nas defesas aéreas e atingiram alvos, confirmando que esses drones causaram grandes perdas e danos nos últimos meses. Em outubro, por exemplo, um drone do Hezbollah atingiu o campo de treinamento da Brigada Golani em Binyamina, cidade ao norte de Telaviv, matando 4 soldados e ferindo 61 integrantes da tropa.
No dia 14/11, o Hezbollah anunciou que pela primeira vez lançaram um enxame de drones unidirecionais contra a base de Kirya, na cidade de Tel Aviv, que abriga a sede do Ministério da Segurança de “Israel”, o Estado-Maior, a Sala de Gerenciamento de Guerra e a autoridade de monitoramento e controle de guerra da Força Aérea.
Em 16/11 o Hezbollah atacou Haifa, a terceira maior cidade de Israel, com mísseis e drones atingindo várias bases militares, entre as quais o quartel-general do comando naval Shayetet 13 em Atlit, ao sul de Haifa, a Base Naval Stella Maris, as Bases Técnica e Naval de Haifa, a Base Tirat Carmel e, pela primeira vez, a Base de Combustível Nesher.
A situação da frente de guerra libanesa mudou. Israel tentou ocupar o Sul do Líbano para criar uma zona de exclusão que impedisse o Hezbollah de lançar mísseis e drones contra objetivos militares e cidades do Norte e Centro de Israel que provocaram o deslocamento de 100 mil refugiados internos.
Para isso enviou 50 mil soldados e suas melhores divisões, entre elas a Brigada Golani, para tentar invadir e ocupar o Sul do Líbano. A tentativa de invasão foi confrontada por uma forte resistência do Hezbollah, gerando combates diretos. Israel foi repelido com fortes perdas e não conseguiu ocupar limitando-se a incursões sobre alguns vilarejos. A partir daí, recuaram para Israel e até a data em que esse artigo foi escrito não conseguiram mais ocupar e sim somente bombardear o Líbano.
Guerra no solo: mortos e feridos no Exército de Israel
Embora frequentemente o comando das Forças armadas de Israel oculte números de baixas como parte de uma política sistemática sob o pretexto de “censura militar”, o exército israelense reconhece a morte de 793 soldados desde o início da guerra.
Os dados também revelam que 192 oficiais israelenses foram mortos, indicando que um em cada quatro oficiais mortos era um comandante. Entre os mortos estão 67 comandantes de pelotão, 63 comandantes de companhia, 20 vice-comandantes de companhia, 7 vice-comandantes de batalhão, 5 comandantes de batalhão e 4 comandantes de brigada. Do total de fatalidades, 48% eram recrutas, 18% serviram em “serviço permanente” e 34% eram reservistas.
Em 14/11, o Canal 14 informou que em 48 horas, 11 oficiais e soldados israelenses foram mortos e mais de 10 ficaram feridos em batalhas em Gaza e no Líbano. A tendência a um aumento de baixas com a nova frente do Sul do Líbano é demonstrada pela decisão das Forças Armadas de Israel da abertura de 600 novas sepulturas no cemitério militar.
Pelos dados fornecidos através da imprensa israelense e de alguns meios árabes como Al Mayadeen e Al Jazeera, as baixas na frente do Sul do Líbano já passaram de 98 mortos e 1 mil feridos somente nas primeiras 4 semanas da tentativa de invasão terrestre das forças militares sionistas, atingindo fortemente o dispositivo militar sionista.
Tão ou mais importante que o número de baixas fatais é o número de feridos das Forças Armadas de Israel nesse ano de guerra porque afetam a sua capacidade operacional e o moral da tropa. O Ministério da Saúde de Israel anunciou, em 14 de novembro, que o número total de internações hospitalares desde 10 de outubro de 2023 chegou a 22.047.
Desse total, o Departamento de Reabilitação do Ministério da Segurança de Israel revelou recentemente que recebeu para reabilitação pelo menos 12.000 soldados desde o início da guerra em outubro de 2023, incluindo aqueles diagnosticados e sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).
