Mais uma vez Paris ressuscita! Maio de 68: a revolução faz estremecer o capitalismo
Este artigo foi escrito há alguns anos, mas por ter um viés histórico, consideramos relevante também hoje, especialmente em levando em conta as gigantescas mobilizações de trabalhadores e jovens franceses nos últimos meses.
O sentido da republicação não é identificar uma identidade entre maio de 1968 e a atualidade, mas sugerir que, para além das diferenças (o contexto internacional, o peso do stalinismo imperante naquela época, etc.), os obstáculos a superar continuam sendo os mesmos (o papel das direções burocráticas dos sindicatos e dos partidos reformistas). E o mesmo problema a resolver para desenvolver a luta jusqu’au bout (até o fim), como se dizia naquele maio, ou seja, até à vitória: construir uma direção revolucionária, internacional, ou seja, um partido trotskista (FR).
Por: Francesco Ricci
Uma pedra que estilhaça uma janela. Assim o expressa Bertolucci em seu Os sonhadores (politicamente insosso, cinematograficamente emocionante) faz com que o Maio francês surja nas cenas finais do filme. Na realidade, uma pedra estilhaçou também com cristais as certezas da burguesia e de seus intelectuais, que há meses cantavam o eterno estribilho do “fim da história”, da convivência pacífica de patrões e operários “aburguesados”. Apenas algumas semanas antes dos fatos que narraremos, os acadêmicos reunidos na Sorbonne celebraram o 150º. Aniversário de Marx colocando o grande revolucionário sob uma capa de naftalina em quantidade suficiente para preservá-lo – bem escondido nas estantes da erudição – do contato com as massas. Mas as verdadeiras celebrações de Marx viriam pouco depois, nos bulevares novamente invadidos por bandeiras vermelhas.
Uma onda internacional
Antes de voltar à cronologia daquelas semanas, vale lembrar que não houve absolutamente nada de “causal” (como o definiram alguns jornalistas da imprensa burguesa há anos) em Maio. Sessenta e oito foi um evento internacional, uma onda gigantesca que submergiu o mundo, banhando dezenas de países. A largada foi dada pelas massas populares vietnamitas que, em janeiro daquele ano, com a ofensiva do Tet, demonstravam (como no passado recente as resistências no Iraque e no Afeganistão) que até o exército mais poderoso do planeta poderia ser derrotado. No outono anterior, a Europa, assim como os Estados Unidos, tinha sido varrida por grandes manifestações contra a guerra. A Itália, o Japão, passando pela «Primavera de Praga» contra o estalinismo, mobilizações no Brasil, o Maio, e depois a revolta (e o massacre) de estudantes no México, continuando com o outono operário (1969) na Itália para chegar em meados de 1970 à revolução em Portugal (1).
Nada casual, nada irrepetível. Desde o nascimento do proletariado moderno (há dois séculos) que as revoluções – vitoriosas ou derrotadas – ocorrem e assim continuará, até que a sociedade capitalista tenha sido destruída.
As primeiras barricadas de Maio
Tudo começa na faculdade de Nanterre (subúrbio de Paris) onde os estudantes lutam em solidariedade com seus companheiros detidos em manifestações anteriores contra a guerra do Vietnã. Assim, 142 estudantes se constituem no Movimento 22 de março. Mas, o mundo estudantil está em crise há tempos, tanto em relação às grandes questões internacionais (Vietnã) como contra as reformas classistas da Universidade («plano Fouchet»). Deve-se acrescentar (geralmente isso não é feito porque se choca com a reconstrução “estudantil” do Maio) que o movimento operário francês já havia sido protagonista de importantes lutas em 1967 contra o desemprego e a compressão do salário. Lutas privadas de perspectiva para a burocracia sindical. De fato, os primeiros a se mover foram os trabalhadores jovens, como os da Saviem em Caen (5.000 trabalhadores) que, em janeiro de 68 ocuparam a fábrica enfrentando a polícia com paus.
