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Cuba

Cuba: do capitalismo de Estado ao neoliberalismo econômico de ideologia política “comunista”

junho 9, 2024

Publicamos este artigo de Alexander Hall, um ativista cubano socialista, crítico do regime castrista, que respeitamos muito. Nele, Alexander descreve bem a situação em Cuba, bem ao contrário da farsa estalinista que tenta ainda mostrar Cuba como “o bastião do socialismo”. Junto a isso, Alexander desenvolve uma posição de que em Cuba existia antes um capitalismo de estado, com o qual não temos acordo. Publicamos então, junto ao texto de Alexander, para estimular um debate sadio, um outro artigo, de Eduardo de Almeida, que, entre outros temas, também polemiza com a visão de capitalismo de estado.

O ascenso vitorioso da Revolução Cubana teve notável influência no mapa geopolítico de um cenário mundial dividido pela “Guerra Fria”, levada a cabo entre 1945-1991 pelos Estados Unidos e pela URSS, que apresentavam relações desiguais com nações aliadas a nível internacional. em seus respectivos espaços de influência. A projeção externa do processo de mudança esteve condicionada pela hostilidade norte-americana e pelo predomínio da influência “comunista” nas esferas do Governo, colocando como principais inimigos o subdesenvolvimento capitalista e os grupos armados do interior, que se opunham ao projeto de transformação social , inclinaram os seus interesses aos desígnios da burguesia local e estrangeira.

Por: Alexandre Hall Lujardo

Este complexo mar de circunstâncias motivou o alinhamento da direção caribenha com o país soviético, bem como o fortalecimento dos seus laços econômicos, diplomáticos e culturais. As medidas promovidas visaram a centralização do poder político e a nacionalização gradual em todas as áreas da sociedade, até que quase todas as propriedades existentes foram concluídas nas mãos do Estado em 1968 com a implementação da Ofensiva Revolucionária, da qual isentou pequenos produtores camponeses e um setor minoritário de transportadores urbanos.[1]

Os manuais filosóficos soviéticos e os economistas políticos da ortodoxia partidária, guiados escolásticamente pelos preceitos do Manifesto Comunista (1848), entendiam a nacionalização como o caminho que conduzia rapidamente ao estabelecimento de um modelo alternativo ao capitalismo. Contudo, desde a Revolução Russa de 1917, ficou demonstrado que este caminho fetichizava o aparelho de Estado como um falso representante do poder popular, da socialização real da riqueza e da autogestão operária em formas produtivas, suplantado pelo princípio leninista do partido único. , que infamou as diversas formas de expressão associativa no exercício da crítica intelectual, do pluralismo político e dos direitos civis.

Do campo da esquerda anti/pós-capitalista, foram muitos os intelectuais, filósofos e economistas que, apegados aos fundamentos do marxismo, fizeram críticas corajosas ao autoritarismo dos regimes de estilo soviético. Entre os seus mais brilhantes expoentes, destacam-se os trabalhos de Rosa Luxemburgo (1871-1919), León Trotsky (1879-1940), Erich Fromm (1900-1980), Herbert Marcuse (1898-1979), Aimé Césaire (1913-2008). Tony Cliff (1917-2000) e Ernesto Che Guevara (1928-1967), apenas para citar algumas das personalidades mais reconhecidas mundialmente.

De acordo com tais preceitos, vários deles assumiram a tese do “capitalismo de Estado” para descrever o sistema de relações sociais de produção existente nesses modelos, encabeçados por oligarquias partidárias distantes do socialismo: entendido como o regime do poder operário, no qual o são estabelecidas as bases para a emancipação da classe trabalhadora e de outros grupos historicamente excluídos pela máquina do capital. Este projeto é viável através de um planejamento descentralizado “desde abaixo”, de tal forma que se materializem os critérios de igualdade perante o trabalho e de produção consciente para a distribuição socializada da riqueza.

Nesse sentido, durante o século XX os chamados modelos de “socialismo real ou histórico” afastaram-se dos princípios da democracia direta, devido às intermediações burocráticas da classe dominante, imbuída de postulados desenvolvimentistas em seus esquemas de crescimento industrial, convertendo o Estado no principal empregador de assalariados e, portanto, o máximo extrator de mais-valia.

As receitas do neoliberalismo econômico na sua “longa duração”

O neoliberalismo como corrente de pensamento ideopolítica, autodenominada como “libertária” e influenciada pela produção acadêmica das Escolas Austríaca e de Chicago, surgiu como reação aos movimentos contraculturais e antissistêmicos que ocorreram no mundo até meados do século XX. Entre as figuras mais destacadas deste corpus, destacam-se os casos de Ludwig von Mises (1881-1973), Friedrich von Hayek (1899-1992) e Milton Friedman (1912-2006), guiados por uma mentalidade contrária aos ideais comunitarismo-coletivista da sociedade. No centro dos seus critérios estava o retorno aos princípios tradicionais do liberalismo clássico, para neutralizar a influência do comunismo estatista; Isto apesar do facto de que tais postulados eram pouco susceptíveis de serem adotados, devido aos elevados níveis de concentração de riqueza e propriedade por parte dos tecnocratas mundiais. O poder dos seus representantes foi expresso na fortuna crescente das suas corporações empresariais apoiados pelos setores políticos do Hemisfério Ocidental, grupos industriais e agentes financeiros do globalismo transnacional.

A alternativa proposta pelos líderes mundiais do pensamento pós-moderno em questões econômicas, – assim elevada pelas investiduras das academias pró-liberais – residia na implementação de políticas contrárias às abordagens keynesianas de gastos compensatórios após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). . ), para aliviar os efeitos da pobreza, da inflação e do desemprego, reavivando a economia através de incentivos estatais. Pelo contrário, os teóricos libertários ou neoliberais argumentavam que a rentabilidade era o caminho apropriado para a prosperidade geral através da implementação de cortes, através da privatização máxima possível, dada a suposta carga fiscal implícita nas despesas do “Estado burocrático e da sua massa ineficiente de trabalhadores”.

A partir desta posição, maximizam-se os ideais smithianos do homo economicus para a obtenção de elevadas margens de lucro, bem como a monetização de inúmeras atividades e setores tradicionalmente não mercantilizados nas formas de reprodução de valor, forçadas por uma perspectiva antropocêntrica de consumo. Os princípios axiomáticos destes códigos não contemplam a natureza finita dos recursos naturais do planeta, nem os danos ecológicos gerados pelas dinâmicas produtivas, industriais e mineiras de hipercapitalização; cujos efeitos climáticos adversos são negados pelo clube de magnatas que governam os padrões comerciais do esquema globalizado do capital, apesar dos estudos científicos que alertam para as possibilidades iminentes de uma catástrofe civilizacional.[2]

Na América Latina, o neoliberalismo foi imposto através da violência genocida das ditaduras militares mais sangrentas da história do subcontinente. As consequências sociais da experiência recaíram sobre os setores precarizados pela ordem sistémica; como nas demais regiões onde foi adotada como fórmula em benefício de grandes empresários, investidores estrangeiros e corporações transnacionais. Esta práxis foi sustentada através da desregulamentação de áreas sensíveis em termos de segurança social e interesse público, bem como da privatização de recursos naturais estratégicos; cujos setores nacionalizados funcionaram como barragens de contenção contra o extrativismo voraz das potências neocoloniais, legalmente protegidos nas suas ações de exploração dos trabalhadores e de violações sistemáticas dos direitos humanos, especialmente contra aquelas populações consideradas “minoria” da referência eurocêntrica moderna da sociedade.

Como resultado da implementação deste paradigma, a rebelião das classes trabalhadoras e dos setores populares que sofreram os efeitos de um regime que prioriza os lucros da elite sobre o bem-estar dos cidadãos não tardou a chegar; ao mesmo tempo que é capaz de deslocar territorialmente comunidades étnicas, rurais e racializadas, se a localização geográfica da sua residência ameaçar a expansão do esquema empresarial do empregador. Tudo isto é possível, através da proteção do aparelho policial, militar e jurídico, disponibilizado para tais fins, para manter marcados interesses de classe em coligação com a liderança dominante.

O desmantelamento gradual do modelo estatista/de bem-estar social cubano

A crise do “período especial” em Cuba devido à queda dos países que constituíam o chamado “campo socialista europeu” e a sua transição para o “capitalismo real”, demonstrou a insustentabilidade do regime estatista expandido como detentor maioritário nas formas de propriedade e gestão empresarial existentes no país, dada a sua irracionalidade econômica, convertida também em mecanismo de controle totalitário. A partir desse momento, iniciou-se um conjunto de reformas que atacaram o modelo até então promovido pela classe partidária e implementaram-se um conjunto de concessões ao capital privado, a abertura ao investimento estrangeiro e a descriminalização circulatória do dólar norte-americano, promovidas pela busca da eficiência econômica, promovendo a compulsão financeira.

Tais mudanças deram lugar ao surgimento de desigualdades supostamente abolidas pelo processo revolucionário; ao mesmo tempo que houve um aumento da reestratificação social, do consumo de drogas, do ressurgimento do racismo, da prostituição sexual e do aumento da desigualdade. A sociedade viu surgir novas margens de pobreza, agravadas pelo déficit na produção de alimentos, medicamentos, bens de consumo e pela deterioração das suas infraestruturas. O encerramento de programas sociais contribuiu para a sua gravidade, dada a falta de liquidez, que lançou milhões de pessoas numa vida imersa na precariedade, expressa numa queda do PIB equivalente a 36% entre 1990-1993.