Aproximadamente 43% dos 12.000 soldados sofrem de TEPT, enquanto 14% sofreram ferimentos moderados a graves, incluindo 23 casos de traumatismo craniano grave, 60 casos de amputação e 12 que perderam permanentemente a visão.
Apenas durante a semana de 7 a 14 de novembro o ministério registrou 321 feridos. Entre estes, 21 casos foram registrados no norte de Israel (em 24 horas), e 202 feridos foram registrados desde essa última atualização.
As internações atingem pouco mais de 5% do IOF composto por aproximadamente 450 mil efetivos – 150 mil efetivos permanentes e 300 mil reservistas, ou seja, 66% dos soldados da ocupação são reservistas sendo que dezenas de milhares são de função de apoio não de combate.
Entre mortos e feridos durante esse ano de guerra, a Força de Defesa de Israel perdeu quase duas divisões, enfrentando uma grave escassez de soldados. Segundo o alto comando, o exército necessita urgentemente de 7.000 recrutas
Há um nítido desgaste e descontentamento entre as fileiras do exército motivados pela duração da guerra (1 ano e 1 mês), a mais longa da existência de Israel; pelas falhas no dispositivo militar israelense e pela extensão dos combates no solo em 3 frentes (Gaza, Líbano e Cisjordânia). Essa realidade obriga os reservistas a se revezarem continuamente para cobrir as lacunas nas distintas frentes. Começou a haver um movimento de reservistas para não retornar ao front (em Israel todos são reservistas até os 50 anos). Tudo isso pressiona fortemente o próprio comando militar para que faça uma pausa na guerra.
Avi Ashkenazi, correspondente militar do jornal israelense Maariv, destacou uma crise crescente dentro do exército israelense que pode minar os esforços para pressionar o Hezbollah. Ele enfatizou que a escassez de combatentes da reserva enfraqueceria a capacidade do exército israelense de aplicar pressão militar sobre o Hezbollah, potencialmente dificultando quaisquer esforços para resolver a guerra.
Ashkenazi citou uma conversa com soldados da reserva na Brigada Golani, que falaram sobre as “dificuldades econômicas e familiares” que enfrentaram após mais de um ano de combate, com alguns já tendo servido mais de 250 dias.
Os soldados expressaram frustração com a forma como os líderes israelenses os tratam: “Estamos enfrentando ruína financeira, os negócios estão à beira do colapso e os soldados estão sobrecarregados com dificuldades pessoais e profissionais. Nós nos alistamos por um senso de dever, mas parece que o governo demonstra pouca consideração por nossos sacrifícios ou bem-estar.”
Por outro lado, o jornal diário israelense Yedioth Ahronoth relatou que os militares estão preocupados com um declínio de 15% a 25% na participação no serviço de reserva.
A essa situação se soma o problema dos Haredim, judeus ortodoxos dispensados por lei de servir o Exército e de trabalhar para dedicar-se ao estudo da Torá, recebendo subvenções permanentes do Estado para isso. Todos os anos, muitos também viajam para Uman, na Ucrânia, para celebrar o Ano Novo Judaico.
A comunidade Haredim tem um grande peso em Israel, constituindo aproximadamente 13% da população de “Israel”. Em uma situação grave como esta, uma parcela cada vez maior dos israelenses se indigna contra esses privilégios dos religiosos. Em junho de 2023, a Suprema Corte de Israel decidiu que os judeus ultraortodoxos devem ser submetidos ao recrutamento como outros cidadãos israelenses, intensificando as tensões.
Após essa decisão, o regime começou a emitir ordens de recrutamento para homens Haredim com idades entre 18 e 26 anos. Relatórios iniciais indicaram resistência significativa, com muitos indivíduos não respondendo aos rascunhos de notificações. Na sexta-feira, o Ministério da Segurança de Israel anunciou planos para o alistamento gradual de 7.000 judeus ultraortodoxos nas forças armadas.