Mas retornando aos estudantes que, expulsos de Nanterre, se transferem para a Sorbonne (no centro de Paris). Em 3 de maio, a polícia cerca e invade a Universidade onde quatrocentos estudantes estão reunidos, e prende vários dirigentes. A partir daí, a agitada sequência de manifestações inicia, novas detenções, novas manifestações e enfrentamentos, tão bem descrita em outro bom filme, que combina uma esplêndida fotografia em branco e preto com uma valiosa releitura dramática daqueles dias: Les amants réguliers [Os amantes regulares] de Philippe Garrel.
Nos dias seguintes, as mobilizações se estendem a Toulouse, Lyon, Marselha, Bordeaux…e o canto da Internacional volta a ressoar nas cidades francesas, pela primeira vez desde as jornadas revolucionárias de 1936.
Em 10 de maio, depois de um dia de marchas, os enfrentamentos continuaram até à noite. No Quartier Latin- Bairro Latino (sobre a rive gauche [margem esquerda]) cheia de barricadas em chamas que os estudantes defendem com paus e coquetéis molotov das cargas da CRS-Companhias Republicanas de Segurança (o equivalente à «nossa» Celere). Nesse momento, à sua revelia, as burocracias sindicais da CGT -Confederação Geral do Trabalho (hegemonizada pelo Partido Comunista Francês, PCF), a CFDT-Confederação Francesa Democrática do Trabalho e a FO-Força Operária foram obrigadas a convocar a greve geral, embora adiando-a para o dia 13.
E em 13 de maio, um milhão de manifestantes, estudantes e trabalhadores unidos, invadem Paris e apenas a intervenção das forças de segurança da CGT e do PCF impediram a queda do regime. As organizações de extrema esquerda desempenham um papel importante, tanto que, no final da manifestação sindical, começa outra (no Campo de Marte) da qual participam 25.000 pessoas, por iniciativa do Movimento 22, da JCR (agrupação juvenil da seção do Secretariado Unificado de Mandel e Maitan, antecedente da atual LCR-Liga Comunista Revolucionária e que naquele momento se denominou Partido Comunista Internacionalista, PCI), da FER (outra organização trotskista, chamada “lambertista” pelo nome de seu dirigente, Pierre Lambert) e de vários grupos maoístas.
A chama operária (os trotskistas provocam a faísca)
Mas a faísca que acende o fogo operário começa no dia seguinte em Nantes (menos de 300.000 habitantes). Na Sud Aviation (3.000 operários), a assembleia de fábrica aprova a proposta dos trotskistas (os lambertistas dirigem o sindicato Cft-Fo) de ocupar a fábrica. O diretor é sequestrado e a bandeira vermelha é içada nos estabelecimentos. Este é o exemplo que as principais fábricas do país logo imitaram: as fábricas da Renault em Cleon, Flins e sobretudo a de Boulogne Billancourt (30.000 operários, fábrica histórica das lutas de 1936). Em Bordeaux, os trabalhadores dos estaleiros se declararam em greve e nos dias seguintes, fábrica por fábrica, setor por setor, toda a França.
Os enfrentamentos entre os manifestantes e a polícia continuam sem parar. Em 24 de maio outras 700 prisões em Paris. Os quartéis da polícia são usados para torturar e aterrorizar (Gênova no G8 não foi uma exceção, como podemos ver). Mas a polícia pouco podia fazer contra uma mobilização deste tamanho e, de fato, departamentos inteiros fogem ou se negam a intervir (quando em vez de mãos ao alto se encontram frente à autodefesa das massas, os bandos armados do capital só podem se retirar).
Como apagar o incêndio (lá vêm os estalinistas)
A burguesia estremece diante dos trabalhadores que já não parecem tão “aburguesados” como lhes diziam os sociólogos treinados. Dez milhões de grevistas. O governo gaullista busca uma saída testando a maçaneta das duas portas de emergência que ficam: a “conciliação” e a repressão frontal. A primeira saída de segurança é tentada com os encontros de 25 e 26 de maio entre o governo, os patrões e os sindicatos, no Ministério de Assuntos Sociais, na rue de Grenelle. Os patrões e seu governo estão dispostos a fazer uma série de concessões, inclusive consideráveis, em termos de salário e horário. Como sempre, quando a burguesia teme perder muito ou tudo, está disposta a ceder alguma coisa. Os burocratas sindicais estão prontos para fazer sua parte para apagar um incêndio que, certamente, não iniciaram. A CGT declara: “Fica muito por fazer, mas as reivindicações essenciais foram aceitas”. Mas a opinião dos trabalhadores é diferente e em Billancourt, já no dia seguinte, os “acordos de Grenelle” foram categoricamente rechaçados.
