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sexta-feira, março 29, 2024

Introdução ao pensamento do marxista árabe Mahdi Amel

Mahdi Amel nasceu no Líbano em 1936, onde concluiu o ensino médio. Depois ele se mudou para a França, onde obteve o bacharelado e o doutorado em Filosofia. Trabalhou por um curto período na Argélia após a vitória da revolução contra o colonialismo francês, e conheceu de perto a revolução desse país. Mais tarde, ele voltou ao Líbano como professor em tempo integral no Instituto de Ciências Sociais da Universidade Libanesa. Mahdi Amel ingressou no Partido Comunista Libanês em 1960 e foi eleito para o Comitê Central do partido em 1987, mesmo ano em que foi assassinado em Beirute.

Por: Victorios Bayan Shams

Mahdi escreveu vários livros:

  • Premissas teóricas para o estudo dos efeitos do pensamento socialista no Movimento de Libertação Nacional. Essa obra tem três seções: Sobre a contradição, sobre o modo de produção colonial, e sobre o progresso na história.
  • Teoria na prática política: Uma pesquisa sobre as causas da guerra civil no Líbano.
  • Crise da civilização árabe ou da burguesia árabe?
  • Introdução à crítica do pensamento confessional: a questão palestina na ideologia da burguesia libanesa.
  • Marx em Orientalismo de Edward Said: A inteligência é do ocidente e o coração do Oriente?
  • A natureza científica da escola de pensamento de Ibn Khaldun.
  • Sobre o Estado confessional.
  • Crítica do pensamento cotidiano.
  • Questões do ensino e política educacional.

Ele tem algumas contribuições poéticas em dois livros, além de uma grande seleção de artigos e entrevistas.

Foi apelidado de “Gramsci Árabe”, pois sua importância e singularidade residem no fato de ser um dos poucos pensadores árabes que elaboraram a partir da teoria marxista, para extrair dela as leis à luz das quais ele foi capaz de compreender a realidade árabe, elaborar uma crítica e explicar suas complexidades e particularidades históricas.

As questões mais importantes que ocuparam Mahdi Amel, e que até então eram o foco do conflito da vida política no mundo árabe, são:

  • A crise de direção no movimento de libertação nacional no mundo árabe;
  • O domínio do modo de produção colonial nas relações de produção e nas estruturas políticas, sociais e econômicas do mundo árabe;
  • A questão do confessionalismo ao qual os povos do mundo árabe ainda estão submetidos, e que é considerada uma porta de entrada complementar a outras questões que têm um impacto negativo para manter as sociedades árabes reféns do controle das classes cujos interesses estão ligados aos interesses do colonialismo.

O que se segue é uma breve apresentação de sua visão sobre essas questões.

A crise de direção do movimento de libertação nacional no mundo árabe

A crise de direção no “movimento de libertação nacional no mundo árabe” surgiu com a formação da entidade sionista (NT: trata-se do Estado de Israel) desde os anos trinta do século passado. A questão da libertação da Palestina foi uma das questões centrais que as sociedades árabes tiveram que lidar devido às repercussões negativas que provocava em todo o seu entorno, e porque a libertação da Palestina é considerada tema de um consenso popular geral árabe passando a impressão de cruzar a divisão de classes.

Numa primeira fase, os exércitos populares que trabalharam para libertar a Palestina foram formados de acordo com as visões nacionalistas pan-árabes e por vezes religiosas. Em ambos os casos, a burguesia “nacional” liderava o conflito contra a entidade sionista, e esta é uma das razões para o fracasso permanente. Mahdi Amel considera que a ideologia da burguesia tem duas faces principais, a nacionalista e a religiosa que expressa uma burguesia mais reacionária.

Mas o principal evento que atraiu a atenção de Mahdi Amel, sob o qual viveu e atuou, foi a invasão “israelense” de Beirute, a primeira capital árabe a ser tomada pelo exército de ocupação sionista, que resultou na formação de uma importante aliança nacional: a “Frente Nacional de Resistência Libanesa”, uma aliança nacional que incluía as forças democráticas (NT: por forças democráticas o autor se refere à forças políticas de esquerda e marxistas), juntamente com as forças pequeno-burguesas (NT: o autor se refere às forças políticas nacionalistas árabes e pan-arabistas), que assumiram a direção da luta contra o inimigo sionista em várias etapas. É uma aliança justificada em sua origem por diversos motivos. O mais importante deles é o enraizamento dessas forças pequeno-burguesas e o domínio de sua cultura sobre a sociedade, além do tamanho e capacidade limitadas das forças marxistas até então.