O problema para o governo é que os partidos que representam os Haredim são fundamentais para sustentar a coalizão governamental. Por isso, Netanyahu está articulando uma lei que permita continuar essa isenção.
Yair Lapid, o líder da oposição israelense, pediu à liderança e às instituições do regime que neguem financiamento público, passaportes e privilégios de viagem aos haredim que se recusem a servir nas forças armadas.
Em declarações à Rádio do Exército de Israel, Lapid exigiu: “O recrutamento de Haredim é uma questão de valores, e eles devem se alistar. (…) Se não o fizerem, não devem receber orçamentos, não devem obter passaportes e não devem ser autorizados a viajar para Uman (Ucrânia).” Mas até agora os haredim têm recusado a se alistar.
Genocídio e guerra de Resistência
Não há dúvida que o genocídio perpetrado por Israel em Gaza, a resistência palestina liderada pelo Hamás e a resistência do Hezbollah, estão no centro da luta de classes mundial e tem atraído um movimento internacional de repúdio a Israel e apoio aos palestinos.
No entanto, entre os que denunciam o genocídio praticado por Israel, existem muitos setores pacifistas, inclusive setores da esquerda, que opinam que o atual conflito que se desenvolve na Palestina é essencialmente um genocídio da população palestina e não uma guerra porque somente um lado (o de Israel) ataca e a desproporção de forças é brutal.
Sem dúvida, o genocídio praticado por Israel é um fato. O objetivo de Israel é aterrorizar a população civil, destruir o Hamas e o Hezbollah, avançar na limpeza étnica para se apropriar do território de Gaza e Cisjordânia e criar uma zona tampão no Sul do Líbano. E claro, a desproporção militar de forças é enorme. Isso também é um fato.
Mas dizer que só há um genocídio é unilateral. Também há uma forte guerra de resistência não só do Hamas como de toda a Resistência palestina unificada: Jihad islâmica, Al Fatah, FPLP, FDPLP, Movimento Mujahideen Palestino e vários outros grupos menores. Quais são os elementos que demonstram que há um enfrentamento militar?
Há enfrentamentos diários, documentados em vídeos e divulgados nas redes sociais, entre as forças da Resistência e as tropas israelenses. É uma guerra de guerrilhas onde a Resistência sai dos túneis, arma emboscadas para as tropas de Israel e retorna aos túneis. Só nos primeiros quinze dias de novembro, a Resistência matou 24 soldados israelenses.
Essa resistência militar é um elemento decisivo para que Israel não tenha conseguido derrotar, e muito menos erradicar, o Hamas e a Resistência depois de mais de um ano de uma ação militar brutal em Gaza, bombardeios constantes, destruição de 70% das residências em Gaza, invasão, cerco e pressão pela fome, falta de eletricidade, água, esgotamento sanitário, etc. O simples fato de não ter conseguido eliminar a Resistência depois de mais de um ano de guerra é uma derrota para Israel
Por outro lado, se fosse certo o que Israel apregoa, que o Hamas e a Resistência já perderam 80% ou 90% dos seus efetivos e não podem opor resistência, por que o Hamas se sente com forças para recusar o cessar-fogo nas condições de Israel, que pretende impor a continuidade da ocupação militar? Evidentemente porque pode sustentar a guerra de guerrilhas por mais um tempo considerável.
Se fosse certo que quase não há resistência armada, por que Israel não consegue acabar de vez com a guerra? Há uma combinação de aspectos políticos internacionais e nacionais que abordaremos mais adiante e que impediram, até agora, o triunfo de Israel, mas do ponto de vista militar a resistência palestina é um elemento decisivo.
O Hamas e a Resistência palestina se encontram em uma posição político-militar defensiva o que lhes permite manter a luta. Não só os combatentes se protegem nos túneis, mas defendem sua terra e seu povo de um agressor genocida e estão indissociavelmente mesclados com a população de onde recebem apoio e a adesão de novos contingentes de combatentes. Isso é típico das guerras de libertação.
