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Bolívia

Os bloqueios de Evo Morales

fevereiro 26, 2024

Durante 16 dias, de 22 de janeiro até 6 de fevereiro, os bloqueios de rodovias, promovidos por organizadores sindicais e sociais ligados a Evo Morales, convulsionaram a Bolívia. Este tradicional método de luta dos camponeses bolivianos, voltou a ser usado. Mas, desta vez, não era para lutar contra um golpe militar, nem por “terra e território”, ou contra o aumento dos combustíveis, como tantas outras vezes. Desta vez se tratava de solucionar uma briga interna do MAS, o partido do governo.

Por: Alícia Sagra

A bandeira de luta desses bloqueios, era a imediata convocação às eleições judiciais[1] e a renúncia dos juízes do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) e do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP). O mandato dos juízes terminou em 31 de dezembro de 2023 e deveriam ser substituídos por outros, escolhidos em novas eleições judiciais, que não foram convocadas pela divisão política do MAS no Congresso. A saída que o governo de Arce viabilizou foi prorrogar o mandato dos juízes até que sejam realizadas novas eleições, ou seja, prorrogação por tempo indeterminado, o que gerou muitas críticas. Foi o pretexto perfeito que utilizaram os setores do MAS que apoiam Evo Morales para convocar o bloqueio. Os juízes mantidos foram os que invalidaram a candidatura de Evo Morales para as eleições presidenciais, resolvendo que a reeleição por tempo indeterminado, não é um direito humano como sustentava o ex presidente boliviano, e que só pode ser presidente, ou vice, durante dois mandatos, tal como afirma a Constituição[2].

Por causa desta disputa, que tem a ver com os anseios eleitorais dos dirigentes do MAS, mais de 4 mil camponeses foram levados, pelas suas organizações sindicais, a levar a cabo esta medida extrema de luta que envolve horas e horas de acampamento sob o sol forte, debaixo de chuva, sem dormir ou dormindo muito pouco, sempre à espera da repressão que pode vir da polícia ou do exército.

Por causa dessa batalha entre os dirigentes do MAS, o partido que diz defender os interesses dos trabalhadores e dos camponeses pobres, os moradores pobres de Cochabamba, La Paz, Santa Cruz (em sua maioria trabalhadores e pobres) sofreram com a escassez de produtos básicos de alimentação, de combustível (efeitos inevitáveis dos bloqueios) e com o já conhecido aumento de preços frente à escassez.

Os trabalhadores, os camponeses e o povo pobre da Bolívia, estão acostumados a esse tipo de situações. Esses sacrifícios são suportados quando têm a ver com a luta por melhores condições de vida, em defesa dos direitos humanos, das liberdades democráticas, para impor um governo operário como cantavam os mineiros em março de 1985. Não acreditamos que possam ser vistos da mesma forma quando se trata de disputas eleitorais dos dirigentes.

O presidente Arce fala pela boca da ministra da presidência María Nela Prada que diz: “Estes bloqueios têm um só motivo: tentar defender a candidatura de Evo Morales[3]. Por sua vez, Evo Morales diz que o que Arce busca é impedir sua candidatura para as próximas eleições. “[Luis] Arce e [David] Choquehuanca pretendem controlar todos os poderes do Estado com a nova liderança militar baseada no privilégio e para ocultar a crescente corrupção no país”, escreveu o ex presidente em suas redes sociais[4].

Certamente ambos têm razão, como nas acusações mútuas de corrupção que se fazem. Não há dúvida de que essa briga não é motivada por nada que tenha a ver com a qualidade de vida dos trabalhadores e do povo pobre que ambos dizem defender.

Em 8 de fevereiro, os bloqueios chegaram ao fim depois que uma comissão bicameral do Parlamento assinou um acordo para destravar as eleições judiciais. E em 17 de fevereiro, a Assembleia Legislativa aprovou por unanimidade a convocação dessas eleições[5]. Entretanto, é difícil que isso solucione o conflito, porque o confronto entre os dirigentes do MAS não começou com os bloqueios.

Um pouco de história

Para entender o que acontece hoje na Bolívia, é necessário trazer um pouco de história.

E a primeira coisa que devemos ter nítida, é que o governo do MAS não se explica sem a revolução operária, indígena e popular de 2003 e de 2005, que derrubou dois governos burgueses Goni, Mesa e impediu a sucessão constitucional de Vaca Diez, homem de confiança da burguesia da época.