No entanto, essas justificativas cessaram no estágio seguinte (NT: o autor se refere à resistência contra a invasão israelense em Beirute em setembro de 1982 agora sob hegemonia das forças de esquerda), já que os comunistas puderam impor seu domínio particularmente nas frentes contra o inimigo e efetivar sua influência nas estruturas sociais nas quais operavam. O avanço dos comunistas não foi suficiente para que a burguesia desistisse de disputar a direção pois, com sua consciência de classe, a burguesia sabia que as vitórias dos marxistas nas frentes de combate impactariam sua hegemonia interna, atingindo seus interesses, neutralizando-os.

Foi isso que levou a burguesia a diluir o conflito com o inimigo, de modo que as forças democráticas nacionais não pudessem vencer e determinar unilateralmente a forma e o conteúdo do fim do conflito.

Numa fase posterior, a burguesia libanesa se aliou a outros regimes árabes para atacar o movimento de libertação nacional, do qual o Líbano foi uma das arenas e modelos mais importantes, como um prelúdio para acabar com o movimento de libertação nacional e se livrar das forças da revolução palestina.

“O consenso quase absoluto dos árabes (NT: Mahdi Amel se refere aos regimes árabes) em se livrar do movimento nacional libanês e da revolução palestina, por si só, indica que esses “árabes unidos” vêem a crise libanesa como um aspecto de sua crise, e uma solução árabe é uma necessidade para tentar eliminar o fantasma do modelo revolucionário do movimento nacional árabe em seu berço.” (Amel, Mahdi, Teoria na prática política: Uma pesquisa sobre as causas da guerra civil no Líbano, página 30).

É assim que os exércitos árabes, liderados pelo exército sírio, foram enviados desde meados dos anos setenta para realizar a tarefa de liquidar o movimento nacional, para se livrar de seus “males” cujas chamas podiam se estender até eles.

Assim, os líderes burgueses se voltaram contra o consenso popular geral, porque perceberam que continuar a luta contra o inimigo sionista estava em contradição com sua capacidade de continuar a dominar a sociedade.

Porém, para sair dessa situação difícil, a burguesia idealizou suas soluções. Depois de enfraquecer o movimento nacional a ponto deste não poder mais influenciar o curso do conflito, as forças islâmicas foram forçadas contra o movimento nacional. Tratavam-se de formações burguesas com patrocínio árabe e regional para dominar a frente contra o inimigo. Assim a burguesia foi capaz de assegurar a absorção do ressentimento da rua árabe por um lado, e a preservação de sua hegemonia por outro.

O predomínio do modo de produção colonial nas estruturas sociais árabes

Com o início dos processos de independência nacional no mundo árabe na segunda metade da década de quarenta do século passado, começaram a se formar regimes árabes cujos interesses o colonialismo fez questão de vincular aos seus interesses depois de garantir às classes burguesas dominantes suas posições no poder. Os líderes desses regimes eram da burguesia emergente em um estágio histórico distorcido e complexo em que os proprietários de terras burgueses (não a velha classe feudal) se localizaram em uma posição de classe associada ao colonialismo, isto é, os próprios latifundiários participaram de uma transição que violava a lógica da história, que pressupõe a chegada da classe burguesa ao poder por meio de uma revolução que elimina o velho modo de produção para adotar um novo.

O papel primordial atribuído a esta classe era o de manter um estado de paralisia política, uma de suas primeiras condições para facilitar a manutenção das sociedades árabes em estado de atraso, a manutenção da economia rentista improdutiva às custas da liquidação de setores como a agricultura e a indústria, o que levará a classe trabalhadora árabe à ação após as independências nacionais. A luta contra esses regimes não foi resolvida devido à ausência das forças democráticas nacionais (NT: o autor se refere às forças de esquerda) que demoraram a aparecer na arena política por razões complexas originalmente relacionadas à distorção provocada por uma transição das estruturas sociais que se livram do colonialismo se associando a uma nova forma de colonialismo.

Mahdi Amel considerou que os estágios pelos quais a história passou – “comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo” – não podem ser aplicados nas estruturas sociais árabes sem pesquisa e escrutínio. Após a independência nacional, um novo e distinto modo de produção, o modo de produção colonial, dominou o desenvolvimento das estruturas sociais árabes devido ao seu vínculo orgânico com o modo de produção capitalista.