Uma vitória militar de Israel exigiria que o exército israelense invadisse e ocupasse definitivamente Gaza e simultaneamente destruísse os 700 km de túneis para caçar e eliminar os soldados da Resistência. O problema é que, além do resultado dessa ação implicar em um alto custo militar, certamente provocaria a morte dos aproximadamente 100 reféns em poder do Hamas e mais dezenas ou até centenas de milhares de baixas civis palestinas, o que exacerbaria a indignação da opinião pública internacional e a preocupação crescente de parte da opinião pública interna de Israel com o resgate dos reféns.
A esse elemento se agrega o problema da baixíssima moral de uma tropa de ocupação que só está acostumada a reprimir covarde e cruelmente manifestantes desarmados, crianças e adolescentes, protegidos por intensos bombardeios. Entrar em um túnel para enfrentar combatentes altamente motivados, dispostos a morrer como mártires porque não tem outra opção é algo muito diferente e que exigiria uma moral que o exército israelense, que já se encontra esgotado depois de um ano de guerra, está longe de ter.
Outro problema crescente para Netanyahu é a mobilização das famílias dos reféns, furiosas porque ele não aceita nenhuma proposta de cessar fogo e trocas dos reféns pelos prisioneiros palestinos nos cárceres de Israel.
Além disso, existe uma situação de guerra também na Cisjordânia. Em resposta às operações militares do exército israelense, cresce a resistência armada, principalmente no norte da região em cidades como Jenin, Tulkarm, Nablus, Tubas e nos campos de refugiados ao redor, mas que também está se estendendo a cidades do centro e do sul como Hebron, Ramallah e Belém. É uma resistência diferente e superior às Intifadas, porque dessa vez há uma organização de vários grupos de combatentes armados com armas leves e dispositivos explosivos improvisados.
Todas essas dificuldades de Israel nessa, repetimos, mais longa guerra de sua história, não demoveram o governo Netanyahu de seu plano sinistro: promover uma limpeza étnica no Norte de Gaza para permitir uma ocupação militar permanente do Exército; construir uma faixa militarizada com fortificações no corredor de Netzarim que cruza a Faixa de Gaza de Leste a Oeste dividindo Gaza ao meio e ocupar também o corredor Filadélfia na fronteira do Egito. Tudo isso está em curso, mas sua implementação depende do desfecho da guerra e da luta de classes internacional e nacional.
A mobilização internacional e a crise de Israel
Na primeira parte desse artigo nos preocupamos em demonstrar que a ação militar de Israel está longe de ser um passeio que não encontra resistência, ao contrário. Mas agora, temos que ver o que está passando em Israel.
Segundo Carl von Clausewitz, o general prussiano que foi um dos mais importantes teóricos militares, “A guerra é a continuação da política por outros meios”. Concordando com essa frase, não podemos isolar o genocídio em Gaza e a resistência armada dos palestinos do contexto internacional e da situação interna em Israel.
O massacre praticado por Israel desencadeou mobilizações ao redor de todo o mundo contra o genocídio, em defesa dos palestinos e por um cessar-fogo. Os protestos foram muito além dos países muçulmanos e ganharam importância principalmente nos Estados Unidos e Europa. Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história.
Quando Israel reage ao ataque do Hamas e começa a guerra, o governo Netanyahu estipulou 3 objetivos: trazer de volta os reféns; acabar com as “capacidades militares e de governo” do Hamas e “garantir que Gaza não represente uma ameaça local a Israel” no futuro, ou seja, ocupando ou controlando o território. Mais recentemente, o governo passou a falar em um quarto objetivo que seria garantir o retorno seguro dos habitantes do norte de Israel que tiveram que abandonar a região por causa dos ataques do Hezbollah.
É importante ressaltar que, ao princípio, o ataque do Hamas provocou uma reação violenta da população e que a maioria absoluta apoiou a guerra, a destruição do Hamas e da Resistência Palestina e inclusive o genocídio. Os partidos políticos, a burguesia e as FFAA se uniram em torno de um governo de unidade nacional com Netanyahu a frente.