Enquanto isso, De Gaulle verifica a abertura da segunda saída de emergência (a guerra civil, evocada por grande parte da imprensa internacional) e no dia 29 vai à Alemanha de helicóptero para se encontrar com o general Massu (já destacado nos massacres coloniais na Argélia) e verificar a disposição das tropas para marchar sobre Paris.
Também no dia 29, uma nova e gigantesca manifestação de trabalhadores e estudantes paralisa a capital. A consigna que ressoa com maior insistência é “governo popular” ou, mais explicitamente, “poder dos trabalhadores”. Mas as burocracias reformistas cuidam de recolher e traduzir esta demanda e Waldeck-Rochet (PCF) declara: “O governo deve ser derrotado na próxima consulta eleitoral, na qual nosso partido participará com seus candidatos e seu programa”.
É luz verde para De Gaulle, que dissolve a Assembleia Nacional e convoca novas eleições. Um retorno às urnas para renovar os organismos da democracia parlamentar burguesa recuperando-a da beira do precipício ao qual o proletariado a havia empurrado.
Resta resolver o problema das fábricas que continuam ocupadas. Neste caso, a tarefa também foi encomendada aos estalinistas que, em troca de efêmeras concessões do governo, conseguiram romper a frente unitária de luta e desmobilizar um setor de cada vez, começando pelo transporte. Onde a persuasão das burocracias não basta, chegam os fuzis da polícia. Como na Renault de Flins, onde na noite de 5 de junho a polícia cercou a fábrica. Enquanto isso, o PCF boicota a manifestação em solidariedade aos operários, dificultando a saída dos manifestantes através do sindicato do transporte. Alguns dias depois, durante os enfrentamentos, Gilles Tautin, estudante secundarista, foi encontrado morto no Sena. Em 11 de junho é a vez de outro bastião que resiste: a Peugeot de Sochaux, onde a CRS dispara e mata um jovem operário, Jacques Beylot, e fere outra dúzia de trabalhadores.
Enquanto operários e estudantes são assassinados, o PCF lança a campanha eleitoral e Waldeck Rochet termina um comício mostrando de que lado os reformistas estão: “Somos o partido da ordem. Devemos nos convencer de que não se chega ao socialismo com enfrentamentos nas ruas”. Nessa mesma tarde chega a notícia de que a polícia, em enfrentamentos nas ruas, assassinou outro operário, Henry Blanchet.
Tendo garantido a colaboração do PCF, em 12 de junho o governo proíbe todas as manifestações e dissolve todas as organizações de extrema esquerda: começando, evidentemente, pelas trotskistas. As eleições, vencidas pelos gaullistas com 55% serão marcadas por uma abstenção em massa, e o próprio PCF (um partido com 20%) reduzirá suas cadeiras pela metade, iniciando seu declínio. As revoluções nunca terão o apoio das urnas de sufrágio universal, onde votam oprimidos e opressores, sua maioria deve buscá-la nos organismos de luta (os soviets), que não se formaram em Maio.