A partir dessa etapa, é possível identificar um crescente processo de concentração sob um esquema de atuação discricionária e autônoma na gestão operacional das empresas militares, cujas ações antecedem a crise do “período especial”. A insustentabilidade ao longo do tempo de ocultar tais práticas detonou com o escândalo de corrupção e tráfico de drogas revelado nos casos 1-2 de 1989, que envolveu um importante setor do exército em sua alta liderança, conhecido como: Departamento MC (Moeda Conversível), autorizado em inúmeras de suas transações para realizar atividades comerciais pelas mais altas autoridades do país, sob o argumento de contornar as sanções dos EUA.

A maior parte das empresas que compõem este conglomerado foi fundada sob forma jurídica estatal, embora sua operação caudilho reproduza uma lógica privada; cujas distinções no tratamento da classe trabalhadora também não estão longe das realidades históricas predominantes no capitalismo moderno, em termos de negação de garantias e direitos. Ao mesmo tempo, prevalece o sigilo através da blindagem legal para evitar qualquer interferência obrigatória ou fiscalização pública de organizações que fazem parte da administração central do Estado, como a Assembleia Nacional do Poder Popular ou a Controladoria-Geral da República.

Com o fim do mandato presidencial de Fidel Castro Ruz por motivos de saúde e a promoção aos mais altos escalões do Governo do seu irmão, o General do Exército Raúl Castro Ruz (interino 2006-2008; 2008-2018), inicia-se uma nova etapa de abertura centrada a melhorar o cenário econômico através da concessão de autonomia empresarial, revigorar o investimento estrangeiro, promover facilidades de importação através de flexibilidades aduaneiras, acabar com as proibições aos cubanos de permanecer em hotéis e alugar automóveis, bem como a concessão de novas terras para cultivo pelos agricultores (em usufruto), cujas regulamentações atingiram seu apogeu com a aprovação das diretrizes do Partido Comunista de Cuba em 2011, que deram suporte conceitual às transformações políticas implementadas.

A chegada ao poder em 2018 do Presidente Miguel Díaz-Canel Bermúdez, promovida pela vontade expressa do Presidente Raúl Castro, foi marcada pela necessidade de fomentar novos consensos projetados com a Constituição da República de 2019, aprovada com elevados níveis de apoio popular. O contorno legal aproveitou o capital político negociado através do degelo diplomático com os Estados Unidos, para gerar um clima favorável ao empreendedorismo, protegido pelo reconhecimento da propriedade privada.

No entanto, as políticas hostis implementadas pelo presidente republicano Donald J. Trump, bem como os estragos da pandemia de Covid-19 e a má gestão da administração caribenha, que decidiu implementar o conjunto de reformas associadas à chamada “Tarefa Ordenação” no início de 2021, teve resultados devastadores na capacidade de compra do peso cubano, o que produziu uma dolarização crescente, promovida oficialmente com a abertura de receber em lojas em moeda livremente conversível (MLC) desde 2020; apesar da sua incapacidade de reduzir a escassez de produtos e os graves efeitos nas esferas produtivas.

A política de regulação, longe de corrigir as distorções contabilísticas que a dualidade monetária e a multiplicidade cambial significavam, contribuiu para diversificar a oferta de moedas estrangeiras no mercado cambial informal face à crescente desvalorização, o que colocou as empresas estatais em desvantagem, incapazes de competir em igualdade de condições com os restantes atores econômicos, dadas as diferenças prevalecentes na taxa de câmbio.

No meio deste contexto, caracterizado por um aumento excessivo do dinheiro circulante que significou o aumento dos salários em 500% sem apoio produtivo, os preços no mercado informal multiplicaram-se mais do que o esperado, o que deteriorou ainda mais a capacidade de poder de compra da moeda nacional, num cenário de desestímulo econômico, ausência de empréstimos bancários para o desenvolvimento agrícola e prevalência de uma crise alimentar permanente.

Desde então, a gravidade em matéria laboral tornou-se ainda mais crítica, pois segundo números do Gabinete Nacional de Estatística e Informação (ONEI), na Pesquisa Nacional de Ocupação publicada em 2022, indica-se que apenas 50,89% das pessoas com mais de 15 anos de idade, possuem emprego na população economicamente ativa (PEA). Tal realidade deve-se ao predomínio de salários incapazes de satisfazer as necessidades básicas, sem esquecer a existência de péssimas condições de trabalho.

O cenário de crise estrutural resultou ilustrativo, segundo dados do Observatório Monetário e Financeiro de Cuba (OMFI), cujos especialistas estimam que entre 2019-2022 o nível de preços ao consumidor disparou entre 11,6 e 19,1 vezes, o que duplica o recorde alcançado na década de noventa. Além disso, os seus cálculos asseguram a predominância de um contexto inflacionário acima de 200%, apesar de as agências estatais manusearem dados de referência na faixa dos dois dígitos.

As próprias autoridades políticas da Ilha reconheceram o fracasso da sua agenda planificada após a implementação da “Tarefa de Ordenação”, cujos resultados negativos se fizeram sentir abruptamente face ao aumento crescente dos preços, à deterioração dos salários e aposentadorias, à degradação da confiança política na sua liderança, bem como a crise representada pela emigração para os Estados Unidos de 460 mil cubanos entre 2021-2023, segundo análise do Escritório de Washington para a América Latina (WOLA). Por outro lado, cerca de 36 mil solicitaram asilo no México entre 2022-2023, enquanto outra proporção significativa decidiu estabelecer-se na Rússia, Espanha, Alemanha, Uruguai, Brasil, Chile e outros países.

A crise geral que persiste na sociedade cubana acentua fenômenos sociais como a mendicância, a pobreza e a violência criminosa, coincidindo com uma queda na capacidade de resposta das autoridades, devido à deterioração sistêmica das suas instituições. O aumento do inconformismo levou a numerosas explosões de protestos sociais sem precedentes, que atingiram o seu pico entre 11 e 12 de julho de 2021 – as manifestações mais extensas na Cuba pós-revolucionária; apesar de terem recebido em resposta elevados níveis de repressão policial, criminalização política e judicialização estatal, semelhantes às estratégias adoptadas por governantes de extrema-direita noutros países da região.

É relevante que as estatísticas estatais em 1986 colocassem Cuba na vanguarda internacional em questões de igualdade, com um coeficiente de Gini de 0,222. Contudo, em 1999 este indicador já tinha atingido o valor de 0,407; enquanto outras pesquisas indicam que para a terceira década do século XXI e na ausência de referências oficiais, tais dados devem ser ainda maiores, devido às medidas tecnocráticas implementadas.

O carácter profundamente enraizado da atual crise tem um impacto direto no nível de vida da população, documentado em números do Observatório Cubano dos Direitos Humanos (OCDH), que no seu relatório anual de 2023 assegura que 88% dos cubanos vivem em condições de pobreza, 13% superior ao ano anterior, para cuja amostra foram inquiridas mais de 1.300 pessoas em 75 municípios do país. A referência de medição foi avaliada com base na renda total de uma unidade familiar equivalente a US$ 1,90 por dia. Da mesma forma, o estudo destaca que as principais preocupações dos cubanos se devem à crise alimentar (70%), aos salários (50%), à inflação (34%) e à saúde pública (22%). Além disso, indica que quase 80% dos cubanos consideram que o investimento público na educação, habitação, agricultura, saúde pública e hospitais é insuficiente.

Estratégias governamentais de privatização oligárquica

O parlamento cubano aprovou um déficit fiscal de 18,5% do PIB até 2024: o segundo maior do mundo, só superado pela Ucrânia, um país que está atolado numa guerra conflagrada com a Rússia e enfrenta severas restrições devido à situação de caos social. depois do conflito. A implementação de um déficit tão elevado confirma que a tendência inflacionista persistirá na Ilha, fato que provocará uma maior perda do poder de compra da moeda local, que em Janeiro de 2024 estava cotada em 300 pesos cubanos contra o dólar, que colocou o salário médio de 3.838 pesos, equivalente a 12 dólares, entre os mais baixos do subcontinente; enquanto o salário mínimo de 2.100 pesos mal equivale a 7 dólares, com maior tendência à desvalorização.

Como se tudo isto não bastasse, o Governo anunciou a entrada em vigor de um grande pacote com o objetivo de materializar a eliminação de subsídios em sectores como o gás, a eletricidade e a gasolina. As políticas de ajuste implicam um aumento de cerca de 450% para os combustíveis, além do aumento do transporte interprovincial para 400%, do ferroviário para 600% e dos bilhetes para voos internos até 468%. Tais medidas são aplicadas em meio a um cenário persistente de crise energética, marcado por longas filas nos postos de gasolina e repetidos cortes de energia, relatados em algumas províncias do território por mais de 15 horas de interrupções no serviço.