Netanyahu falava em acabar com o Hamas em dias ou, no máximo semanas. É evidente que se os objetivos de guerra estivessem sendo alcançados, ou seja, se houvesse apenas o genocídio, um passeio militar e houvesse a libertação progressiva de vários reféns, produto da ofensiva militar, a população, os partidos políticos e a burguesia continuariam unidos em torno do governo.
Mas está acontecendo exatamente o contrário: há uma profunda crise em Israel provocada pelo impasse depois de um ano de guerra e o governo Netanyahu continua questionado por todos os lados. O assassinato de Sinwar, de Nasrallah e do alto comando do Hesbollah fortaleceram temporariamente o governo, mas a realidade é que nem um dos objetivos traçados por Netanyahu foi alcançado.
Os reféns não só não foram resgatados como a morte de 6 reféns provocou mobilizações massivas de centenas de milhares de manifestantes, inclusive uma greve geral, contra o governo de Netanyahu e a favor de um acordo de cessar-fogo que permita a sua libertação. Fato inédito em Israel no meio de uma guerra.
O Hamas está longe de ser destruído e a ofensiva israelense no Sul do Líbano, tentando ocupar uma zona tampão que impedisse o lançamento de mísseis e drones pelo Hezbollah, depois de mais de um mês de intentos, não conseguiu qualquer ganho territorial de importância e o bombardeio a Israel aumentou. Chegou a atingir Telavive e Haifa sem que as defesas de Israel conseguissem evitá-lo.
Os gastos militares de uma guerra prolongada e que não alcança nenhum dos seus objetivos, a inflação e a crise econômica, somados à política do governo Netanyahu, abriram uma crise econômica e política. Há uma divisão na burguesia israelense (entre os setores burgueses e partidos dos centros econômicos do país e os partidos das colônias da Cisjordânia) e atritos entre o governo e as Forças Armadas, Mossad e Shin Bet.
Um dos temas centrais de divergência é o acordo de cessar-fogo com o Hamas e uma troca de reféns por prisioneiros ou a continuidade da guerra. Netanyahu quer continuar a guerra e é apoiado pelos partidos dos colonos que pressionam para estender a ofensiva militar à Cisjordânia. Alguns dos seus ministros, como Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança interna, falam em anexar a região, que ele chama de Judeia e Samaria.
No entanto, há um choque crescente entre o governo Netanyahu e a cúpula militar e de segurança. A demissão do ministro Gallant e as notícias saídas na imprensa sobre uma possível demissão dos chefes do Shin Beth e do Estado Maior as Forças Armadas (IDF) aprofundaram a crise em plena guerra
Recentemente, o Fórum Empresarial Israelense que reúne as 200 empresas líderes do país se pronunciou contra a demissão do ministro da Segurança (Ministro da Defesa), Yoav Gallant pouco antes que ela acontecesse: “O Primeiro-Ministro sabe melhor do que ninguém que todos os indicadores econômicos mostram que Israel está caminhando para um abismo econômico e afundando em uma recessão profunda. A última coisa de que Israel precisa agora é da demissão de um ministro [de segurança], o que desestabilizaria o [país].”
O imperialismo pressiona para um acordo de cessar fogo e continua acenando com alguma forma de solução de “dois estados”, mas o governo, os partidos dos colonos e inclusive a ampla maioria dos setores da oposição estão radicalmente contra um estado palestino, mesmo que sem nenhuma autonomia. A única política de todos esses setores é manter mais de 5 milhões de palestinos sob uma ditadura e um regime de confinamento em enormes guetos. Isso só é possível com um regime de guerra permanente que depois de um ano, mostra claramente seu esgotamento. O custo econômico da guerra já atinge U$ 68 bilhões e a continuidade da ação militar de Israel depende do fornecimento militar dos EUA e dos países europeu.