Sobre essa questão, Mahdi Amel escreveu em “Introdução à crítica do pensamento confessional”, uma de suas obras mais importantes, sobre as ideias de um dos mais importantes teóricos da burguesia em seu país, Michel Chiha, um dos redatores da constituição do país (1926). Chiha, em seus escritos, teorizou que o país não precisa impulsionar os setores reais da produção, como a agricultura e a indústria. Esta ideia está presente na atuação das forças da burguesia sectária no Líbano até hoje. A economia do Líbano dependia principalmente do setor de serviços antes da guerra civil (1975-1990). Ao final da guerra a burguesia retomou o mesmo modelo e reativou o setor de serviços.

Mahdi considera que o processo de libertação nacional na estrutura social colonial e o processo de transição para o socialismo ocorrem numa longa e complexa luta de classes devido à complexidade desta estrutura:

O processo de libertação nacional e o processo de transição para o socialismo é um único processo histórico, sujeito a uma única lógica histórica e a um único mecanismo de luta de classes. Este processo histórico único tem suas etapas que diferem de acordo com as condições históricas para o desenvolvimento da luta de classes em cada estrutura social colonial particular. A absoluta simetria estrutural entre os dois processos históricos, que na verdade são um só processo, deve-se ao fato de que esse processo é um processo de transformação da estrutura das relações de produção existentes, e que a transformação dessa estrutura é revolucionária. Sua destruição se dá através de uma luta de classes distinta que determina o seu mecanismo, e que essa destruição é ela própria o caminho de transição para o socialismo, isto é, a solução para a contradição nacional na estrutura das relações coloniais de produção determinadas pela relação colonial é necessariamente uma solução socialista determinada pela lógica da própria luta de classes na estrutura social colonial. A luta nacional só pode ser, nesta estrutura, uma luta de classes, mesmo que não apareça dessa maneira, e a luta de classes nela só pode ser uma luta nacional, mesmo que não apareça dessa maneira”. (“Premissas teóricas para o estudo do pensamento socialista no Movimento de Libertação Nacional”, Sobre o modo de produção colonial, página 380).

Isso significa que se livrar da dominação do colonialismo e do imperialismo e, consequentemente, livrar-se das ferramentas que dela dependem para controlar a sociedade, é um aspecto essencial da luta de classes que levará necessariamente à transição da sociedade para o socialismo.

Em sua tentativa de simplificar o processo de compreensão da complexidade da transição de uma fase a outra nas estruturas sociais do colonialismo, Mahdi Amel baseou-se na teoria do materialismo histórico para simplificar as cinco fases do estado segundo Ibn Khaldun: A fase da vitória, a fase do despotismo, a fase de vazio e mansidão, a fase de contentamento e paz, a fase de extravagância e desperdício que leva o estado a decair e entrar em colapso.

Em “Sobre o progresso na história”, a terceira parte de seu importante livro de referência, Mahdi Amel resumiu estas fases em três tempos: o tempo da formação, o tempo da renovação, o tempo da ruptura ou transformação.

Desta forma, elaborou uma teoria que poderia também contribuir para a compreensão do próprio materialismo histórico, já que os mesmos quatro modos de produção (comunismo primitivo, escravidão, feudalismo e capitalismo) passaram por esses três tempos.

Além disso, facilitou para os revolucionários árabes a compreensão da complexa natureza do momento em que uma fração de classe burguesa (religiosa, militar, liberal ou outra) é substituída no poder por outra da mesma classe dominante. Tudo isso se processa nas entranhas do “tempo de renovação” que Mahdi considerou o tempo da impossibilidade do domínio da burguesia colonial que coloca sobre os ombros das forças revolucionárias nestas sociedades a tarefa de levar esse processo aos seus fins naturais, ou seja, ao tempo de sua transformação.

A questão confessional

Mahdi Amel formulou sua visão sobre a questão confessional à luz da guerra civil libanesa (1975-1990) que aparentava ser uma guerra confessional, deflagrada pela burguesia, depois que seus apuros atingiram o clímax, na tentativa de manter seu regime.

Uma seita religiosa tem várias expressões burguesas, a maioria das quais são reunidas como uma entidade religiosa, com sua própria cultura e costumes, e como uma unidade social autônoma que se desenvolveu ao longo da história, como nestas duas definições inspiradas no pensamento do teórico mais proeminente da burguesia libanesa, Michel Chiha:

A seita religiosa é um conglomerado humano que foi compilado historicamente e tem particularidades dentro da estrutura confessional libanesa”.