O impacto social da crise nos últimos anos motivou o surgimento de práticas lucrativas em áreas fora da influência comercial, como os setores da saúde e da educação; parcialmente dominado por expressões de semiprivatização e mecanismos especulativos, que cedem a novas dinâmicas sociais, distantes da ética e do compromisso que existiam entre os seus profissionais em outras décadas, agora gravemente dilacerados pela escassez geral. Portanto, negar o extenso processo privatizante constitui uma quimera contra a corrente da realidade, cuja reflexão crítica não ocupa a merecida seriedade nos circuitos intelectuais cubanos assumidos como marxistas; apesar da dimensão política que implicam as reiteradas concessões ao processo de acumulação de capital, numa nação autoproclamada “socialista” pelo Governo e pelos aparelhos ideológicos do Estado.

Segundo números do próprio governo, em dezembro de 2023 existiam 9.652 MPME, 5.138 cooperativas, 106 empresas mistas e 596.000 trabalhadores independentes em Cuba, o que reafirma a tendência de crescimento do sector privado acima de qualquer outro na economia. Este último absorve perto de 60% das importações do país e em meados de 2022 gerava 270.294.100 dólares para este conceito, contra apenas 4.788.500 dólares em exportações, para um desequilíbrio comercial de 265.505.600 dólares. Ao longo do primeiro semestre de 2024, o sector não estatal contribui com 15% do PIB, emprega mais de 30% da força de trabalho e contribui com 18% das receitas fiscais; o que indica o surgimento de uma neoburguesia mercantil desinteressada em promover a produção de alimentos ou outros produtos que contribuam para as exportações de bens e serviços.

É surpreendente que o processo de aprovação das MPME exija a concessão de licenças de funcionamento expressamente pelo Conselho de Ministros. Este procedimento centralizado e de carácter discricionário contribui para o obscurecimento da transparência, cujo carácter facultativo dificulta a identificação de relações clientelistas e de tráfico de influências aos mais altos níveis do Estado/Governo, o que dificulta o enfrentamento da corrupção[3], dada a não -existência de políticas de aprovação pública consensuais.

No sector das micro, pequenas e médias empresas (MPME), falta uma proteção laboral que ofereça garantias aos trabalhadores, apesar do clima prevalecente de sobrecarga e exploração nas empresas. Além disso, não têm direito à sindicalização, predomina o sistema de contratação oral, proibição de formação de sindicatos associativos e a concessão de férias programadas de acordo com o seu desempenho, ao mesmo tempo que não são concedidas licenças ou atestados médicos em caso de acidente de trabalho ou outra condição médica.

Por outro lado, a maior parte dos proprietários enfrenta os interesses de um Estado burocrático e ineficiente em seu sistema de arrecadação, desinteressado em promover estímulos tecnológicos e creditícios que contribuam para o sucesso dos empreendimentos; além de navegar a sua sobrevivência entre a arbitrariedade institucional e a instabilidade, cuja matriz sustentável é essencial para a durabilidade a longo prazo de qualquer atividade econômica.

A predominância deste cenário relembra os tempos do capitalismo na sua fase pré-industrial, submetido na sua versão caribenha pela hegemonia pós-totalitária do Partido Comunista Cubano; cuja realidade é romantizada pelas ideologias de uma esquerda internacionalista distópica, que persiste na sua visão de mundo imaginária de poder e de sociedade, exigindo esforços e condições do povo cubano, incapaz de cumprir nos seus países de origem e impossível de exigir das bases populares de sua respectiva militância. Estes traficantes de ideologia “progressista” são ineptos na compreensão de que a causa da disputa na Ilha não é resolvida apenas pelo mandato plenipotenciário de uma oligarquia dominante; mas também pelos direitos inalienáveis ​​na necessária melhoria das condições de vida e na participação democrática.

Os representantes deste “discurso de justiça” recusam-se a analisar a realidade imposta em termos de liberdades civis, associativas e cidadãs com séculos de luta mobilizadora, conquistada ao capitalismo pela tradição democrático-popular, operária e revolucionária, para o gozo de direitos humanos. Estes são hoje negados pelas altas esferas políticas da nação, convertidos em protagonistas de uma traição histórica ao mesmo tempo que consolidam as suas bases de exploração extrativa, garantindo quotas de legitimidade autoritária e reproduzindo, através do desdobramento de relações de poder transdominantes, as bases conceptuais que distinguem a opressão de classe, caracterizada pelos mandatos tradicionais do colonialismo interno, como manifestação do seu poder na modernidade tardia.

Aonde vai Cuba? 

A situação de Cuba voltou a dividir águas em toda a esquerda mundial. Desde a mobilização popular de 11J, existe uma tentativa de todo o aparato stalinista mundial de defender o indefensável: a repressão da ditadura castrista sobre seu próprio povo. Surge uma primeira pergunta para os ativistas de todo o mundo: é justo defender os trabalhadores em luta em Cuba, do mesmo modo que os defendemos em todos os países capitalistas?

Por: Eduardo Almeida

A derrota da mobilização 15N, em função de toda repressão ocorrida, abre outra pergunta: aonde vai Cuba? A vitória da repressão legitima a ditadura castrista?

Reacendem-se assim discussões teóricas e programáticas. Cuba ainda é um estado operário, mesmo que burocratizado? Ou é um estado capitalista? Ou ainda, seria um capitalismo de estado?

A polêmica sobre Cuba, de certa maneira, atualiza a discussão sobre o stalinismo, quando se completam trinta anos da dissolução da URSS.

Queremos aqui afirmar uma avaliação de Cuba desde uma ótica marxista, da revolução de 1959 aos dias de hoje, revisitando as polêmicas teóricas envolvidas.

1- A Revolução cubana gerou um estado operário deformado

A Revolução Cubana de 1959 foi a primeira e única revolução socialista vitoriosa na América Latina. Como em outros processos, gerou um estado operário deformado, profundamente burocrático, sem nenhum grau de democracia operária.

A definição de Cuba como um estado operário, mesmo burocrático, se apoia na definição marxista desse tipo de sociedade, apoiada em três características:

– os principais meios de produção estatizados;

– a planificação da economia: a quantidade e qualidade dos produtos não eram determinadas pelas leis do mercado, e sim por um plano econômico central, ao qual todas as empresas estavam subordinadas;

-o monopólio do comércio exterior. Tudo o que o país comprava e vendia no mercado mundial era definido e monopolizado pelo Estado.

Com essas características, o estado operário cubano teve um grande avanço econômico e social, de enorme importância. Muitas vezes mostramos, com orgulho, os avanços na saúde e na educação propiciados pela expropriação da burguesia e a planificação da economia.

Alguns setores da esquerda cubana negam que em Cuba tenha havido uma planificação da economia. É uma discussão interessante. Pode ser que estejamos discutindo os fatos, ou pode ser uma discussão de conceitos.

Em primeiro lugar os fatos: foi criado em março de 1960 um organismo estatal, chamado Junta Central de Planificación, responsável pela planificação da economia. Essa instituição foi dissolvida na década de 90.

Fidel Castro, 1957. (Photo by CBS Photo Archive/Getty Images)

Em segundo lugar, sobre os conceitos. Nos parece inegável que existiu em Cuba uma economia na qual as empresas estatizadas eram o motor da economia. E como decidiam essas empresas o que produzir, quanto produzir, em que investir? Se fosse em uma economia capitalista, a resposta seria óbvia: cada empresa decide , em função da taxa de lucros, da lei da oferta e procura, de sua capacidade de investimentos. Mas em Cuba isso não existia, assim como também não existia na URSS e nos outros estados operários. As empresas estavam subordinadas a essa planificação estatal. A planificação da economia permite superar a anarquia na produção determinada pela definição particular empresa por empresa no capitalismo.

Evidentemente existe uma diferença qualitativa quando essa planificação é decidida em uma democracia dos trabalhadores e quando é definida burocraticamente. Na democracia dos sovietes, nos sete primeiros anos da revolução russa, as opções eram definidas e assumidas democraticamente pelos próprios trabalhadores.

Quando a planificação é feita pela burocracia, os erros são mais comuns e se suprime a criatividade e a energia das massas em movimento. Além disso, a planificação burocrática determina que a produção também atenda aos interesses materiais e políticos das burocracias. Isso levou historicamente a grandes desastres, como a industrialização forçada pela burocracia stalinista na década de 30 na URSS, “o grande salto adiante” de Mao em 1958, ou o “Plano das dez milhões de toneladas de cana de açúcar”, de Fidel em 1970.

Mas a planificação associada à estatização da economia já demonstrou suas vantagens em relação ao capitalismo com o desenvolvimento gigantesco das forças produtivas na URSS, e também, em Cuba.

Em todo processo de evolução de uma economia capitalista para não capitalista, existe uma combinação desigual de fatores. A economia capitalista é regulada pela lei do valor, pelo mercado, a oferta e a procura. A estatização e planificação da economia introduzem outra lei, que aponta para o socialismo, a partir dessa planificação da economia.

É a evolução contraditória e o choque dessas duas leis que determinam a evolução da sociedade não capitalista, como demonstrou Preobrazhenski, em seu livro “A nova economia” sobre a URSS. Na medida em que avança o peso da economia estatizada e a planificação da economia, retrocede o peso da lei do valor, até que esse peso da economia planificada determine a globalidade da sociedade como não capitalista, ou seja, avançando em direção ao socialismo.