À medida que o tempo foi passando e a guerra continua, a situação vai ficando mais difícil de sustentar por Israel, cuja economia e a atividade produtiva tiveram uma redução significativa, gerando, juntamente com a insegurança crescente devido à guerra, uma onda de migrações de profissionais de nível superior. O historiador Ilan Pappé afirmou que o êxodo é de aproximadamente 600 mil israelenses, inclusive de médicos judeus das cidades mais prósperas, como Tel Aviv, para a Europa Ocidental e EUA.
Por outro lado, Israel realizou nova agressão militar ao Irã, com um ataque aéreo a suas bases militares. O ataque foi cuidadosamente planejado com o imperialismo norte-americano, que reforçou a defesa antiaérea israelense e definiu os objetivos limitados dos ataques, mas agora já estamos em uma guerra regional. Esta regionalização da guerra é uma política de Netanyahu que tem a ver com o projeto da Grande Israel e com o papel de gendarme do imperialismo norte-americano, embora haja diferenças táticas com o governo Biden, sobre até onde a guerra deve ir.
A conclusão desse quadro é que há uma polarização: Israel alimenta a guerra e a agressão buscando redefinir o mapa do Oriente Médio, mas com isso aumenta brutalmente as tensões e o país vive a maior crise da sua história. Está questionada não só sua imagem diante do mundo, mas a própria existência do Estado de Israel, um projeto colonialista e racista. E isso questiona e põe em risco o controle do imperialismo estadunidense e europeu na região. A guerra na Palestina é o centro da luta de classes mundial.
O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um acerto e um marco na luta pela libertação da Palestina
Se houvesse somente um genocídio e não existisse uma guerra de libertação teríamos que chegar à conclusão que o ataque do Hamas em 7 de outubro foi uma provocação contra um inimigo poderosíssimo. Essa provocação seria corresponsável pela brutal retaliação de Israel e pelo genocídio, como também potencialmente por uma derrota histórica da causa palestina. Isso é verdade? Pensamos que a conclusão é oposta ainda que com todas as suas contradições.
Antes de mais nada, é preciso ter claro que o Hamas é uma organização nacionalista burguesa com todas as limitações do seu caráter de classe. No entanto, no momento atual é a organização que as massas palestinas e principalmente sua vanguarda se apropriam para organizar sua luta pela libertação nacional.
Do ponto de vista da luta nacional pela libertação da Palestina, o ataque do Hamas foi um acerto político e militar. Conseguiu capturar 250 reféns. Colocou a luta do povo palestino de novo na ordem do dia. Unificou as forças da Resistência. Mostrou o verdadeiro caráter fascista e genocida do Estado de Israel. Mobilizou massas do mundo inteiro em favor dos palestinos. Obrigou Israel a travar a mais longa e custosa guerra da sua história, colocou em crise o Estado sionista e questionou a sua viabilidade.
É possível a derrota militar/política de Israel
A resolução de uma guerra não se dá somente pelos números de baixas e a destruição do adversário. Se fosse assim, o resultado já estaria definido a favor de Israel ou do imperialismo antes da guerra começar. Nos casos de guerras de libertação anticoloniais, as vitórias e derrotas se medem pela capacidade do invasor ou potência de impor uma ordem estável aos colonizados e que eles deixem de lutar para que o exército colonial não tenha que manter uma guerra permanente com perdas humanas que ameacem sua coesão interna.
No caso do Vietnam, mais de um milhão de vietnamitas perderam a vida e os EUA “apenas” cerca de 50 mil soldados além de dezenas de milhares de lesionados e portadores de transtornos mentais. No entanto, quem saiu derrotado foram os EUA. O papel dos grandes movimentos contra a guerra no interior dos EUA foi decisivo para essa derrota.