O canto do galo francês sufocado pelos reformistas
Mais uma vez, o dia do ressurgimento proletário, como havia previsto Marx, foi anunciado pelo “canto do galo francês”. Como em junho de 1848, na Comuna de 1871 (2), na Paris de 1936. Mas, mais uma vez, a valente iniciativa dos operários se viu privada do elemento decisivo: uma direção centralizada, um partido comunista revolucionário. Em seu lugar, em maio, estão os reformistas e o PCF estalinista. Uma direção que, através de seu braço burocrático no sindicato, trabalhou duramente para separar os estudantes dos operários; para conter as manifestações; portanto, para evitar que os comitês individuais de greve das fábricas fossem eleitos e revogáveis (esta função foi assumida diretamente pelos dirigentes sindicais) e que se estruturam sobre uma base nacional ao estilo soviético. Em suma, o PCF trabalhou para dividir o proletariado e fragmentar a classe operária, inibindo assim de entrada a construção daqueles organismos de potencial poder operário que, após uma fase de duplo poder, em toda revolução estão destinados a se chocar com o Estado burguês para estabelecer quem manda.
O que faltava era um partido comunista revolucionário com influência de massas. O que lamentavelmente não foi representado nem sequer pelas organizações, que de alguma forma, se reivindicavam trotskistas. Todas as organizações que chegaram ao Maio tinham escasso enraizamento. O PCI-JCR de Alain Krivine (que depois se converteu em LCR) contava então com 150 militantes, sem bases operárias, e já sofria muitas oscilações “centristas” tanto como para antepor a consigna abstrata da “autogestão” das fábricas ao objetivo da construção e do crescimento de organismos de luta de tipo soviético, o único capaz de preparar o caminho para o poder operário (o que também era enunciado na propaganda, mas privado de uma indicação do caminho). Os trotskistas «lambertistas» desempenharam um papel fundamental, como vimos, em produzir a faísca que iniciou a ocupação das fábricas: mas não foram capazes de desenvolver esta perspectiva. E quanto ao terceiro grupo trotskista, Voix Ouvrière, antecedente de Lutte Ouvrière [LO], já tinha posições «operísticas» e, em todo caso, era uma coisa pequena (não comparável com as dimensões que LO chegou posteriormente).
Entretanto, apesar de suas limitações e de seu pequeno tamanho, os partidos trotskistas desempenharam um papel de primeiro plano, confirmando que um programa antirreformista (neste caso só parcialmente correto), em uma situação revolucionária, pode preparar o caminho para uma inversão das relações na esquerda entre reformistas e revolucionários.
Para os trabalhadores e revolucionários, o Maio continua sendo uma página para lembrar com orgulho porque demonstrou o imenso poder da classe operária. Esses fatos de há mais de 50 anos são também fonte de ensinamentos. Só quando os trabalhadores agem de forma independente e em oposição à burguesia e seus governos, podem conseguir, com suas lutas, conquistas significativas imediatas. Mas se a luta não conduz à destruição do Estado burguês e à conquista do poder, a burguesia recupera com juros, na fase seguinte, o que se viu obrigada a conceder. Por isso, a questão das questões é construir um partido cujo fim seja o governo operário contra toda artimanha dos reformistas e contra seu governo que pretende, ainda quando se veja obrigado a opor-se (como hoje na Itália), à colaboração e, portanto, à subordinação da classe.
Construir esse partido baseado na independência de classe, revolucionário, ou seja, trotskista, que faltou: esta é a tarefa dos trabalhadores franceses e de todos os países. Para que o próximo Maio já não nos encontre desprevenidos e seja possível chegar até o final.
1) Sobre a revolução em Portugal de 1974-1975 remetemos ao nosso artigo: «La più recente (e sconosciuta) tra le rivoluzioni europee» [«A mais recente (e desconhecida) entre as revoluções europeias»], em: https://www.partitodi Alternantecomunista.org/articoli/progetto-comunista/progetto-comunista-10/la-pi-recente-e-sconosciuta-tra-le-rivoluzioni-europee
2) «Le mani di Jeanne Marie: Sono diventate pallide, meravigliose / Sotto il gran sole carico d’amore, / Impugnando le canne di mitraglia / Attraverso Parigi insorta!» [«As mãos de Jeanne Marie: Se tornaram pálidas, maravilhosas / Sob o grande sol carregado de amor, / Empunhando os canhões de estilhaços / Pela insurreição de Paris!»]. São versos que Rimbaud dedicou à Comuna de Paris de 1871.
Tradução do italiano/espanhol: Natalia Estrada.