A partir da estatização das empresas, planificação da economia e o monopólio do comercio exterior, Cuba começou a avançar em uma economia não capitalista e deixar a lei do mercado. Mas Cuba nunca chegou ao socialismo. E isso por dois grandes motivos.

O primeiro é que o socialismo implica em um desenvolvimento das forças produtivas muito superior, só possível a nível internacional e não em apenas um país, o que vamos desenvolver mais adiante.

O segundo motivo é que, para avançar em direção ao socialismo, seria preciso um regime político completamente diferente da ditadura castrista. Seria necessária uma verdadeira democracia dos trabalhadores, como a que existiu nos primeiros sete anos da revolução russa, seguindo o exemplo da Comuna de Paris.  Ou seja, seria necessário que o novo estado fosse realmente uma democracia operária, em que os trabalhadores decidissem os rumos do país.

Nós sempre criticamos a ditadura stalinista de Fidel Castro, e mostramos como isso limitava enormemente os avanços em Cuba. Nunca existiu na ilha uma democracia dos trabalhadores.

A revolução cubana não teve como sujeito social o proletariado organizado pelas bases, como na Rússia de 1917. Foi o movimento guerrilheiro 26 de julho, férrea e burocraticamente centralizado, que tomou o poder. Não houve organismos de frente única como os sovietes na Rússia, os comitês de fábrica da Alemanha de 1918, ou os conselhos da revolução espanhola. O novo estado surgiu já marcado pelo controle férreo dos líderes guerrilheiros, sem nenhuma tradição de democracia operária.

No primeiro momento depois da revolução, existiu certa participação popular, incluindo a tomada de sindicatos das mãos da burocracia pró Batista.

“A democracia sindical foi uma reivindicação muito significativa dos operários cubanos. Após a fuga de Eusebio Mujal, máximo dirigente do CTC, e parte da burocracia sindical mujalista com a queda de Batista, ocorreu a tomada revolucionária dos sindicatos pelos militantes do M26J. Esses novos líderes seriam referendados ​​nas eleições sindicais realizadas no início de 1959. Nessas eleições sindicais, o M26J triunfou em mais de 1.800 sindicatos. Os comunistas pagaram assim o preço de sua atitude ambígua durante a ditadura de Batista. […] A enfraquecida posição dos comunistas no movimento operário após as eleições nos sindicatos de base e para os congressos das federações sindicais foi revelada com a reunião, em setembro de 1959, do Conselho Nacional da Confederação dos Trabalhadores Cubanos . Apenas 3 dos 163 delegados à reunião eram comunistas (Alexander 2002, p. 191).”
“Mas como a maioria dos dirigentes sindicais eleitos do M26J era contra à exigência do governo de “unir-se” em listas comuns com os dirigentes sindicais do PSP, no décimo congresso da Central de Trabalhadores de Cuba, realizado em novembro de 1959, Castro e o novo Ministro do Trabalho, Augusto Martínez Sánchez, interferiram pessoalmente para impor ao CTC um novo Comitê Executivo que realizou um expurgo sindical amplo, como resultado do qual “em abril de 1960, os oficiais eleitos de 20 das 33 federações do CTC e de cerca de 2.000 sindicatos haviam sido expulsos dos cargos para os quais haviam sido eleitos em 1959”. (Daniel Gaido e Constanza Valera)

Depois dos dois primeiros anos se impôs um modelo stalinista, de partido único, sem democracia operária, com repressão violenta na base, perseguindo todos os opositores ou críticos. Os sindicatos foram incorporados ao controle do estado.

Como parte do mesmo modelo stalinista, sempre existiu com essa ditadura a continuidade das opressões racista, machista e LGBTIfóbica (não nos esqueçamos das terríveis UMAP, campos de trabalho forçados para os quais foram enviados diversos homossexuais). Não por acaso, a elite dirigente cubana é branca, desde a família Castro até Díaz-Canel hoje. Não por acaso também, uma repressão dura se expressou durante toda a história cubana, incluindo a proibição da marcha LGBTI em maio de 2019. Só agora, depois de anos de luta do movimento LGBTI e a pressão do 11J, sessenta e dois anos depois da revolução, está sendo discutida a aprovação do casamento homoafetivo em Cuba.

2- Repudiamos o bloqueio norte-americano

Desde o início repudiamos o bloqueio norte americano à Cuba, imposto em 1960.  O bloqueio causou e ainda causa graves prejuízos ao povo cubano. Trata-se de um ataque do mais importante país imperialista do mundo contra uma pequena ilha.

Com o bloqueio, impede-se que norte-americanos viajem diretamente à ilha e dificulta-se a remessa de dólares dos cubanos que moram nos EUA para suas famílias em Cuba. A lei Helms-Burton, de 1996, agravou fortemente o bloqueio por penalizar as empresas que fazem negócios em Cuba. As medidas agravadas por Trump não foram modificadas por Biden.

John Kennedy decretou o bloqueio total de Cuba

Por que a burguesia imperialista norte-americana não faz o mesmo que a europeia, que foi e é parte da restauração capitalista na ilha?  A explicação está na burguesia cubana radicada em Miami, que foi expropriada pela revolução em 1959. Esses burgueses se integraram à burguesia imperialista norte-americana, tendo peso considerável nos partidos Republicano e Democrata. Existe uma parte da burguesia imperialista dos EUA contra o bloqueio. Mas esse setor pró-bloqueio é ainda majoritário, quer derrubar a ditadura castrista e recuperar suas empresas expropriadas.

Nos somamos aos que denunciam todos os governos dos EUA, sejam republicanos ou democratas, seja Trump ou Biden, que falam em “democracia”, mas o que querem é a devolução das propriedades confiscadas em 1959 e a colonização da ilha. Para isso não lhes importaria que Cuba fosse governada por outra ditadura.

Por esses motivos, nós lutamos há mais de cinquenta anos contra esse bloqueio. Da mesma forma, estivemos do lado de Cuba contra todas as tentativas de intervenção militar do imperialismo, como no fracassado desembarque na Baía dos Porcos.

A propaganda stalinista atribuiu todos os problemas da ilha ao bloqueio imperialista. Não temos acordo com isso. Existem os efeitos da restauração do capitalismo em Cuba, assim como os resultados desastrosos dos planos econômicos do governo sobre o nível de vida dos cubanos. Mas não ignoramos os graves efeitos do bloqueio sobre Cuba.

3- Socialismo em uma só ilha?

O trotskismo desenvolveu toda uma polêmica com a ditadura stalinista da URSS sobre concepção de “socialismo em um só país”. A tradição marxista só identifica a possibilidade de construção do socialismo a nível internacional, como parte de uma planificação da economia entre os países que permita o desenvolvimento pleno das forças produtivas.

Essa polêmica se demonstrou correta pela evolução trágica da URSS, que, mesmo com todo avanço produzido pela expropriação da burguesia e planificação da economia, não avançou para o socialismo. Ao contrário, o isolamento da revolução permitiu a burocratização da URSS, com a contrarrevolução stalinista. E depois essa mesma burocracia conduziu a restauração do capitalismo na URSS.

Mas se Trotsky se opunha ao “socialismo em um só país” na URSS, um país de dimensões continentais, o que dizer dessa mesma discussão em uma pequena ilha, como Cuba? Não existia e não existe nenhuma possibilidade de isso ocorrer. A única via para que Cuba pudesse avançar ao socialismo seria com o desenvolvimento da revolução mundial e, em particular, na América Latina. Mas isso não ocorreu.

O retrocesso social atual na ilha não se deu apenas pelo fim do apoio econômico da URSS, nem somente pelo bloqueio norte-americano, mas em função da política adotada pela ditadura castrista. O castrismo nunca buscou desenvolver uma estratégia revolucionária internacional apoiada nas lutas das massas.

Em primeiro lugar, quando ainda não era parte do aparato stalinista mundial, o governo cubano fez uma tentativa desastrada de estender focos guerrilheiros na América Latina na década de 60 do século passado. Isso levou milhares de ativistas à morte e facilitou a repressão dos governos burgueses ao conjunto do movimento de massas.

Mais grave ainda, depois de se integrar ao aparato stalinista em 1972, deu um giro à direita buscando o apoio das “burguesias progressistas” latino-americanas. Como máximo exemplo disso, o governo castrista, perante o ascenso revolucionário do final da década de 70 na América Latina, se opôs a que a revolução na Nicarágua fosse uma “nova Cuba” em 1979, mesmo depois da derrota da Guarda Nacional de Somoza e da tomada do poder pela Frente Sandinista.

Castro influenciou na direção sandinista para não avançar na expropriação da burguesia na Nicarágua (AP Photo/Arturo Robles)

“Os dirigentes sandinistas se consideravam discípulos de Fidel Castro. Depois de tomar o poder, a direção da FSLN viajou a Cuba para conversar com Fidel, que os felicitou e lhes deu um conselho: “Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”.” (Martin Hernandez, “Cuba da revolução a restauração’)

Depois Castro apoiou os acordos de Contadora e Esquipula no início da década de 80, que canalizaram o ascenso revolucionário para o beco sem saída das eleições, derrotando o processo revolucionário em toda a América Central.

