sáb set 07, 2024
sábado, setembro 7, 2024

Morre Kissinger, figura central do imperialismo dos EUA no século XX

Morreu, aos 100 anos, Henry Kissinger, um estrategista das políticas do imperialismo estadunidense desde o final da década de 1960. Quais foram as estratégias centrais que ele propôs e impulsionou, e quais foram os impactos no mundo?

Por: Alejandro Iturbe

Kissinger nasceu na Alemanha em 1923, em uma família judia que fugiu da perseguição nazista e se estabeleceu nos EUA em 1938. Durante a Segunda Guerra Mundial, alistou-se como soldado no exército estadunidense. Ele era um excelente aluno e teve depois uma destacada carreira acadêmica na Universidade de Harvard.

Em 1969, quando o republicano Richard Nixon assumiu a presidência do país, Kissinger foi convocado para integrar seu governo, primeiro como Conselheiro de Segurança Nacional e depois como Secretário de Estado (responsável pela política e relações exteriores dos EUA). Mesmo quando Nixon foi forçado a renunciar devido ao processo resultante do chamado “Escândalo Watergate”, Kissinger manteve influência no governo de seu sucessor, Gerald Ford, ex-vice-presidente de Nixon, até 1977, embora em um contexto nacional e internacional diferente. Foi nesses anos que Kissinger pôde plenamente desenvolver sua visão sobre o papel do imperialismo estadunidense no mundo. Foi quando orientou e aplicou políticas derivadas dessa visão.

O criminoso de guerra

Não há dúvida de que Kissinger possuía um nível intelectual muito elevado e tinha a capacidade de elaborar estratégias e transformá-las em ação política. Ele usou essa capacidade em prol da defesa dos interesses do imperialismo estadunidense em diferentes contextos. Inicialmente, enquadrado na perspectiva global de “combater o comunismo”. Especificamente no sudeste asiático, o objetivo era conter a dinâmica de expansão da revolução chinesa de 1949 na região.

Com esse objetivo, ele se tornou um criminoso de guerra. Foi o arquiteto da escalada da intervenção militar na guerra do Vietnã implementada pelo governo Nixon, com métodos genocidas cada vez mais cruéis (como o massacre da aldeia de My Lai) ou a queima de campos de cultivo com napalm (junto com os camponeses que trabalhavam nessas terras). Também foi responsável pela extensão da guerra a países vizinhos, como Laos e Camboja.

Este criminoso de guerra também operou na América Latina, seguindo a mesma estratégia de “combate ao comunismo”, apoiando numerosos golpes de Estado e a instalação de diversas ditaduras militares no continente. No Chile, foi o mentor intelectual do sangrento golpe liderado pelo general Augusto Pinochet contra o governo de Salvador Allende, em 1973. Na Argentina, apoiou o golpe militar de 1976, liderado pelo general Videla, que resultou naquilo que o povo argentino recorda como a Ditadura.

Posteriormente, os militares argentinos se tornaram peças centrais do Plano ou Operação Condor, um plano coordenado de repressão em todos os países do continente, apoiado pelo governo dos EUA. A Ditadura argentina forneceu quadros militares e de inteligência a governos de vários países, em coordenação com a CIA e o Pentágono. Por trás de tudo isso estava Kissinger, como um criminoso de guerra.

Kissinger muda sua política

A inteligência de Kissinger permitiu-lhe compreender que, diante da combinação da resistência heroica do povo vietnamita com as massivas mobilizações contra a guerra nos EUA, o exército estadunidense começava a se desmoronar e a guerra do Vietnã caminhava para uma dura derrota do imperialismo estadunidense.

Aí começou uma política diferente: planejar uma “retirada ordenada” do exército estadunidense do Vietnã e, a partir de 1972, “negociar a paz” com o governo do Vietnã do Norte, o que permitiria disfarçar a derrota e a rendição. Porém, não obteve sucesso: as imagens das forças estadunidenses deixando Saigon apressadamente em barcos e helicópteros correram o mundo. A “paz” era na verdade uma grande derrota e uma rendição do imperialismo estadunidense.

Em 1973, com a hipocrisia que o caracteriza, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido a Kissinger e a Le Dúc Tho, chefe da delegação do Vietnã do Norte. Le Dúc Tho recusou o prêmio, mas Kissinger o aceitou, embora não tenha comparecido pessoalmente para recebê-lo, enviando um representante (ele temia protestos contra si).

Menos conhecido é como esses dois momentos da realidade mundial e das políticas impulsionadas por Kissinger se refletiram no Oriente Médio. Durante seu período como criminoso de guerra, em 1973, ele organizou a Operação Nickel Grass para fornecer armas a Israel em sua guerra contra vários países árabes. Essas armas foram fundamentais na vitória de Israel[1].