Tradução do espanhol/português: Lilian Enck
Mais uma vez Paris ressuscita! Maio de 68: a revolução faz estremecer o capitalismo
Este artigo foi escrito há alguns anos, mas por ter um viés histórico, consideramos relevante também hoje, especialmente em levando em conta as gigantescas mobilizações de trabalhadores e jovens franceses nos últimos meses.
O sentido da republicação não é identificar uma identidade entre maio de 1968 e a atualidade, mas sugerir que, para além das diferenças (o contexto internacional, o peso do stalinismo imperante naquela época, etc.), os obstáculos a superar continuam sendo os mesmos (o papel das direções burocráticas dos sindicatos e dos partidos reformistas). E o mesmo problema a resolver para desenvolver a luta jusqu’au bout (até o fim), como se dizia naquele maio, ou seja, até à vitória: construir uma direção revolucionária, internacional, ou seja, um partido trotskista (FR).
Por: Francesco Ricci
Uma pedra que estilhaça uma janela. Assim o expressa Bertolucci em seu Os sonhadores (politicamente insosso, cinematograficamente emocionante) faz com que o Maio francês surja nas cenas finais do filme. Na realidade, uma pedra estilhaçou também com cristais as certezas da burguesia e de seus intelectuais, que há meses cantavam o eterno estribilho do “fim da história”, da convivência pacífica de patrões e operários “aburguesados”. Apenas algumas semanas antes dos fatos que narraremos, os acadêmicos reunidos na Sorbonne celebraram o 150º. Aniversário de Marx colocando o grande revolucionário sob uma capa de naftalina em quantidade suficiente para preservá-lo – bem escondido nas estantes da erudição – do contato com as massas. Mas as verdadeiras celebrações de Marx viriam pouco depois, nos bulevares novamente invadidos por bandeiras vermelhas.
Uma onda internacional
Antes de voltar à cronologia daquelas semanas, vale lembrar que não houve absolutamente nada de “causal” (como o definiram alguns jornalistas da imprensa burguesa há anos) em Maio. Sessenta e oito foi um evento internacional, uma onda gigantesca que submergiu o mundo, banhando dezenas de países. A largada foi dada pelas massas populares vietnamitas que, em janeiro daquele ano, com a ofensiva do Tet, demonstravam (como no passado recente as resistências no Iraque e no Afeganistão) que até o exército mais poderoso do planeta poderia ser derrotado. No outono anterior, a Europa, assim como os Estados Unidos, tinha sido varrida por grandes manifestações contra a guerra. A Itália, o Japão, passando pela «Primavera de Praga» contra o estalinismo, mobilizações no Brasil, o Maio, e depois a revolta (e o massacre) de estudantes no México, continuando com o outono operário (1969) na Itália para chegar em meados de 1970 à revolução em Portugal (1).
Nada casual, nada irrepetível. Desde o nascimento do proletariado moderno (há dois séculos) que as revoluções – vitoriosas ou derrotadas – ocorrem e assim continuará, até que a sociedade capitalista tenha sido destruída.
As primeiras barricadas de Maio
Tudo começa na faculdade de Nanterre (subúrbio de Paris) onde os estudantes lutam em solidariedade com seus companheiros detidos em manifestações anteriores contra a guerra do Vietnã. Assim, 142 estudantes se constituem no Movimento 22 de março. Mas, o mundo estudantil está em crise há tempos, tanto em relação às grandes questões internacionais (Vietnã) como contra as reformas classistas da Universidade («plano Fouchet»). Deve-se acrescentar (geralmente isso não é feito porque se choca com a reconstrução “estudantil” do Maio) que o movimento operário francês já havia sido protagonista de importantes lutas em 1967 contra o desemprego e a compressão do salário. Lutas privadas de perspectiva para a burocracia sindical. De fato, os primeiros a se mover foram os trabalhadores jovens, como os da Saviem em Caen (5.000 trabalhadores) que, em janeiro de 68 ocuparam a fábrica enfrentando a polícia com paus.