Além disso, a ditadura castrista apoiou governos burgueses “progressistas”, como Lopez Portillo e Luis Echeverria (México) e muitos outros. Essa política seguiu com os “progressistas” Lula, Evo Morales, Bachelet, Cristina Kirchner etc. Chegou mesmo a buscar aproximação com governos democratas nos EUA, como Carter e Obama.

Por último, a ditadura castrista ajudou as ditaduras do MPLA em Angola e Frelimo em Moçambique a seguirem o mesmo curso da Nicarágua. Nesses países, depois da derrota das forças armadas portuguesas, se impuseram ditaduras burguesas desses movimentos, que seguem existindo até hoje.

O isolamento de Cuba não é somente um resultado da força do imperialismo. É também produto de uma política contrária aos processos revolucionários, assumida conscientemente pela ditadura castrista, como parte do aparato stalinista, de “coexistência pacífica” com a burguesia. Quando se deu a queda das ditaduras stalinistas no leste europeu, Cuba sofreu os resultados dessa política, ficando extremamente isolada.

O stalinismo justifica a política da ditadura castrista por esse isolamento mundial, inclusive seus planos restauracionistas. Nos parece completamente equivocado. A política para romper o isolamento não é o apoio às “burguesias progressistas”, e sim o apoio às lutas dos trabalhadores, independente desses mesmos governos, apontando para novas revoluções socialistas.

4- A restauração do capitalismo

A realidade cubana mudou radicalmente para pior com o processo de restauração do capitalismo, na década de 90 do século passado, logo depois da restauração nos estados do Leste Europeu. A parte mais dinâmica da economia foi privatizada, acabaram o monopólio do comércio exterior e a planificação da economia.

Em Cuba se deu um processo de restauração capitalista com algumas características parecidas e outras bem diferentes ao da China.

Na década de 90, a mesma direção castrista que dirigiu a revolução de 1959, comandou a restauração do capitalismo na ilha. Isso facilita o engano dos ativistas em todo o mundo. Afinal de contas, são os Partidos comunistas chinês e cubano que seguem no poder.

Acompanhando o que aconteceu na China depois de 1978 e na ex-URSS após 1986, a burocracia castrista começou a restauração do capitalismo, com uma medida atrás de outra.

A Junta Central de Planificação, que dirigia a economia planificada, foi dissolvida. Acabou na mesma época o monopólio do comércio exterior por parte do Estado.

Em setembro de 1995 foi aprovada pela Assembleia Nacional a Lei de Investimentos Estrangeiros. Assim, o terceiro pilar da economia do antigo Estado operário, a propriedade estatal dos principais meios de produção, foi sendo destruído, setor por setor.

As empresas estatais foram sendo entregues ao capital estrangeiro, fundamentalmente do imperialismo europeu, em particular com joint ventures (empresas mistas). Hoje estas empresas dominam o principal setor da economia cubana, o turismo, com multinacionais espanholas como a Meliá e a Iberostar controlando os grandes hotéis e resorts para turistas de classe média europeia, norte e sul-americana que possam pagar seus altos custos.

Além disso, as empresas mistas controlam a exploração de petróleo, ferro, níquel, cimento; a produção de sabão e perfumaria; os serviços telefônicos de lubrificantes, de serviços telefônicos, da produção de sabão, de perfumaria e a maioria da agroindústria. O rum cubano é controlado pela empresa francesa Pernod. Os charutos cubanos são comercializados por uma joint venture entre a estatal cubana e a Altadis, do grupo inglês Imperial Tobacco Group PLC. O aeroporto internacional de Havana foi privatizado para a empresa francesa Aéroports de Paris.

Mais uma vez, o aparato stalinista tenta embelezar a restauração capitalista ocorrida em Cuba como a expressão do “socialismo de hoje”, distinto dos tempos passados. Isso nada tem de marxista.

A mesma direção política que liderou a revolução, encabeçou a restauração do capitalismo em Cuba

O estado garante às multinacionais uma mão de obra qualificada sem qualquer possibilidade de se mobilizar contra os baixos salários. Garante também a possibilidade de remessa dos lucros para suas matrizes sem restrições. Esse é o “modelo de socialismo” de hoje? É, na verdade, um modelo bem conhecido, mas das ditaduras burguesas dos países semicoloniais.

Uma nova grande burguesia cubana nasceu na alta cúpula das forças armadas, originada e concentrada ao redor das Joint ventures com empresas imperialistas da GAESA (Grupo de Administración Empresarial SA.), dirigida pelo genro de Raúl Castro. Essa alta burguesia, associada ao capital estrangeiro europeu, controla entre 40 e 70% da economia, a depender das fontes que se estude.

5- A restauração do capitalismo se completou?

Existe todo um setor da esquerda mundial, crítica ao castrismo, que admite a existência de um processo de restauração capitalista em Cuba. Mas afirmam que esse processo não concluiu e que Cuba segue sendo um estado operário burocrático, e que é necessário “defender as conquistas da revolução cubana”.

Muitos desses setores se reivindicam  trotsquistas, como PTS argentino. Em geral esses setores cometem dois erros de análise.

Em primeiro lugar, admitem o processo de restauração do capitalismo em Cuba, mas focam seu estudo nas pequenas empresas de produção e comércio que crescem na ilha. Estão errados. Essa burguesia pequena não determina os rumos do estado e da economia cubanas. Foi a alta burguesia, surgida a partir da GAESA (Grupo de Administración Empresarial S.A.) e à família Castro, formada desde o estado, que dirigiu a restauração do capitalismo e se beneficia dele.

Em segundo lugar, argumentam que o capitalismo não foi restaurado porque ainda existem muitas empresas estatais em Cuba, e que ainda existem conquistas na educação, saúde , esportes etc.

Vamos ao debate. Comecemos por como caracterizamos o estado. Segundo Lenin e Trotsky, o caráter de classe do estado é determinado por sua relação com os meios de produção, com as formas de propriedade que o estado defende e preserva. Como definir um estado que defende e preserva as empresas associadas com o capital europeu? A nosso ver, trata-se de um de um estado burguês.

Existe uma desigualdade no tempo entre a mudança do caráter do estado que ocorreu na década de 90, e a do conjunto da economia, que passou a ser essencialmente capitalista muitos anos depois.

Isso ocorreu também na URSS. Gorbatchev mudou o caráter do estado em 1985, quando chegou ao poder e começou a restauração do capitalismo. Mas a restauração só se conclui na década de 90. Na China, Deng Hsao Ping mudou o caráter do estado em 79, quando começou a restauração, que só se concluiu também muitos anos depois.

Se dá aqui um processo simétrico e inverso ao que se passou na revolução russa: os bolcheviques tomaram o poder e mudaram o caráter do estado em 1917, mas a economia só vai mudar centralmente a partir de 1918, quando avançam as estatizações.

Como se pode definir um estado como operário, se não existe mais o tripé que o caracteriza? Ou seja, sem a planificação central da economia, sem o monopólio do comércio exterior, sem as empresas estatais no centro da economia? Trata-se de um estado burguês, promovendo e desenvolvendo a restauração do capitalismo. Se não é assim, qual o critério marxista pelo qual se define o estado cubano?

A existência de muitas empresas estatais em Cuba não é um critério marxista. Em muitos e muitos países capitalistas existem empresas estatais, em quantidades variadas. É fundamental responder se essas empresas estatais são regidas por uma planificação da economia, ou se servem à acumulação capitalista, como nos outros países capitalistas.

Existem ainda muitas estatais na China. Inclusive os grandes bancos chineses são estatais, e servem diretamente ao processo de acumulação capitalista das grandes empresas privadas chinesas.

Não se pode usar uma definição linear, quantitativa e mecânica para definir uma economia só pela quantidade de estatais.

Existe um critério marxista, que define a globalidade da economia. Como dizíamos no início do artigo: se a economia é regida pela lei do valor, pelo mercado, a oferta e a procura, se trata de uma economia capitalista. Se a economia é regida pela planificação da economia estatizada, trata-se de uma economia não capitalista, em algum momento de sua evolução para o socialismo ou de regresso ao capitalismo.

Hoje Cuba é uma economia regida pelo mercado, com sua evolução determinada pela lei do valor. Vejamos uma comparação histórica para demonstrar isso.

Durante a depressão de 1929, a economia da URSS — um estado operário, mesmo dirigido pela burocracia stalinista — cresceu com índices superiores a 10% ao ano. Em 2020, na recessão mundial, Cuba teve uma queda do PIB de 11%. Por quê? Por ter sua economia determinada pelo mercado, no caso pela queda no turismo mundial, que afetou fortemente o principal setor da economia da ilha.

Alguns poderiam argumentar que o problema é que Cuba é uma pequena ilha, sem a dimensão da URSS. Então porque os reflexos do mercado mundial na economia cubana foram completamente diferentes na década de 70 do século passado, em que também ocorreu uma recessão mundial produto do fim do boom do pós-guerra?  Não existiu uma recessão nesse grau em Cuba. Não existia a miséria atual do povo cubano.

A consequência programática dessa discussão teórica é enorme. Os que caracterizam que Cuba segue sendo um estado operário têm como programa uma revolução política que só modifique o regime político. Os que, como nós, caracterizamos que Cuba é capitalista, defendemos uma nova revolução socialista, que exproprie as empresas privatizadas nas mãos do capital estrangeiro, retome a planificação da economia e o monopólio do comércio exterior. E que rompa com a ditadura stalinista e construa uma nova democracia dos trabalhadores.