No entanto diferente do que toda esquerda oportunista diz, a revolução não continuou com o governo de Evo, este foi, sim, a ferramenta central para desviá-la. A revolução foi tão profunda que a burguesia mais lúcida recorreu à saída extrema de aceitar um governo liderado por um indígena e também cocalero, ainda que isso significasse enfrentar os setores burgueses mais reacionários. Evidente que essa aceitação não foi incondicional. Esse governo “indígena” devia defender o sagrado direito burguês da propriedade privada e respeitar o monopólio total das armas pelas Forças Armadas da Nação. E assim o fizeram, os governos de Evo e também o de Arce.

O governo do MAS nunca foi revolucionário, mas para poder desviar a revolução operária, indígena e popular teve que realizar importantes reformas democráticas, como a eleição dos juízes por sufrágio universal e outras com um grande caráter simbólico para um povo desde sempre oprimido e humilhado, como a educação bilíngue, a wipala como símbolo nacional. O Estado Plurinacional se conteve dentro do simbólico e sua maior expressão material é a ampliação da representação indígena camponesa, operária e popular no Estado, deputados, funcionários públicos e governos locais. Há cotas de cargos segundo sindicatos e organizações. Tudo isso, em meio a uma situação econômica favorável, foi lhe dando grande prestígio popular e o apoio das organizações sindicais, centralmente camponesas, mas também operárias.

Mas, ficou só nisso. A partir daí, tendo desviado a revolução, o governo do MAS continuou aplicando os planos da burguesia e do imperialismo, o que se intensificou quando as condições da economia não foram tão favoráveis. A vida dos operários não melhorou qualitativamente e inclusive foram tomadas medidas que atacaram os indígenas quando, com o objetivo de construir uma mega rodovia, se reprimiu a marcha indígena em defesa do TIPNIS[6].

Esses fatos, somado às manobras de Evo para concretizar sua terceira reeleição, aumentaram o desprestígio de seu governo, o que facilitou o reacionário golpe militar promovido pela direita do Leste boliviano, de novembro de 2019.

Porém o desprestígio de Evo não era absoluto, como se comprovou na reação popular que impediu que o governo golpista de Jeanine Añez se consolidasse e que nas eleições de 2020 a fórmula do MAS voltasse a triunfar, desta vez liderada pelo professor universitário Luis Arce.

Evo vs Arce

Embora a popularidade do MAS seja muito menor do que durante seus primeiros governos, continua sendo a referência mais importante dos setores camponeses, operários e populares.

É por isso que, à medida em que se aproximam as eleições de 2025, a briga entre Arce e Evo se reforça. O que acontece é que este tipo de partidos, independentemente de sua origem popular, na medida em que administram o estado burguês, em que defendem os interesses da burguesia, vão se assemelhando aos partidos burgueses. E como neles se impõem as brigas intestinas pelo poder, pelos cargos no governo, o que está intimamente ligado à corrupção, às prebendas que se recebem por exercer esses cargos, em especial quando se trata da presidência da república. Isso acontece em todos países onde há governos desse tipo, embora esses partidos sejam liderados por um indígena como na Bolívia, ou por um ex operário metalúrgico como no Brasil. E pode ser, também, que esses partidos, depois de passar anos administrando o estado capitalista, mudem seu caráter de classe. Depois da revolução de 52, a partir dos benefícios deixados pelo gerenciamento das empresas estatais, os dirigentes do MNR deram origem a uma nova burguesia boliviana. Não se pode descartar que algo parecido esteja surgindo em torno dos dirigentes do MAS, com seu papel de intermediários nos grandes “negócios” entre o Estado boliviano e a burguesia internacional.

Então, a briga entre Evo e Arce não é por questões políticas, não é porque tenham diferentes projetos para o país, embora Evo tente aparecer como mais à esquerda. Por exemplo, a defesa dos recursos naturais era um dos pontos da Agenda da revolução (2003-2005). Entretanto, realizou-se uma impressionante entrega do lítio do Salar de Uyuni à empresa privada chinesa Citic Cuoan Group e à estatal russa Rosatom. Ante este fato, não houve nenhuma oposição de Evo, que é quem, além disso, mais promoveu (e promove) as relações com a ditadura capitalista chinesa e as grandes empresas desse país.

A briga é por quem será o candidato a presidente pelo MAS em 2025. E a briga se fortalece porque todos os dados indicam que, se o MAS se apresentar unido, dele sairá o próximo presidente da Bolívia, já que não se vê que haja uma reviravolta para a direita. Os setores de direita saíram muito mal depois das massas derrotarem o projeto golpista. Embora não se possa descartar que esses setores voltem a se recompor se a crise do partido governante continuar.