Mas retornando aos estudantes que, expulsos de Nanterre, se transferem para a Sorbonne (no centro de Paris). Em 3 de maio, a polícia cerca e invade a Universidade onde quatrocentos estudantes estão reunidos, e prende vários dirigentes. A partir daí, a agitada sequência de manifestações inicia, novas detenções, novas manifestações e enfrentamentos, tão bem descrita em outro bom filme, que combina uma esplêndida fotografia em branco e preto com uma valiosa releitura dramática daqueles dias: Les amants réguliers [Os amantes regulares] de Philippe Garrel.
Nos dias seguintes, as mobilizações se estendem a Toulouse, Lyon, Marselha, Bordeaux…e o canto da Internacional volta a ressoar nas cidades francesas, pela primeira vez desde as jornadas revolucionárias de 1936.
Em 10 de maio, depois de um dia de marchas, os enfrentamentos continuaram até à noite. No Quartier Latin- Bairro Latino (sobre a rive gauche [margem esquerda]) cheia de barricadas em chamas que os estudantes defendem com paus e coquetéis molotov das cargas da CRS-Companhias Republicanas de Segurança (o equivalente à «nossa» Celere). Nesse momento, à sua revelia, as burocracias sindicais da CGT -Confederação Geral do Trabalho (hegemonizada pelo Partido Comunista Francês, PCF), a CFDT-Confederação Francesa Democrática do Trabalho e a FO-Força Operária foram obrigadas a convocar a greve geral, embora adiando-a para o dia 13.
E em 13 de maio, um milhão de manifestantes, estudantes e trabalhadores unidos, invadem Paris e apenas a intervenção das forças de segurança da CGT e do PCF impediram a queda do regime. As organizações de extrema esquerda desempenham um papel importante, tanto que, no final da manifestação sindical, começa outra (no Campo de Marte) da qual participam 25.000 pessoas, por iniciativa do Movimento 22, da JCR (agrupação juvenil da seção do Secretariado Unificado de Mandel e Maitan, antecedente da atual LCR-Liga Comunista Revolucionária e que naquele momento se denominou Partido Comunista Internacionalista, PCI), da FER (outra organização trotskista, chamada “lambertista” pelo nome de seu dirigente, Pierre Lambert) e de vários grupos maoístas.
A chama operária (os trotskistas provocam a faísca)
Mas a faísca que acende o fogo operário começa no dia seguinte em Nantes (menos de 300.000 habitantes). Na Sud Aviation (3.000 operários), a assembleia de fábrica aprova a proposta dos trotskistas (os lambertistas dirigem o sindicato Cft-Fo) de ocupar a fábrica. O diretor é sequestrado e a bandeira vermelha é içada nos estabelecimentos. Este é o exemplo que as principais fábricas do país logo imitaram: as fábricas da Renault em Cleon, Flins e sobretudo a de Boulogne Billancourt (30.000 operários, fábrica histórica das lutas de 1936). Em Bordeaux, os trabalhadores dos estaleiros se declararam em greve e nos dias seguintes, fábrica por fábrica, setor por setor, toda a França.
Os enfrentamentos entre os manifestantes e a polícia continuam sem parar. Em 24 de maio outras 700 prisões em Paris. Os quartéis da polícia são usados para torturar e aterrorizar (Gênova no G8 não foi uma exceção, como podemos ver). Mas a polícia pouco podia fazer contra uma mobilização deste tamanho e, de fato, departamentos inteiros fogem ou se negam a intervir (quando em vez de mãos ao alto se encontram frente à autodefesa das massas, os bandos armados do capital só podem se retirar).
Como apagar o incêndio (lá vêm os estalinistas)
A burguesia estremece diante dos trabalhadores que já não parecem tão “aburguesados” como lhes diziam os sociólogos treinados. Dez milhões de grevistas. O governo gaullista busca uma saída testando a maçaneta das duas portas de emergência que ficam: a “conciliação” e a repressão frontal. A primeira saída de segurança é tentada com os encontros de 25 e 26 de maio entre o governo, os patrões e os sindicatos, no Ministério de Assuntos Sociais, na rue de Grenelle. Os patrões e seu governo estão dispostos a fazer uma série de concessões, inclusive consideráveis, em termos de salário e horário. Como sempre, quando a burguesia teme perder muito ou tudo, está disposta a ceder alguma coisa. Os burocratas sindicais estão prontos para fazer sua parte para apagar um incêndio que, certamente, não iniciaram. A CGT declara: “Fica muito por fazer, mas as reivindicações essenciais foram aceitas”. Mas a opinião dos trabalhadores é diferente e em Billancourt, já no dia seguinte, os “acordos de Grenelle” foram categoricamente rechaçados.