Queremos perguntar a esses setores que seguem defendendo Cuba como estado operário, o que opinam que se deve fazer com o setor mais importante da economia cubana, o setor de turismo, com os grandes hotéis privados? Deve-se expropriá-los ou não? Se deve ou não reestatizar o aeroporto cubano, a produção e comercialização de rum? Deve se retomar a planificação da economia ou não? É fundamental voltar ao monopólio do comércio exterior? Se responderem afirmativamente a essas perguntas, significa que estão propondo uma nova revolução socialista em Cuba. Se negarem esse programa, apontam para a manutenção da miséria dos trabalhadores cubanos.

O antigo estado operário burocratizado cubano desapareceu, permanecendo só sua aparência, com o PC à frente, como na China.

As conquistas da revolução na saúde e educação, que foram mostradas com orgulho pelos ativistas de esquerda em toda a América Latina, estão em retrocesso evidente. Um exemplo disso foi a terrível situação de colapso na assistência médica em Cuba com o recrudescimento da pandemia, bem parecido ao que ocorreu nos países latino-americanos. Isso levou com que, inclusive, o governo colocasse a culpa nos médicos do país, gerando manifestações através de vídeos e cartas por toda a ilha.

A consequência mais terrível da restauração do capitalismo é a miséria do povo cubano. Não existiria bases materiais para o 11J nem para a explosão que está se armando em Cuba sem as consequências econômicas e sociais da restauração do capitalismo.

6- A polêmica com os stalinistas

O stalinismo, como aparato mundial, enfraqueceu muito com a queda das ditaduras do leste europeu. Mas segue sendo ainda muito forte até os dias de hoje. Conta com PCs em muitos países, alguns deles com peso de massas. Todos em defesa de Cuba, como “único bastião socialista da América Latina”. Muitos partidos reformistas não stalinistas, como PT e PSOL no Brasil, apoiam a ditadura castrista.

O stalinismo é muito mais que o autoritarismo bem conhecido e repudiado. Tem uma ideologia reformista que tem um alcance muito maior que os próprios PCs. Eles substituem o método de análise marxista das classes sociais pelo dos “campos progressivos”.

De um lado estariam os “campos progressivos”, que incluem os “governos de esquerda” e as “burguesias progressivas”. Do outro, estaria o inimigo, o imperialismo norte-americano.

Assim, todos os que se opõem a esses governos progressivos são “agentes do imperialismo norte-americano”. Nesses países dirigidos por esses “governos de esquerda”, não existem as classes sociais reais, nem luta de classes. Só existem os governos progressivos e os seus inimigos, os agentes do imperialismo.

Para a propaganda stalinista, Cuba e China, além de terem “governos de esquerda” até hoje são países “socialistas”. A partir daí, os PCs apoiaram o massacre da Praça da Paz Celestial em 1989. Mesmo perante milhares de jovens mortos em uma manifestação pacífica em Pequim, o aparato stalinista seguiu falando de “agentes do imperialismo”. Não surpreende que apoiem a repressão do 11J em Cuba.

A China, ao contrário da propaganda stalinista é uma potência capitalista. Desde o início da restauração, na década de 70 do século passado, lá houve grandes investimentos das empresas multinacionais. Com baixíssimos salários e uma ditadura que reprimia qualquer ameaça de greve, se impôs o “novo modelo de socialismo”, que foi propagandeado pelo imperialismo mundial como exemplo, criando um novo paradigma salarial, ajudando a rebaixar o nível de vida dos trabalhadores em todo o mundo.

O aparato stalinista diz que esse é o “socialismo” dos dias atuais, diferente dos tempos de Marx e Engels. O marxismo, no entanto, define a transição do capitalismo para o socialismo a partir da estatização das grandes empresas, a planificação da economia e o monopólio do comércio exterior. Isso segue válidos nos tempos atuais. A economia chinesa é regida pelo mercado. Seu setor mais dinâmico e importante inclui as grandes empresas privadas da burguesia nacional chinesa e multinacional. O monopólio do comércio exterior acabou no século passado e não existe planificação da economia.

Na verdade, só resta uma aparência de “socialismo”, com o PC chinês à frente do governo. Mas agora encabeçando uma ditadura policial, expressando a grande burguesia chinesa. Hoje a China cresceu em termos capitalistas, a ponto de disputar espaços com o imperialismo norte-americano, na “guerra comercial”.

Com essa metodologia de análise dos “governos progressivos”, os PCs e seus seguidores apoiam Assad, ditador sírio, que matou 500 mil habitantes para se preservar no poder.  Apoiam as ditaduras burguesas de Maduro na Venezuela e Ortega na Nicarágua. Mas, ao contrário da propaganda stalinista, quem governa esses países são as novas burguesias surgidas a partir do aparato de estado. E nesses países existem trabalhadores, que lutam contra a miséria capitalista imposta por esses governos.

O imperialismo age sobre esses países? Age. Em geral atua através e junto com esses governos. Houve ou não grandes investimentos imperialistas na China? Quem implementou as reformas neoliberais na Síria e Nicarágua? Assad e Ortega. Maduro, apesar dos atritos atuais com o imperialismo norte-americano, mantém a exploração de petróleo no país em associação com as multinacionais imperialistas. Para os stalinistas , no entanto, esses governos são “anti-imperialistas”.

O stalinismo mundial diz que Cuba é, como a China, um exemplo de “socialismo atual”, com investimentos estrangeiros e salários baixíssimos. Mais uma vez, só existe de “socialismo”, a presença do PC no comando da ditadura, exatamente como a China. Se isso definisse o caráter do estado e da sociedade, porque não chamar também de “socialistas” os países capitalistas governados por “partidos socialistas”, como na Europa?

Nós continuamos sendo marxistas, analisando as classes sociais e suas relações com o estado e a economia. Cuba é hoje uma ditadura capitalista, ao contrário do que dizem seus apoiadores em todo o mundo.

7-Duas estratégias de luta contra o bloqueio

Como já dissemos, lutamos contra o bloqueio dos EUA sobre Cuba desde seu início. Nesse sentido, temos um ponto de acordo com o governo cubano e todo o aparato stalinista mundial.

Mas é um acordo tático. Temos, também nesse terreno, uma diferença global, estratégica, com os aparatos stalinistas. Nós queremos o fim do bloqueio como parte de um processo revolucionário anti-imperialista, apoiando as lutas dos trabalhadores da América Latina contra seus governos e o imperialismo.

Não lutamos só contra o imperialismo norte-americano, mas também contra o europeu, que semicoloniza a ilha. Alguém já viu o stalinismo mundial denunciar o imperialismo europeu em Cuba?

O governo cubano quer o fim do bloqueio para que as empresas imperialistas norte-americanas venham para Cuba, como fazem hoje as espanholas, francesas e italianas. O governo cubano quer o fim do bloqueio para avançar na semicolonização da ilha.

8- Existe um capitalismo de estado em Cuba?

Existem alguns setores da vanguarda cubana que reivindicam que em Cuba existe, desde a revolução de 1959, um capitalismo de estado.

Queremos registrar que, mesmo tendo diferenças importantes, temos dois acordos parciais com esses setores, que devem ser valorizados.

O primeiro é que em Cuba nunca se chegou ao socialismo. Como dissemos antes, para avançar ao socialismo necessitamos o desenvolvimento planificado das forças produtivas em escala internacional, o que não ocorreu. Nem em termos do regime político: Cuba foi uma ditadura burocrática no marco de um estado operário antes, e agora é uma ditadura burguesa.

Nesse sentido, temos acordo parcial com a imagem usada por  David Karvala de que em Cuba nunca houve um “socialismo desde abajo”.  (Cuba: por el socialismo y la libertad). Efetivamente, nunca houve socialismo em Cuba.

Essa definição de Karvala não é precisa porque a estratégia marxista da ditadura do proletariado, como uma democracia dos trabalhadores, na tradição da Comuna de Paris e dos sete primeiros anos do regime dos sovietes na revolução russa, não é apenas “desde abajo”. Na estratégia marxista se inclui necessariamente uma direção revolucionária do processo, como foi o partido bolchevique na revolução russa. Reivindicamos a construção de um partido revolucionário, com critério leninista, assim como reivindicamos os quatro primeiros congressos da III Internacional, parte fundamental a nosso ver, do legado da revolução russa e de sua estratégia de revolução mundial. Mas digamos que temos um acordo parcial com essa definição.

Em segundo lugar, temos acordo de que Cuba hoje é capitalista, e é necessária uma nova revolução socialista na ilha.

Mas existe uma diferença é global com a definição de “capitalismo de estado”, defendida por Karvala e outros socialistas, que reivindicam a análise de Tony Cliff para a URSS.

Essa visão, em primeiro lugar, embeleza o capitalismo. Afinal de contas, capitalismo de estado é uma forma do capitalismo.