Após a derrota no Vietnã, quando os “ventos mundiais” começaram a soprar contra ele, Kissinger foi um precursor da política de atrair regimes e governos árabes para reconhecerem Israel e firmarem a paz com o Estado sionista. Com esse objetivo, viajou para Israel, Síria e Egito e teve reuniões com seus governos. Uma política que, posteriormente, obteve sucesso completo no Egito, com a assinatura dos Acordos de Camp David em 1978, já durante o governo do democrata Jimmy Carter e outro “orientador estratégico”, Zbigniew Brzezinski.

O estrategista da restauração capitalista na China

A derrota na guerra do Vietnã e, consequentemente, na política de isolar o Estado operário chinês com guerras na região e a dinâmica expansiva de sua revolução, levou Kissinger a desenvolver uma nova estratégia em relação à China.

O Estado operário burocratizado chinês era frágil e enfrentava uma crise: estava isolado após a ruptura do maoísmo com a burocracia da ex-URSS e partia de uma base econômica muito atrasada e agrária. Era um terreno propício para a nova estratégia de Kissinger: atrair a burocracia chinesa para restaurar o capitalismo na China era especialmente adequado para essa política. Isso foi o objetivo do que se iniciou com a “diplomacia do pingue-pongue” (nos primeiros anos da década de 70), continuou com numerosas “visitas secretas” de Kissinger naquela década, alcançando seu ponto máximo com a histórica visita de Nixon a Pequim e sua reunião com Mao em 1972.

Finalmente, a burocracia chinesa iniciou a restauração capitalista sob a liderança de Deng Xiaoping e as “quatro modernizações”, em 1979. Começaram a fluir para a China, primeiramente, numerosos capitais dos burgueses chineses que haviam fugido após a revolução de 1949 e se estabelecido em Taiwan, Hong Kong ou Cingapura. Após a derrota do movimento na Praça Tiananmen, em 1989, também houve um influxo massivo de capitais imperialistas. Todos buscavam os grandes lucros que poderiam obter do imenso proletariado chinês e de seus salários muito baixos.

Nos seus análises atuais, os meios imperialistas falam de um “legado histórico” dessa política de Kissinger: “O resultado será a aproximação entre os dois países diante do rival soviético comum, e o lançamento da China no caminho das reformas econômicas”[2]. É impossível compreender o mundo atual sem entender o impacto profundo que essa estratégia de Kissinger teve em sua configuração.

A China se transformou na “fábrica do mundo” e em uma grande potência capitalista que disputa espaços econômicos e políticos com o imperialismo estadunidense. Nessa situação, quando assumiu o cargo, Joe Biden expressou que a China capitalista era o “inimigo estratégico” a ser enfrentado atualmente.

Já muito idoso, Kissinger afirmou que seu país não deveria aprofundar as tensões com a China, muito menos no campo militar: propôs um caminho de acordos para ampliar os “negócios em comum”. Inclusive, em julho passado, viajou para a China e se reuniu com Xi Jinping, que “deu as boas-vindas calorosas ao ex-diplomata estadunidense Henry Kissinger, em um momento em que os Estados Unidos buscam melhorar suas relações com a China“[3]. Ao ser anunciada a notícia de sua morte, a agência oficial chinesa disse que tinha falecido “um velho amigo”[4].

Morreu um inimigo

Desde a década de 1980, Kissinger afastou-se da política ativa nos governos estadunidenses. No entanto, continuou assessorando políticos republicanos e democratas, escrevendo livros, proferindo discursos e gerenciando uma empresa de consultoria global. Ganhou muitos dólares com essa atividade e morreu em meio a essa abundância.

Hoje, são homenageados por ele todos os políticos e meios do capitalismo, inclusive, como vimos, Xi Jinping. Nós não derramamos lágrimas por ele: morreu um de nossos piores inimigos. Aquele que, quando foi criminoso de guerra, nos causou mortes, prisões, sequestros e torturas. Aquele que, quando o derrotamos no Vietnã, elaborou a política para salvar o capitalismo imperialista “pacificamente”.

Como disse um poeta, “não são estes os mortos que lamentamos”. Ou, como se diz no Brasil quando um inimigo morre: “foi tarde”.

[1] https://amcmuseum.org/history/operation-nickel-grass/

[2] https://www.france24.com/es/minuto-a-minuto/20210414-la-diplomacia-del-ping-pong-entre-china-y-estados-unidos-busca-un-rebote-50-a%C3%B1os-m%C3%A1s-tarde

[3] https://www.bbc.com/mundo/articles/c97p942m9dvo

[4] https://www.elmundo.es/internacional/2023/11/30/6568525821efa02b038b45f3.html

Confira nossos outros conteúdos

Artigos mais populares