Enquanto isso, De Gaulle verifica a abertura da segunda saída de emergência (a guerra civil, evocada por grande parte da imprensa internacional) e no dia 29 vai à Alemanha de helicóptero para se encontrar com o general Massu (já destacado nos massacres coloniais na Argélia) e verificar a disposição das tropas para marchar sobre Paris.
Também no dia 29, uma nova e gigantesca manifestação de trabalhadores e estudantes paralisa a capital. A consigna que ressoa com maior insistência é “governo popular” ou, mais explicitamente, “poder dos trabalhadores”. Mas as burocracias reformistas cuidam de recolher e traduzir esta demanda e Waldeck-Rochet (PCF) declara: “O governo deve ser derrotado na próxima consulta eleitoral, na qual nosso partido participará com seus candidatos e seu programa”.
É luz verde para De Gaulle, que dissolve a Assembleia Nacional e convoca novas eleições. Um retorno às urnas para renovar os organismos da democracia parlamentar burguesa recuperando-a da beira do precipício ao qual o proletariado a havia empurrado.
Resta resolver o problema das fábricas que continuam ocupadas. Neste caso, a tarefa também foi encomendada aos estalinistas que, em troca de efêmeras concessões do governo, conseguiram romper a frente unitária de luta e desmobilizar um setor de cada vez, começando pelo transporte. Onde a persuasão das burocracias não basta, chegam os fuzis da polícia. Como na Renault de Flins, onde na noite de 5 de junho a polícia cercou a fábrica. Enquanto isso, o PCF boicota a manifestação em solidariedade aos operários, dificultando a saída dos manifestantes através do sindicato do transporte. Alguns dias depois, durante os enfrentamentos, Gilles Tautin, estudante secundarista, foi encontrado morto no Sena. Em 11 de junho é a vez de outro bastião que resiste: a Peugeot de Sochaux, onde a CRS dispara e mata um jovem operário, Jacques Beylot, e fere outra dúzia de trabalhadores.
Enquanto operários e estudantes são assassinados, o PCF lança a campanha eleitoral e Waldeck Rochet termina um comício mostrando de que lado os reformistas estão: “Somos o partido da ordem. Devemos nos convencer de que não se chega ao socialismo com enfrentamentos nas ruas”. Nessa mesma tarde chega a notícia de que a polícia, em enfrentamentos nas ruas, assassinou outro operário, Henry Blanchet.
Tendo garantido a colaboração do PCF, em 12 de junho o governo proíbe todas as manifestações e dissolve todas as organizações de extrema esquerda: começando, evidentemente, pelas trotskistas. As eleições, vencidas pelos gaullistas com 55% serão marcadas por uma abstenção em massa, e o próprio PCF (um partido com 20%) reduzirá suas cadeiras pela metade, iniciando seu declínio. As revoluções nunca terão o apoio das urnas de sufrágio universal, onde votam oprimidos e opressores, sua maioria deve buscá-la nos organismos de luta (os soviets), que não se formaram em Maio.