Esta briga saiu à luz, não só para a Bolívia, mas para toda a vanguarda mundial, quando em outubro de 2023, se realizou o congresso do MAS que expulsou o presidente Luis Arce e o vice David Choquehuanca, (dirigente camponês, de origem aymara) e proclamou Evo Morales candidato à presidência.

O que foi respondido por Arce com um chamado (apoiado pela COB) a um Conselho Aberto, e com a impugnação ante a justiça desse congresso e da candidatura. Impugnação que foi aceita pela justiça.

Esse enfrentamento público entre os dirigentes, como não poderia ser de outra forma, levou a confrontos entre as bases que respondiam a um ou outro, o que certamente deve ter se potencializado com os bloqueios.

Qual é a perspectiva?

Independentemente de qual setor se imponha sobre o outro, se o MAS se apresenta unido ou não às eleições de 2025, de quem triunfe nessas eleições; a perspectiva mais imediata é uma nova frustração para os trabalhadores, os camponeses e os pobres da Bolívia.

A classe operária boliviana, que, por mais de 50 anos, veio protagonizando revoluções, outra vez volta a sofrer a traição de seus dirigentes. Confiaram no governo do MAS, no Estado Plurinacional, e agora se encontram ante esta vergonhosa disputa entre dirigentes, que brigam para ver qual deles dirigirá o estado burguês.

Nestas frustrações, colaboraram muito setores oportunistas que, em nome da esquerda e inclusive do marxismo, chamam a confiar em movimentos e governos de aliança de classes. Assim como outros, sectários, que a única coisa que fazem é repetir, ante qualquer situação: “ditadura do proletariado”, como uma fórmula vazia de conteúdo, sem analisar as situações concretas, afastando assim os trabalhadores do poder.

Houve uma só experiência com governos de aliança de classes, que terminou a favor dos trabalhadores. Foi a da revolução russa de 1917. Nela, resultado da revolução que derrubou o Czar, surgiu um governo desse tipo. Porém, a grande diferença foi que existiu um partido operário, revolucionário, internacionalista, o partido bolchevique, que chamou a não confiar nesse governo, afirmando que tudo passava pela tomada do poder pelos trabalhadores. Esse Governo foi destruído e substituído pelo governo dos sovietes (conselhos de operários, soldados e camponeses), que concentrava os três poderes do Estado e com seus membros revogáveis a qualquer momento.

O grande dirigente desse processo foi Lenin, hoje estamos a 100 anos de sua morte, mas seus ensinamentos têm grande atualidade: Nenhuma confiança nos governos de aliança de classe, nenhuma organização política em comum com os oportunistas que apoiam esses governos. Pela mais ampla organização democrática dos operários, dos camponeses, dos desempregados. Pela construção de um partido operário, revolucionário, como parte de um partido revolucionário mundial.

Só seguindo esses ensinamentos, a classe operária e o povo pobre da Bolívia, poderão evitar novas frustrações nos novos processos revolucionários que seguramente virão.


[1] A Bolívia é um dos poucos países onde os juízes são eleitos por sufrágio universal, de candidatos pré-selecionados pela Assembleia Legislativa por 2/3 dos votos. Os requisitos para serem candidatos: nacionalidade boliviana, falar pelo menos dois idiomas oficiais do país, ter licenciatura, estudos especializados e um mínimo de oito anos de experiência profissional. Não podem ser militantes de nenhum partido no momento da eleição.

[2] Apesar disso, Evo Morales foi presidente durante três mandatos (2006-2009, 2010-2014 e 2015-2019) 

[3] BBC New Mundo, 3-02-2024

[4] Idem

[5] Os desacordos políticos, sobretudo no interior do partido governante, impediram em dezembro do ano passado que a Assembleia pudesse pré-selecionar os candidatos por 2/3 dos votos. Por esse motivo, após ter fracassado o consenso político na Assembleia, o Tribunal Constitucional da Bolívia prorrogou o mandato dos juízes atuais.

O Tribunal Constitucional ordenou que a Assembleia “acatasse” a prorrogação do mandato dos magistrados, o que foi rejeitado pela oposição e pela ala liderada por Evo Morales.

.[6] Território Indígena do Parque Isiboro Sécure

Tradução: Lílian Enck

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