No caso atual, um dos maiores problemas de Israel é o movimento mundial contra o extermínio dos palestinos. Em especial a perda de apoio a Israel da juventude da maior colônia judaicas, a norte-americana. As organizações Jewish Voices for Peace (Vozes Judaicas pela Paz), e If not Now (Se não agora…) agrupam mais de 700 mil seguidores em suas páginas e dezenas de milhares de ativistas.
Israel nunca esteve tão desprestigiado internacionalmente em toda sua história. O BDS (nome da Campanha internacional de boicote a investimentos e por sanções ao estado sionista, nos moldes da que foi realizada em relação ao apartheid sul-africano nas décadas de 80 e 90 do século passado) está tendo uma repercussão cada vez maior. Empresas importantes, como a INTEL, suspenderam investimentos econômicos em Israel. 4.500 escritores como Arundhati Roy, Sally Rooney e outros decidiram fazer um boicote à edição de suas obras por editoras israelenses que apoiem o genocídio.
Na guerra atual, assim como na guerra do Vietnam, a superioridade de armamentos de Israel é avassaladora no que diz respeito à força aérea, naval, mísseis e carros blindados. E o apoio do imperialismo estadunidense permite um suprimento de armamentos quase inesgotável. Por isso, a derrota de Israel é muito difícil, mas como demonstrou a derrota no Vietnam dos Estados Unidos, o chefe do imperialismo no mundo, isso não é impossível.
Devido a essa luta desigual, não podemos descartar que o Hezbollah negocie um acordo de cessar-fogo por separado, abandonando a Resistência Palestina. No momento em que escrevemos esse artigo, o imperialismo está pressionando a direção do Hezbollah nesse sentido e, aparentemente, o governo de Israel aceitaria negociar uma proposta desse tipo. Apesar da combatividade demonstrada até agora pelo Hezbollah, não é possível confiar em uma direção nacional burguesa que tem interesses próprios como classe proprietária no Líbano e na região.
O mesmo se aplica ao Irâ. Apesar do Irã ter evitado um confronto generalizado com Israel, sem dúvida por temor à reação do imperialismo estadunidense, é inegável que seu governo tem fornecido todo tipo de armamento ao Hezbollah, aos Huthis e anteriormente ao Hamas. Mas, não é possível ignorar que a burguesia iraniana que sustenta o regime dos aiatolás tem objetivos nacionais próprios como potência regional e pode a qualquer momento subordinar a causa palestina a seus próprios interesses, negociando ou pressionando para um acordo que obrigue os palestinos a aceitar concessões maiores ao imperialismo, sob pena de que fiquem mais isolados.
No entanto, a proposta que está sobre a mesa de negociação, de um cessar-fogo de 60 dias entre Israel e o Hezbollah com o estabelecimento de uma força multinacional no Sul do Líbano, está longe de resolver a situação. Todas as contradições levantadas acima continuarão colocadas enquanto a questão palestina estiver no centro do problema. E a crise de Israel irá seguir.
A situação não está definida, mas reafirmamos que a derrota do Estado sionista é possível e que o problema é político-militar e depende não só da sua superioridade militar, mas da resistência palestina e libanesa, da situação interna em Israel e da luta de classes internacional.
Revolução socialista e guerra nacional de libertação
Nós, como socialistas revolucionários, temos diferenças fundamentais com o Hamas. Como dissemos é um partido nacionalista, islâmico, que defende a concepção de um estado capitalista. Nós, ao contrário, defendemos que a única solução definitiva para a humanidade, e inclusive para o problema da libertação nacional do jugo do imperialismo e da autodeterminação dos povos é o socialismo internacional.
Isso não significa que ignoramos o problema da libertação nacional da Palestina. Ao contrário. A luta por uma Palestina livre, laica, democrática e não-racista do Rio ao Mar, é uma demanda democrática cujo significado vai além da aspiração dos 11 milhões de palestinos a retomar o território do qual foram expulsos e constituir uma nação soberana. Também se transformou no símbolo da luta dos povos árabes contra a opressão do imperialismo estadunidense e europeu cujo agente armado é o Estado de Israel.