Na segunda definição:

“A seita é uma identidade social multidimensional muito clara, profundamente enraizada na história: juntos, constituem um todo dinâmico altamente complexo”.

Existem muitas expressões burguesas que giram em torno do mesmo significado, enquanto para Mahdi Amel e do ponto de vista de classe, a seita religiosa é:

“Uma relação política específica historicamente definida a partir do movimento da luta de classes nas condições da estrutura social colonial” (Amel, Mahdi, “Introdução à crítica do pensamento confessional“, página 20), porque o confessionalismo, de acordo com sua definição, é “o sistema que garante à burguesia colonial seu controle de classe em certas condições históricas” (Sobre o Estado confessional).

Mahdi Amel considera que o confessionalismo não existe, exceto no Estado, e não em qualquer estado, mas sim naqueles que não garantem as condições de manutenção do poder financeiro da oligarquia, exceto desta forma. Para isso, apresenta vários exemplos de estados “democráticos” como os Estados Unidos, a França, etc., que têm seitas religiosas, duas vezes mais que o Líbano, mas na realidade não tratam as seitas religiosas como unidades sociais que constituem sua estrutura política, e as seitas religiosas não são consideradas a unidade primordial social na relação do indivíduo com o Estado, como é o caso do Líbano. O indivíduo, segundo o modelo libanês, não existe, a não ser por sua posição em sua seita que é considerada sua porta de entrada para o Estado.

A burguesia libanesa construiu seu sistema de poder desta forma, o qual denomina de “democracia consensual”, porque é fácil disfarçar as divisões de classe na sociedade com divisões verticais, dividindo a classe trabalhadora em seitas religiosas fáceis de controlar ao capturá-la por esse meio.

 Conclusão

Mahdi Amel trabalhou para explicar a complexidade da estrutura política, social e econômica libanesa, à luz da notável ascensão das forças de esquerda quando estavam no auge de sua ascensão nas décadas de setenta e oitenta do século passado, e se constituíram na principal força da resistência à “Israel” e na resistência à hegemonia da junta confessional ligada ao colonialismo.

Por isso, considerou que a mudança revolucionária era inevitável, sobretudo porque a classe operária pôde então unir-se e emergir por meio de seus partidos e forças marxistas, e constituir-se por meio de suas alianças, internamente com as forças nacionais, e principalmente com a resistência árabe e com a resistência palestina, em uma ameaça real à dominação da burguesia, que poderia ter sido liquidada não fosse a intervenção das forças dos regimes burgueses semelhantes ao regime libanês, como os regimes sírio, saudita e iraniano, além de “Israel” e das potências do Ocidente, para deter o ascenso das forças de libertação nacional e interromper sua expansão, o que teria ameaçado os interesses burgueses e certamente liquidaria com seu domínio.

Algumas observações finais. A definição de Mahdi de confessionalismo, como um sistema que assegura a perpetuação do controle da burguesia colonial, se aplica a outras formas de dominação da burguesia em outras estruturas sociais árabes, nas quais o tribalismo, clanismo, regionalismo ou outras relações (no sentido Khalduniano) são dominantes de acordo com a natureza de cada uma dessas estruturas.

Mahdi Amel estava exagerado em seu otimismo? Quais fatos após seu martírio problematizam o que ele pensava? Talvez o assassinato de Mahdi Amel e outros pensadores marxistas nas mãos das forças confessionais ocultas com apoio regional e internacional, tenha sido exatamente para este propósito, isto é, impedir que a história alcance sua lógica própria na transição para o socialismo que Mahdi e seus companheiros viram ao virar da esquina à luz das conquistas que foram alcançadas até o momento de sua eliminação física. É possível voltar a apostar na opção de mudança democrática?

O que está acontecendo hoje na Síria e nos países da “Primavera Árabe” é semelhante em alguns aspectos ao que o Líbano alcançou depois de muitos anos de guerra civil. Em outras palavras, o capitalismo está trabalhando para reproduzir a história de uma forma que garanta a continuidade de seus interesses. Por isso, na Síria e nesses países, a questão da divisão por motivos confessionais, tribais e outros é alimentada com urgência, tendo como pano de fundo essas brutais guerras capitalistas com custos humanos exorbitantes, como uma das possíveis soluções que fragmentam os povos da região e impedem a sua unidade e desenvolvimento em forças políticas que possam vir a desequilibrar a balança e acabar com os regimes colonial-comprador existentes.

Victorios Bayan Shams é jornalista sírio radicado no Brasil.

Versão em português: Fábio Bosco

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