O canto do galo francês sufocado pelos reformistas
Mais uma vez, o dia do ressurgimento proletário, como havia previsto Marx, foi anunciado pelo “canto do galo francês”. Como em junho de 1848, na Comuna de 1871 (2), na Paris de 1936. Mas, mais uma vez, a valente iniciativa dos operários se viu privada do elemento decisivo: uma direção centralizada, um partido comunista revolucionário. Em seu lugar, em maio, estão os reformistas e o PCF estalinista. Uma direção que, através de seu braço burocrático no sindicato, trabalhou duramente para separar os estudantes dos operários; para conter as manifestações; portanto, para evitar que os comitês individuais de greve das fábricas fossem eleitos e revogáveis (esta função foi assumida diretamente pelos dirigentes sindicais) e que se estruturam sobre uma base nacional ao estilo soviético. Em suma, o PCF trabalhou para dividir o proletariado e fragmentar a classe operária, inibindo assim de entrada a construção daqueles organismos de potencial poder operário que, após uma fase de duplo poder, em toda revolução estão destinados a se chocar com o Estado burguês para estabelecer quem manda.
O que faltava era um partido comunista revolucionário com influência de massas. O que lamentavelmente não foi representado nem sequer pelas organizações, que de alguma forma, se reivindicavam trotskistas. Todas as organizações que chegaram ao Maio tinham escasso enraizamento. O PCI-JCR de Alain Krivine (que depois se converteu em LCR) contava então com 150 militantes, sem bases operárias, e já sofria muitas oscilações “centristas” tanto como para antepor a consigna abstrata da “autogestão” das fábricas ao objetivo da construção e do crescimento de organismos de luta de tipo soviético, o único capaz de preparar o caminho para o poder operário (o que também era enunciado na propaganda, mas privado de uma indicação do caminho). Os trotskistas «lambertistas» desempenharam um papel fundamental, como vimos, em produzir a faísca que iniciou a ocupação das fábricas: mas não foram capazes de desenvolver esta perspectiva. E quanto ao terceiro grupo trotskista, Voix Ouvrière, antecedente de Lutte Ouvrière [LO], já tinha posições «operísticas» e, em todo caso, era uma coisa pequena (não comparável com as dimensões que LO chegou posteriormente).
Entretanto, apesar de suas limitações e de seu pequeno tamanho, os partidos trotskistas desempenharam um papel de primeiro plano, confirmando que um programa antirreformista (neste caso só parcialmente correto), em uma situação revolucionária, pode preparar o caminho para uma inversão das relações na esquerda entre reformistas e revolucionários.
Para os trabalhadores e revolucionários, o Maio continua sendo uma página para lembrar com orgulho porque demonstrou o imenso poder da classe operária. Esses fatos de há mais de 50 anos são também fonte de ensinamentos. Só quando os trabalhadores agem de forma independente e em oposição à burguesia e seus governos, podem conseguir, com suas lutas, conquistas significativas imediatas. Mas se a luta não conduz à destruição do Estado burguês e à conquista do poder, a burguesia recupera com juros, na fase seguinte, o que se viu obrigada a conceder. Por isso, a questão das questões é construir um partido cujo fim seja o governo operário contra toda artimanha dos reformistas e contra seu governo que pretende, ainda quando se veja obrigado a opor-se (como hoje na Itália), à colaboração e, portanto, à subordinação da classe.
Construir esse partido baseado na independência de classe, revolucionário, ou seja, trotskista, que faltou: esta é a tarefa dos trabalhadores franceses e de todos os países. Para que o próximo Maio já não nos encontre desprevenidos e seja possível chegar até o final.
1) Sobre a revolução em Portugal de 1974-1975 remetemos ao nosso artigo: «La più recente (e sconosciuta) tra le rivoluzioni europee» [«A mais recente (e desconhecida) entre as revoluções europeias»], em: https://www.partitodi Alternantecomunista.org/articoli/progetto-comunista/progetto-comunista-10/la-pi-recente-e-sconosciuta-tra-le-rivoluzioni-europee
2) «Le mani di Jeanne Marie: Sono diventate pallide, meravigliose / Sotto il gran sole carico d’amore, / Impugnando le canne di mitraglia / Attraverso Parigi insorta!» [«As mãos de Jeanne Marie: Se tornaram pálidas, maravilhosas / Sob o grande sol carregado de amor, / Empunhando os canhões de estilhaços / Pela insurreição de Paris!»]. São versos que Rimbaud dedicou à Comuna de Paris de 1871.
Tradução do italiano/espanhol: Natalia Estrada
Tradução do espanhol/português: Lilian Enck