A luta pela libertação da Palestina só pode ser vitoriosa se houver clareza que para conquistar esse objetivo é preciso destruir o Estado colonialista de Israel que se sustenta em bases racistas e de ameaças e guerras permanentes sobre os povos do Oriente Médio. Só o fim do Estado de Israel pode dar uma saída permanente para o povo palestino e para os povos da região.
O que ameaça hoje a Resistência não é só Israel, mas, principalmente, a política dos dois Estados a qual o Hamas aderiu recentemente e que é promovida tanto pelas burguesias árabes pró-EUA e Israel (Arábia Saudita, Egito, Jordânia) quanto as que tem conflitos com Israel (Irã e o chamado Eixo de Resistência).
Os Acordos de Oslo já mostraram que essa falsa “solução” não garante nem o território nem a soberania de um Estado palestino e, muito menos, o retorno dos refugiados. Só serviu para que o Estado de Israel e o imperialismo cooptassem uma parte das organizações palestinas, principalmente o Fatah, que controla a Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Por outro lado, a posição dos pacifistas e dos reformistas, não só nega a efetividade e até a existência da luta de Resistência palestina e libanesa, mas na prática, se coloca contra a ação militar da resistência palestina e dos movimentos árabes.
No entanto, a realidade, evidenciada pela história de mais de 100 anos do projeto imperialista e colonialista que culminou na ocupação sionista da Palestina, assim como pela longa luta da resistência palestina, mostrou que a luta pela libertação da Palestina só pode ser alcançada pela via militar e revolucionária.
E hoje, o caminho que leva à libertação da Palestina e, no desenvolvimento da luta de classes revolucionária e a uma dinâmica de revolução permanente em direção à revolução socialista, passa pela resistência armada que confronta o Estado de Israel. Por isso, estamos incondicionalmente ao lado da Resistência militar palestina e libanesa, independentemente das divergências e críticas que temos às suas direções nacionalistas como o Hamas, Hezbollah e outras.
Defendemos que essa resistência armada se estenda internacionalmente a outros países. As ações das organizações de outros países contra Israel são fundamentais para derrotar o estado de Israel. Um exemplo, são as ações dos Huthis do Iêmen com drones e mísseis que tem golpeado o comércio no Mar Vermelho, o que aumenta o isolamento econômico de Israel. Também houve ações de grupos presentes no Iraque e na Síria. Já houve drones que caíram em Eilat no extremo sul de Israel o que golpeia a moral do exército.
Para isso é preciso denunciar e confrontar os governos árabes que colaboram com o imperialismo e Israel como a Arábia Saudita, a Jordânia, os Emirados, Marrocos e o Egito. Esses governos se limitam a fazer protestos verbais contra o genocídio, mas mantém relações comerciais com o estado genocida. A monarquia marroquina permitiu a passagem por seus portos de um navio carregado de armas e munições para Israel, sob protestos dos apoiadores da causa palestina no porto de Tânger. É a mesma posição do governo jordaniano, mas contra o sentimento do seu povo que massivamente apoia à resistência palestina. Na recente eleição para o parlamento, a Irmandade Muçulmana que defendia a ruptura dos acordos com Israel, chegou a quase 30% dos votos.
É preciso chamar as massas desses países a exigir de seus governos ruptura imediata de relações diplomáticas econômicas e militares com Israel, apoio militar à resistência palestina e que permitam que os apoiadores da luta contra o sionismo possam somar-se à resistência palestina e libanesa.
Ao mesmo tempo em que é necessário essa unidade militar com a Resistência Palestina e Libanesa, inclusive com suas direções nacionalistas, é fundamental que as novas camadas de combatentes da Resistência palestina e de outros países se atentem para a necessidade da classe trabalhadora se organizar de forma independente das direções nacionalistas e religiosas, buscando construir o seu próprio partido socialista e revolucionário que lute por transformar a guerra de libertação nacional por uma Palestina livre do Rio ao Mar em uma Revolução Socialista em toda a região.