Por essa visão, teria sido o capitalismo que possibilitou a transformação da Rússia do mais atrasado país europeu na segunda potência econômica e militar do mundo em algumas décadas. Teria sido o capitalismo que possibilitou as conquistas econômicas e sociais dos trabalhadores cubanos desde a revolução até a década de 90 do século passado. Ou seja, o capitalismo de estado seria uma forma superior de capitalismo, que possibilita um grande desenvolvimento das forças produtivas e uma melhoria qualitativa da situação das massas. Se isso fosse assim, esse estágio capitalista seria necessário e desejável.

Isso se choca com a compreensão do capitalismo com um freio para o desenvolvimento das forças produtivas e a origem do empobrecimento do proletariado contida no Manifesto Comunista. Se choca com a avaliação de Lenin do imperialismo como a fase superior do capitalismo. Se choca com a teoria da revolução permanente de Trotsky, que parte da mesma compreensão do Manifesto Comunista e da avaliação de Lenin. E, se existe essa fase superior do capitalismo, o “capitalismo de estado”, nossa estratégia socialista não está questionada?

Trotsky, respondia aos que caracterizavam a URSS como capitalismo de estado:

“Diante de novos fenômenos, os homens muitas vezes buscam refúgio em velhas palavras. Tentativas foram feitas para disfarçar o enigma soviético com o termo capitalismo de Estado, que tem a vantagem de não oferecer a ninguém um significado preciso. Serviu primeiro para designar os casos em que o Estado burguês assume a gestão dos meios de transporte e de certas indústrias. A necessidade de medidas semelhantes é um dos sintomas de que as forças produtivas do capitalismo superam o capitalismo e o negam parcialmente na prática. Mas o sistema sobrevive e permanece capitalista, apesar dos casos em que chega a negar a si mesmo.” …
… A primeira concentração dos meios de produção nas mãos do Estado conhecida na história foi realizada pelo proletariado através da revolução social, e não pelos capitalistas através dos trustes estatizados. Esta breve análise será suficiente para mostrar quão absurdas são as tentativas de identificar o estatismo capitalista com o sistema soviético. O primeiro é reacionário, o segundo realiza grandes progressos.

Qualificar o regime soviético como transitório ou intermediário é descartar as categorias sociais acabadas, como o capitalismo (incluindo o “capitalismo de Estado”) e o socialismo.

Mas esta definição é em si insuficiente e suscetível de sugerir a falsa ideia de que a única transição possível do regime soviético conduz ao socialismo. No entanto, um retrocesso para o capitalismo ainda é perfeitamente possível. Uma definição mais completa seria necessariamente mais longa e mais pesada.

A URSS é uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo, na qual: a) As forças produtivas ainda são insuficientes para dar à propriedade do Estado um caráter socialista; b) A tendência à acumulação primitiva, nascida da sociedade, manifesta-se por todos os poros da economia planificada; c) As normas de distribuição, de natureza burguesa, estão na base da diferenciação social; d) O desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que melhora lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para a rápida formação de uma camada de privilegiados; e) A burocracia, ao explorar os antagonismos sociais, tornou-se uma casta descontrolada, alheia ao socialismo; f) A revolução social, traída pelo partido no poder, ainda vive nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) A evolução das contradições acumuladas pode levar ao socialismo ou lançar a sociedade ao capitalismo; h) A contrarrevolução em marcha para o capitalismo terá que quebrar a resistência dos operários; i) Os operários, ao marchar para o socialismo, terão que derrubar a burocracia. O problema será definitivamente resolvido pela luta de duas forças vivas no terreno nacional e internacional.

Naturalmente, os doutrinários não ficarão satisfeitos com uma definição tão hipotética. Eles gostariam de fórmulas categóricas; sim e sim, não e não. Os fenômenos sociológicos seriam muito mais simples se os fenômenos sociais sempre tivessem contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, para obter precisão lógica, os elementos que agora contradizem nossos esquemas e que amanhã podem refutá-los. Em nossa análise tememos, sobretudo, violar o dinamismo de uma formação social inédita e sem analogia. O objetivo científico e político que buscamos não é dar uma definição acabada de um processo inacabado, mas observar todas as fases do fenômeno e destacar delas as tendências progressistas e, as reacionárias, revelar sua interação, prever as várias variantes do desenvolvimento posterior e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação.” (Revolução Traída)

Colocamos essa citação longa de Trotsky não só para precisar sua rejeição a essa categoria de “capitalismo de estado” para analisar a URSS. Queremos também mostrar como a caracterização que ele fazia sobre a URSS, como um processo transitório e contraditório, era muito mais precisa e dialética que a formulação de “capitalismo de estado”. Essa caracterização permitiu a Trotsky deixar em aberto a evolução da URSS, inclusive para a possibilidade de restauração do capitalismo, que enfim ocorreu.

Essa é exatamente a segunda grande contradição da definição de Cuba como capitalismo de estado. Com a utilização dessa categoria, não teria havido a restauração do capitalismo na década de 90 em Cuba. Era capitalismo de estado, seguiu sendo capitalismo de estado. Não teria havido nenhuma mudança de qualidade.

Essa categoria não consegue analisar essa transformação. E o marxismo pressupõe unir a teoria com a análise da realidade concreta. Não aconteceu nada em Cuba desde a década de 90 para cá? É verdade que a ditadura do PC cubano segue existindo, mas isso é apenas parte da realidade.

Não houve uma transformação completa com a entrada dos capitais europeus, e o giro da economia cubana para o turismo mundial com os grandes hotéis privados, o surgimento de uma nova grande burguesia através da GAESA?

Não houve um empobrecimento geral do povo cubano? A miséria atual do povo cubano e o retrocesso nas conquistas da revolução cubana não existem? Sempre foi assim? Os avanços que os cubanos tiveram com a revolução, mesmo no marco de uma ditadura, e que possibilitou que resistissem as ofensivas imperialistas do passado, não existiram?  E como explicam o empobrecimento das massas russas com a restauração do capitalismo nesse país?

A única forma de se falar em capitalismo de estado em Cuba é negando a realidade, seja no passado, seja no presente.

Os que defendem essa teoria de capitalismo de estado poderiam argumentar que a decadência de Cuba e a crise atual se devem apenas ao fim do auxílio econômico da URSS e ao bloqueio econômico dos EUA. Mas isso não explica as transformações sociais que surgiram em Cuba desde a década de 90, incluindo a geração de uma nova grande burguesia. Além disso, é o mesmo argumento do castrismo que explica tudo pelo bloqueio norte-americano e o fim do auxílio da URSS.

O terceiro grande equívoco da teoria de capitalismo de estado é a negação da economia marxista. A economia capitalista, na compreensão marxista, é regida pela lei do valor, pelo mercado, a oferta e a procura. Era assim na URSS da década de 30 do século passado, da mesma forma que na Rússia de hoje?

Tony Cliff, ao não poder responder a isso, tentou um malabarismo teórico, dizendo que existia a lei do valor “nas relações da URSS com o mercado mundial”. Sim, mas e no interior da URSS? Cliff não responde isso porque é irrespondível. Não existe maneira de reivindicar a economia marxista, baseada na lei do valor e, ao mesmo tempo, a teoria do capitalismo de estado.

Mais uma vez voltamos aqui à comparação da URSS durante a depressão mundial de 29, quando crescia a grandes taxas (porque não era regida pela lei do valor), e Cuba na recessão mundial de 2020 (regida pela lei do valor, já com o capitalismo restaurado), com queda de 11% do PIB.

Definitivamente, a teoria de “capitalismo de estado” não consegue avaliar nem a evolução histórica, nem a situação concreta de Cuba nos dias de hoje.

9-A realidade atual de Cuba

Ao contrário do que diz a propaganda stalinista, o povo cubano vive na miséria e odeia a ditadura castrista.

Em dezembro de 2020, o governo de Díaz-Canel impôs o plano “Tarefa de Ordenamento”, muito parecido aos planos neoliberais de todo o mundo.

Esse plano visava a unificação das moedas vigentes em Cuba. Mas o resultado para os trabalhadores foi desastroso. O salário-mínimo em Cuba hoje é de 33 dólares ao mês, com as mercadorias vendidas a preços semelhantes aos de toda a América Latina. Houve uma duríssima elevação dos preços do gás e energia elétrica. Junto a isso, veio uma hiperinflação e um terrível desabastecimento.

Os únicos beneficiados por esse plano foram as grandes empresas multinacionais instaladas em Cuba… e a nova burguesia cubana associada.

Essa foi a base material da explosão popular de 11 de julho. Por isso, nas ruas estavam muitos cubanos pobres, dos bairros dos trabalhadores. Nada a ver com as mobilizações de classe média de direita, dos bairros mais ricos, que ocorrem por vezes em nossos países, em apoio às propostas da burguesia e do imperialismo.

Nós apoiamos as lutas dos trabalhadores contra os planos neoliberais na Colômbia e no Chile e denunciamos a dura repressão dos governos. Nós apoiamos o 11J e denunciamos a repressão do governo cubano.

11J em Cuba

É verdade que a repressão ao 11J foi menor que a ocorrida na Colômbia e no Chile. Isso foi assim porque as mobilizações também foram menores, sendo interrompidas no próprio dia 11 de julho. Se fossem maiores, a repressão seria também maior. Também seriam apoiadas pelo aparato stalinista. Afinal, os que saíram as ruas são todos “agentes do imperialismo”…

A mobilização do 15N não foi espontânea como o 11J. Foi convocada pela plataforma Arquipélago, apoiada por setores de esquerda e da direita pró-imperialista foi também duramente reprimida. A ditadura deslocou um pesadíssimo aparato militar, que impediu que os convocantes saíssem às ruas, com medo de um novo 11J.

A “democracia popular” de Cuba, propagandeada pelos stalinistas é uma farsa. Essa ditadura sabe que é odiada e por isso tem medo de seu próprio povo. Não permite nenhum tipo de democracia, nem operária nem burguesa. A  autointitulada “democracia popular” não é nem democracia, muito menos popular. A população sofre uma perseguição e vigilância policial todo o tempo. Os que discordam perdem seus empregos, são vigiados e perseguidos.

Por que não permitem a existência de nenhum partido de esquerda que não apoie o governo? Por que não existe nenhum sindicato livre em Cuba?

Reprime qualquer tipo de oposição. Reprimiu o 11J, o 15N, assim como a marcha LGBTI de maio de 2019, as manifestações artísticas independentes e todos os atos que a questionem. A dura repressão empurra os que se opõem para o exilio ou a prisão.

Se é verdade que não houve uma repressão duríssima no próprio 11J, os julgamentos sumários e juízos que enfrentam até hoje as mais de 1000 pessoas que foram presas desde esse dia, propõem penas duríssimas, algumas ultrapassando 30 anos de cárcere por manifestar-se.

10- A ação política imperialista sobre Cuba e como lutar contra ela

Existe uma forte disputa entre o aparato stalinista cubano e mundial por um lado, e a propaganda imperialista por outro. Ambos dizem que só existem dois campos: o “socialista” e o imperialista.

Nós combatemos o imperialismo. E combatemos também o reformismo. Para isso, utilizamos o método marxista, que não substitui as classes em luta por “campos”. Avaliamos relações entre as nações no sistema mundial de estados. E analisamos as situações concretas da luta de classes.

Por isso combatemos o bloqueio imperialista sobre Cuba. Por isso também podemos lutar contra a ditadura burguesa em Cuba, de forma independente do imperialismo.

É inegável que a burguesia cubana de Miami quer se aproveitar da atual crise do governo cubano. Também é inegável que quer disputar a vanguarda que está surgindo na luta contra a ditadura.

Para isso, foi formado o chamado “Consejo Nacional de Transición”. Esse Conselho defende um programa democrático burguês contra a ditadura cubana… e a devolução das propriedades confiscadas da burguesia de Miami. Defendem uma completa subordinação de Cuba ao imperialismo norte-americano.

A ação do imperialismo está ganhando uma parte da vanguarda que surgiu do 11J. Ganhou o Movimiento San Isidro. Ganhou aparentemente Yunior Garcia, a principal liderança da convocatória do 15N, que fugiu de Cuba e apareceu publicamente vinculado à direita espanhola.

Por outro lado, o aparato stalinista também age para quebrar essa vanguarda, com as prisões, processos e difamações. Além disso, também pressiona ideologicamente, com essa farsa de que todas as mobilizações que surgem “tem o imperialismo por trás”. Por isso, alguns dos ativistas que participaram do 11J , se negaram a apoiar a mobilização de 15 de novembro, por ser “apoiada pelo Consejo”.

Felizmente, não existe somente a vanguarda que capitula ou apoia o imperialismo e a que capitula à ditadura stalinista. Um setor dessa vanguarda está contra as manobras imperialistas e contra a ditadura castrista.

É importante resgatar um critério marxista de intervenção em lutas democráticas. Estamos perante mobilizações populares como a do 11J contra uma ditadura. Nós intervimos nelas, apoiando os trabalhadores e polemizando contra as manobras imperialistas.

O imperialismo vai buscar capitalizar esse tipo de crise em função de seus interesses. Fez isso na China em Tian na Amen, e nem por isso era errado apoiar a luta da juventude chinesa contra a ditadura. Tentou se aproveitar das revoltas democráticas contra as ditaduras stalinistas na Hungria (56), Tchecoslováquia (68) e Polônia (80), que foram massacradas pela repressão stalinista.

O caráter democrático progressivo dessas mobilizações não muda pelas tentativas imperialistas de manipulação. A única forma de lutar contra a influência do imperialismo sobre essas lutas democráticas é ser parte dessas mobilizações e lutar contra essas manobras. A outra alternativa é entregar ao imperialismo a direção dessas lutas. A única maneira de lutar seriamente contra as tentativas do “Consejo de Transicion” e a burguesia de Miami de tomar a direção dessas lutas é participar delas e lutar contra o programa da direita para Cuba.

Se negamos essas lutas, as deixamos nas mãos dos grandes aparatos que as disputam.  A esquerda que capitula ao stalinismo faz um favor ao imperialismo ao apoiar a ditadura. Com isso aumenta o peso da burguesia cubana de Miami e seus apoiadores nas lutas democráticas. Reforça a ideologia que só existem dois “campos”: o “socialista” e o “imperialista”.

Os stalinistas e reformistas apoiadores da ditadura castrista tem uma coerência contrarrevolucionária em sua posição de negar apoio às mobilizações das massas como 11 de julho e apoiar a repressão a elas.

Mas os que se reivindicam trotskistas e não apoiam as mobilizações das massas contra a ditadura stalinista, não tem nenhuma coerência.

Digamos que as correntes que dizem que em Cuba ainda não se restaurou completamente o capitalismo tenham razão. Suponhamos que em Cuba estivéssemos na mesma situação da Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 68 e Polônia em 80. Foi correto o apoio àquelas mobilizações das massas? E se eram corretas naquela época, não é correto hoje?

Na verdade, não apoiar as mobilizações como o 11J em Cuba “pelas manipulações do imperialismo” é uma ruptura com o trotskismo.  Isso é, na verdade, uma capitulação a ditadura stalinista.

O governo cubano conseguiu evitar as mobilizações do 15N, através da repressão e o uso de um gigantesco aparato militar. A vanguarda que estava organizando essa mobilização sofreu uma derrota. O aparato stalinista mundial está em júbilo.

No entanto, a realidade segue seu curso. A crise econômica, produto da restauração capitalista segue se aprofundando, assim como a miséria das massas. A ruptura dos trabalhadores e da juventude cubanas com a ditadura castrista segue se aprofundando.

As mobilizações de 11J foram um marco, com um antes e um depois. A repressão ocorrida no 15N só aprofundou o ódio das massas contra a ditadura.

11- Para onde vai Cuba?

Em Cuba, está se gestando uma grande explosão contra essa ditadura burguesa e corrupta. Não sabemos quando nem como se dará. Mas essa é a dinâmica.

O apoio da esquerda pró-stalinista à ditadura castrista joga nos braços do imperialismo a formação de alternativas democráticas em Cuba. Isso pode levar a que a derrubada da ditadura castrista termine sendo capitalizada por direções imperialistas como Yeltsin na Rússia, agora através da burguesia imperialista de Miami.

Nós propomos o oposto: lutar contra a ditadura cubana como parte de uma estratégia socialista e anti-imperialista. Nós queremos uma nova revolução socialista, reestatizando as empresas privatizadas, inclusive as que estão em mãos do imperialismo europeu com uma planificação da economia e controle direto e real dos trabalhadores. Queremos uma democracia operária em Cuba, oposta à ditadura stalinista, que de fato tenha sua essência na participação dos trabalhadores em todas as decisões fundamentais e estratégicas da ilha.

Os ativistas de esquerda que defendem a ditadura cubana pensando que, apesar dos erros, o stalinismo defende o que resta da revolução cubana, devem refletir sobre o que ocorre na China. Devem repensar no que leva os PCs a defenderem ditaduras burguesas como a chinesa, a venezuelana, síria e nicaraguense. E ver se não existe semelhança com o que ocorre hoje em Cuba.

A ditadura castrista não está defendendo o Estado Operário burocratizado que há muito tempo não existe mais, mas sua aliança com as grandes empresas europeias, seus lucros e privilégios. Por isso é odiada pelo povo cubano. Apoiar a ditadura stalinista é fortalecer essa visão dos “campos progressivos junto com a burguesia”, que ignora as classes sociais e o marxismo. E prepara uma nova derrota em Cuba.

Nós da LIT, defendemos o lado dos trabalhadores e da juventude em Cuba. Achamos sua luta legítima, justa e necessária. Não se pode negar a realidade de profunda desigualdade econômica e a existência da repressão às liberdades democráticas. A verdadeira maneira de defender o socialismo em Cuba é defendendo uma nova revolução socialista contra essa ditadura.


[1] José Luis Rodríguez y George Carriazo Moreno: Erradicación de la pobreza en Cuba, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1987.

[2] Edgardo Lander: Crisis civilizatoria. Experiencias de los gobiernos progresistas y debates en la izquierda latinoamericana, Editorial Universitaria: CALAS Maria Sybilla Merian Center, 2019.

[3] Ivette García González: «Corrupción y crisis sistémica en Cuba», en Cuba X Cuba. Laboratorio de pensamiento cívico, el 6 de septiembre de 2023, disponible en https://www.cubaxcuba.com/blog/corrupcion-crisis-sistemica-cuba

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